As Crônicas de Pan Gu escrita por Nanahoshi


Capítulo 5
As Crônicas dos Reinos - Duas maldições e um inferno


Notas iniciais do capítulo

GRAZADEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEUS DEPOIS SÉCULOS BRIGANDO COM ESSE CAPÍTULO EU TERMINEI!!!
Saiu sofrido, suado e grandinho mas saiu!
É o último capítulo por agora que irá tratar de Nanahoshi e Kit. No próximo teremos personagens NOVINHOS EM FOLHA!
Espero que vocês estejam se envolvendo com a história, porque essa em especial está me dando um trabalho do caramba pra escrever.
Preciso muito da opinião dos meus lindos leitores, então comente, criticam, sugiram!
Beijos de luz:*



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Ruhama estava encolhida num canto de uma câmara feita de pedra. Sua irmã mais nova, Sarai, tremia feito uma vara verde agarrada ao seu braço.Estavam nos subterrâneos da cidade perdida, nos antigos túneis usados nas épocas mais sangrentas de Pan Gu. Agora, como a maioria da população desconhecia a existência desses túneis, era usada como depósito e esconderijo secreto da Família Real dos Selvagens. Assim que o ataque dos Sem-alma começou, os criados forma instruídos a seguirem para os túneis juntamente as princesas e qualquer outro residente do castelo.

—Hmmm-hmmmm... – gemeu Sarai tendo um outro violento ataque de tremedeira.

—Sshhhh... – chiou a outra princesa no tom mais gentil que pôde – está tudo bem, Sarai. Aqui eles não vão nos achar.

Perto delas, havia um círculo protetor de criados, seguido de outro formado pela Guarda Real particular do Rei. Bo era a criada mais próxima das duas meninas, e se ocupada de tentar acalmá-las ao mesmo tempo em que virava a cabeça em várias direções de acordo com os sons que ouvia.

Depois de algum tempo, os moradores do castelo começaram a ouvir um tropel de passos ao longe, mas com certeza estavam dentro dos túneis.  Um rebuliço desesperado se propagou entre eles.

—Acalmem-se. – ordenou um guarda Bárbaro. – Provavelmente são aldeões que refugiaram nos túneis também. Alguns ainda sabem da existência deles e até conhecem as passagens.

—Tomara que tenham tomado cuidado ao entrar. – resmungou venenosamente um sacerdote do Rei. – Se atraírem os Sem-Alma para dentro...

Ruhama sentiu um calafrio forte em sua espinha. Milhares de possibilidades apavorantes dançavam diante de seus olhos. E com relação aos aldeões, atrair os Sem-Alma para o esconderijo era a segunda pior possibilidade. E se eles encontrassem toda a população real ali dentro, como reagiriam? Afinal eles tinham fugido covardemente para os túneis sem se preocupar em evacuar os cidadãos. Se os dois grupos se encontrassem, era muito provável que começassem um motim ali mesmo. E encurralados como estavam, se eles estivessem em um número muito maior, os guardas não conseguiriam contê-los.

Sua irmã mais nova recomeçou a tremer ao seu lado.

—Vai ficar tudo bem.  – murmurou Bo num tom doce para a princesa. Em seguida ergueu o rosto bonito e olhou furtivamente para os lados.

—Meninas escutem. – a criada disse aproximando-se mais das duas princesas.  – Se algo acontecer, por favor, sigam estritamente o que eu disser. E se eu não tiver tempo de dar ordens, fujam o mais rápido que puderem.

—Mas-

—Sem “mas”, Ruham- digo, Alteza. – a criada suspirou. Estava evitando ao máximo demonstrar medo ou nervosismo perto das meninas, mas em seu íntimo estava apavorada.  

A pequena selvagem voltou a se encolher mais próxima de sua irmã enquanto pensava nas possibilidades terríveis que poderiam acontecer.

Depois de alguns minutos, um estranho som foi ouvido ao longe. Todos se agitaram, mas fizeram o máximo de silêncio para tentar identificar a origem do som.  Aos poucos, o pequeno burburinho foi aumentando, até que finalmente se tornou claro o suficiente para ser distinguido.

Passos. Dezenas deles.

E não pareciam passos amigáveis...

Quem seria?

Bo estremeceu onde estava quando um arrepio lhe percorreu os braços.

—Lembrem-se do que eu falei...

***

Nanahoshi havia perdido completamente a noção do tempo. Nem sequer prestava atenção para onde estava correndo. Suas pernas se moviam numa corrida frenética e cega. Seus olhos não paravam de lacrimejar, e seu rosto estava desconfortavelmente molhado e impregnado de fuligem. Atrás dela, Kitten só conseguia correr porque a amiga lhe puxava pelo braço. Gemia sem parar com os olhos vermelhos e extremamente úmidos, e mal conseguia respirar.

No meio da corrida, a luz foi gradualmente diminuindo até que finalmente se extinguiu. Foi somente nesse momento que Nana parou de correr para prestar atenção onde estavam.

Haviam entrado nos túneis.

