A conspiração escarlate escrita por Drafter


Capítulo 37
O Olho de Jade e as Relíquias Primordiais


Notas iniciais do capítulo

Lá vou eu brincar com a linha narrativa de novo!

Estou abrindo o capítulo com um flashfoward (quem assistia Lost está familiarizado com o recurso, hehe).

Divirtam-se!



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Era começo da madrugada. O tempo no Reikai passava diferente dos outros mundos, e lá, o sono não tinha a mesma importância que para os humanos. Ainda assim, os seres que habitavam o Reino Espiritual necessitavam regularmente recarregar as energias dispendidas com suas tarefas habituais. Se revezavam em turnos, permitindo que as atividades mais importantes jamais ficassem desamparadas.

O Palácio Celestial nunca ficava vazio, apenas menos movimentado em determinados momentos. E aquele era um deles. Poucos ogros se dividiam em funções como organização de documentos e vigilância, enquanto algumas guias espirituais continuavam seu trabalho de transportar as almas que necessitavam de julgamento.

Botan era uma das guias no plantão daquela madrugada. Tinha acabado de retornar ao Palácio depois de auxiliar a travessia de mais um espírito quando percebeu algo de errado.

Um dos ogros estava caído no chão, desacordado, na entrada de um corredor. Botan correu até ele, nervosa, mas constatou que não estava ferido e nem apresentava sinais de luta. Estava simplesmente desmaiado, como que por encantamento ou alguma substância nociva.

Deixou a criatura onde estava e se levantou, cautelosa. Decidiu seguir o corredor, na esperança de descobrir o que poderia ter causado aquele mal súbito ao funcionário. Tinha adquirido sua boa dose de coragem de tanto acompanhar as aventuras de Yusuke, e preferia ter certeza de que havia motivo para alarde antes de causar um pânico desnecessário.

Seu nervosismo aumentava a medida que se embrenhava por aquela passagem. Raramente ia tão longe dentro do Palácio, mas sabia aonde aquele corredor iria a levar. Todos ali sabiam.

A Câmara dos Tesouros Sagrados era a última porta daquele longo passadiço. Era onde todas as relíquias do Mundo Espiritual ficavam armazenadas, protegidas em um cofre que, por algumas vezes, havia sido alvo de ataques. A proteção em volta dele era cada vez maior, mas ainda assim, não se comparava à segurança em torno das Relíquias Primordiais.

As Relíquias Primordiais eram presentes dados ao Rei Enma no início dos tempos. Tais relíquias — o Selo Dourado e o Punhal do Guardião — eram mais antigos do que a própria Terra e, segundo a mística em torno dos objetos, eram eles que conferiam o poder de governar os mundos Espirituais e dos Humanos.

Por isso, não ficavam junto com os outros tesouros. Escondiam-se em um relicário, um nicho secreto guardado por magias protetivas e armadilhas mortais, longe das mãos e dos olhos dos mais ambiciosos. As Relíquias nunca deixavam aquele aposento, nem nunca eram tocadas por outras mãos que não as de Enma. Nem mesmo Koenma tinha permissão de vê-las, exceto em ocasiões muito extraordinárias.

Nas raras vezes em que a Câmara dos Tesouros havia sido atacada, os gatunos se contentavam com as riquezas do cofre, que por si só já eram de valor inestimável. Nunca ninguém ousara localizar o nicho secreto, que dirá arromba-lo.

Por isso, quando Botan entrou na saleta e viu o relicário aberto pela primeira vez em toda sua existência, não conseguiu segurar uma exclamação. Sua surpresa foi ainda maior quando sentiu uma mão tampando firme sua boca enquanto outra a prendia pela cintura, vindo por trás dela.

— Shh... — Ela ouviu o invasor falar no seu ouvido, e imediatamente sentiu suas narinas serem preenchidas por um suave aroma de rosas.

Ficou trêmula, com medo de fazer o menor movimento ou ruído. Seu corpo se retesou ainda mais ao sentir uma picada fina no pescoço. No segundo seguinte, todos seus músculos relaxaram e a vista começou a escurecer. Quando o assaltante a desprendeu, Botan caiu, sem força para se sustentar. Virou o rosto a tempo de ver a massa de cabelos vermelhos desaparecer pela porta da Câmara.

Desmaiou.

(...)

2 horas antes

— Eu sabia que viria, youko — Liu falou, saindo das sombras em passos vagarosos.

— Me mostre — Kurama ordenou.

Liu abriu um sorriso cínico. Estava à vontade.

— Direto ao ponto, não é? Eu gosto disso...

Kurama não respondeu. Encarava o comandante com um semblante sério, como a situação exigia. Não estava ali para perder tempo ou fazer parte de joguetes. Seu objetivo era claro, e seu propósito, urgente.

Com cuidado, Liu retirou do próprio bolso uma espécie de embrulho, feito de um tecido leve e de uma cor tão alva que chegava a cintilar sob a luz da lua. O abriu com cuidado, revelando um medalhão de prata incrustado de gemas verde-escuras ao redor das bordas. Tinha uma aparência antiga, apesar de bem conservado, e parecia querer emitir um brilho incomum por uma brecha lateral. A joia era coberta pelo desenho em relevo de um olho e possuía uma pequena dobradiça em um dos lados.

Kurama não conseguiu deixar de fitar obsessivamente o objeto, hipnotizado pela sua beleza e pelo poder que possuía.

— Quero testa-lo — pediu.

— O que você trouxe?

Estendeu a mão, revelando dois fios negros de cabelo. Ofereceu-os ao comandante, enquanto este abria o medalhão, deixando seu brilho iluminar os dois rostos naquela noite escura.

Liu pegou os fios com cuidado e os depositou no centro da joia. Os cabelos foram imediatamente absorvidos pelo objeto, que em seguida projetou uma imagem alguns centímetros no ar. Era uma imagem etérea e pequena, pouco maior do que um palmo de largura, mas perfeitamente nítida e detalhada. A figura, que agora se movimentava, tal qual um filme, exibia Hiei, sentado em uma árvore, olhos e Jagan abertos e atentos.

A cena mostrava não apenas o youkai — dono daqueles fios de cabelo que Kurama sorrateiramente conseguira momentos atrás —, mas também boa parte do ambiente em que ele se encontrava. Era possível enxergar com clareza algumas das árvores próximas e até mesmo a passarela iluminada pelos postes de rua. Tudo não durou mais do que dez segundos, mas foi o suficiente para Kurama ter certeza.

— O Olho de Jade é um poderoso amuleto de vidência, que revela qualquer ser, humano ou demônio — Liu explicou — Só precisa ser alimentado por algo que contenha parte de sua energia vital. Quanto mais você tiver para oferecer, mais receberá em troca.

— Como você conseguiu isso?

Liu mais uma vez esticou os lábios, exibindo os dentes em um sorriso condescendente.

— A maioria dos encantamentos de proteção da Câmara dos Tesouros foi criada por membros do Esquadrão — Liu falou — Não é difícil se esgueirar lá sem ninguém perceber quando se é o Comandante. O sumiço do Olho de Jade só foi notado na última fuga em massa do Centro de Detenção.

Kurama assentiu, sem muita surpresa, se recordando do episódio.

— E Bozukan? Como posso ter certeza de que vou encontra-lo?

— E como você acha que eu tinha controle sobre ele? — retrucou — Como parte do acordo, consegui um pequeno frasco com seu sangue. O monitorava para ter certeza de que ficaria longe dos portais. Claro, ele sabia que eu estaria ocupado demais com a invasão daquele dia para vigia-lo e aproveitou a brecha. É muito petulante...

— Deixe-me ver!

— Negócios primeiro.

Kurama deu um passo à frente, ameaçador. Tinha uma expressão fechada, assim como seu punho.

— Preciso de uma prova de que não está mentindo!

— Vai ter que se contentar com a minha palavra.

— Nada feito.

Liu, que ainda segurava o medalhão por cima do tecido, puxou o objeto para perto de si, o fechando.

— Que pena, youko. Achei que você seria mais esperto e soubesse negociar. Talvez mude de ideia depois que Bozukan fizer uma visitinha à sua mãe. Tenho certeza de que ele vai se divertir...

Ele cobria com cuidado o Olho de Jade com o manto branco, quando sentiu Kurama chegar ainda mais perto. Os olhos verdes do rapaz ferviam de ódio.

— Que tal se invés disso, eu matar você e ficar com o medalhão?

O comandante engoliu em seco diante da ameaça, e apertou ainda mais a relíquia com os dedos. Deu um passos para trás, tentando se distanciar do garoto.

— Se fizer isso, terá morrido na praia. O sangue de Bozukan não está comigo, está guardado em um lugar seguro.

Kurama novamente não respondeu de imediato, fulminando Liu com o olhar.

— O que você quer? — perguntou, depois de um tempo.

Liu voltou a sorrir.

— Fez a decisão certa, Kurama — falou — Existem relíquias que nem mesmo o Esquadrão tem acesso. Elas são protegidas por maldições e magias repelidoras, encantamentos que as guardam por milênios... barreiras que somente o ladrão mais habilidoso do Makai seria capaz de transpor...

Os olhos do comandante brilhavam com avidez. Os de Kurama, se apagavam ao ouvir a missão a que teria que se submeter.

(...)

Kurama andava apressado pelas ruas vazias enquanto a cidade dormia. Trazia nas mãos a recompensa pela empreitada perigosa que tinha realizado no Reikai, e, no pulmão, o veneno que o castigava pelo mesmo motivo.

Para completar o martírio daquela noite, sua mão direita ardia em dores quase insuportáveis. Fora somente depois de entregar o Olho de Jade a Kurama que Liu o informara, com uma certa malícia: o medalhão, bem como o véu que o cobria, possuíam propriedades sacrossantas fortíssimas, e queimariam em contato com energias malignas. Kurama manteve seu youki o mais baixo possível, mas ainda assim, a joia reagira.

Queria parar, curar o veneno que o consumia e dificultava sua respiração, aplacar a ardência da mão, descansar o corpo e a alma, mas não podia. Sabia que em breve estariam a sua procura. O encontro inesperado com Botan no Palácio Celestial o dava certeza disso. A amiga nunca o trairia, mas em um caso como aquele, Kurama já não tinha tanta certeza.

Por outro lado, não podia continuar daquele jeito. Começava a se sentir mais fraco a cada passo que dava e precisava urgentemente aliviar as dores da queimadura — ou a mão ficaria inutilizável, se ainda não estivesse. Não queria soltar o medalhão, tampouco segura-lo com a outra mão e correr o risco de acabar com as duas machucadas. Precisava de alguém para manipular o Olho de Jade por ele, alguém sem energia maligna. Precisava de um humano.

Ou uma humana.

Alcançou o parapeito da janela do quarto de Kiki quase sem forças e torceu para estar aberta. Estava.

A garota acordou com um pulo e ficou chocada ao ver Kurama, ainda do lado de fora. O ajudou a entrar e, por via das dúvidas, trancou a porta do quarto.

Ofegante, o garoto despencou na cama, largando pela primeira vez o medalhão embrulhado no tecido branco. Kiki levou a mão à boca ao ver as marcas da queimadura. Deviam estar muito piores que Kurama imaginava.

Tudo que pediu foi meio copo d'água, que a menina prontamente atendeu. Com alguma dificuldade, separou algumas das sementes que carregava sempre consigo, as remexendo com os dedos até encontrar a que queria. Panaceia, a cura de todos os males, a mais rara do Makai. Seu estoque era tão limitado que só usava em ocasiões de vida ou morte. Como aquela.

Ele espremeu a semente, deixando a seiva escorrer para dentro do copo. A água ganhou uma cor acobreada e ele a tomou de um só gole, se permitindo fechar os olhos por um instante. Kiki tinha ido procurar algo para cobrir a queimadura da mão e o deixado sozinho no quarto. Quando ela retornou, com um punhado de gelo, gazes e esparadrapos, já começava a se sentir restabelecido.

— O que diabos aconteceu com você? — ela perguntou, tentando abafar a voz, enquanto enrolava desajeitadamente a gaze na palma de Kurama.

— É uma longa história — respondeu, se lembrando como algumas semanas atrás estiveram em situação completamente oposta, com ele a ajudando depois da garota aparecer de surpresa na sua janela.

— Bom, nós temos a noite toda.

— Não, eu não posso ficar aqui.

A menina rasgou um pedaço de esparadrapo com os dentes, e o grudou na gaze, a fixando na mão dele.

— Mas eu preciso da sua ajuda — Kurama adicionou.

— O que está havendo?

— Tenho como localizar Bozukan — ele disse, apontando para o amuleto com a cabeça.

A menina olhou para o embrulho, desconfiada.

— Foi isso que te queimou?

Kurama balançou a cabeça, em sinal afirmativo.

— Mas não vai te queimar. Só atinge demônios.

Ainda receosa, Kiki abriu o manto, revelando o Olho de Jade. Tocou de leve a imagem entalhada no centro, percorrendo seus traços. Não sentiu nada.

Já com gestos seguros, pegou com firmeza o medalhão e o abriu, deixando o brilho inundar seu quarto.

— Aqui — Kurama exibiu um pequeno frasco, com um líquido vermelho intenso que o enchia até a metade. Pingou apenas uma gota.

A garota acompanhou de perto, intrigada, e se surpreendeu quando viu a imagem se formar na frente dos dois.

Era Bozukan, em um festim diabólico em que devorava três corpos humanos de uma só vez. Kiki virou o rosto, enojada, ao ver o sangue escorrendo pelas presas afiadas do youkai.

A imagem se apagou.

Kurama voltou a abrir o frasco, despejando um pouco mais do líquido viscoso, que era imediatamente absorvido pela relíquia.

A cena reapareceu, dessa vez durando quase um minuto. Os dois comtemplavam em silêncio. Kiki, nervosa. Kurama, compenetrado.

— E agora? — ela perguntou quando o figura se desvaneceu diante de seus olhos.

— Agora eu preciso ir — ele respondeu, se levantando. Tinha uma ideia de onde Bozukan estava, se baseando pela estrutura do local. Com sorte, o localizaria ainda naquela noite. Mas para isso, teria que partir imediatamente.

— Espera!

Kiki fechou o medalhão, o embrulhando de qualquer jeito. Pegou um casaco que estava jogado sobre uma cadeira e o vestiu por cima do pijama.

— Eu vou com você — disse com firmeza, e, sem esperar resposta, foi em direção à janela.

Kurama não contestou.

E com um sentimento agridoce no peito, saiu atrás da menina.


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