Inconscientemente, seu corpo a levara para o lugar que julgava mais seguro para fugir dos desalmados.

FIQUEM VIVAS!!!

A pequena tomou um enorme susto e olhou para os lados, atônita, e depois para o fundo do túnel. Ela jurara que ouvira o grito da mãe de Keyla de forma tão clara que ela parecia estar ali.

Suspirou com dificuldade. O ar pareceu tremeu ao passar por sua laringe.

Eu preciso manter a Kit a salvo. A Dona Keyla pediu pra gente ficar viva...

E lembrando-se do apelo desesperado da domesticadora, a selvagem aprumou-se e recomeçou sua corrida para dentro dos túneis.

Eu definitivamente não vou permitir que nada aconteça com a Kit...

*

Quando suas pernas não agüentavam mais correr nem um centímetro, Nana escolheu um túnel menor e puxou a amiga contra a parede, desabando logo em seguida. A outra caiu de joelhos cegamente sem interromper o choro.

—Kit... - murmurou Nanahoshi com tristeza.

A pequenina se aproximou da amiga, puxando-a para que se sentasse apoiada na parede. Feito isso, ela passou desengonçadamente o braço direito ao redor do ombro da amiga e a apertou suavemente. Kit virou a cabeça no mesmo instante, apoiando-o no ombro da outra.

—Kit, tenta dormir um pouco. Eu vou ficar de vigia.

A outra gemeu e se aninhou mais perto da amiga. Aos poucos sua respiração foi ficando mais lenta, os gemidos sumiram e o corpinho sujo de Kitten finalmente relaxou.

Quando teve certeza que a outra dormia, Nana parou para analisar onde estavam. Era um túnel baixo, a terra era bastante úmida e pouco batida. Não havia luz, e elas só haviam conseguido se orientar ali graças aos seus outros sentidos muito bem desenvolvidos.

—Acho que nunca vim tão fundo nos túneis... – sussurrou a selvagem para ela mesma.

Constatando isso, ela sentiu seus ombros relaxarem um pouquinho.

Estando tão fundo nos túneis, é muito pouco provável que alguém nos ache aqui embaixo. Esses túneis formam um labirinto de verdade, e quem não os conhece se perde muito facilmente.

Ela franziu a testa e farejou.

Não estou sentindo nenhum cheiro estranho... Parece seguro aqui, mas...

Ela virou a cabeça na direção de Kit.

Até quando vamos ficar escondidas aqui?

Nesse momento, um ronco ecoou no túnel onde estavam.

—Ah... – suspirou Nana.

Estava morta de fome. Nos últimos dias, alimentara-se muito mal, tanto que fora obrigada a roubar. Tinha medo de que a falta de alimento a fizesse apagar do nada, principalmente em algum momento crítico. E pelo desenrolar dos acontecimentos, ainda precisaria de muita energia. Se ficassem ali embaixo tempo demais, ficariam esfomeadas e talvez nem conseguissem sair dos túneis antes de desmaiar.

Sua mente se voltou para o motivo de estarem escondidas ali embaixo: os Sem-Alma.

As lembranças do que vira na Vila da Ponte Quebrada voltaram com tudo, preenchendo a escuridão do túnel. Os gritos a atordoaram, e o cheiro que o fogo-fátuo exalava voltou a fazer arder suas narinas.

Balançou a cabeça com energia tentando espantar aquelas lembranças horríveis.  Entretanto, as lágrimas de raiva e medo voltaram a brotar do canto de seus olhos.

É melhor eu tentar dormir também. Só um cochilo não vai fazer mal. Qualquer barulhinho ou mudança de cheiro eu com certeza vou acordar...

Recostou-se na parede do túnel, aninhando-se mais próxima de Kit. Sua mente ainda fervilhava com as terríveis lembranças daquele dia, mas aos poucos elas se tornaram difusas demais e seus pensamentos se acalmaram...

*

—Seu velho coroca! Dá pra dizer onde estamos indo?

—Já disse pra ter paciência, filhote de lobo.

—Mas isso não-é-justo! Já faz horas que estamos andando! Meus pés estão doendo e estou morta de fome! E eu só estou querendo saber pra onde você tá me levando!

Lopine continuou andando em silêncio, arrastando os pés cansados em sintonia com o tuc-tuc de sua bengala.  Nanahoshi amarrou a cara e continuou caminhando logo atrás do velho homem-lobo. Depois de algum tempo em silêncio, tentou obter a informação mais uma vez:

—Pra quê você ta me levando se não tem nem a decência de me dizer pra onde estamos indo?

—Mas isso é óbvio, sua insolente. A nossa viagem é longa. Eu sou velho e não tenho mais capacidade para me defender. Você é jovem e saudável. Se alguma coisa acontecer, vai me defender.

—O QUÊ? Se liga, seu velho sem noção! Eu só tenho seis anos!

—Azar o seu.  Para sobreviver aqui, não existe idade.

—COMO É QUE É?

Lopine havia finalmente acabado com o pavio de paciência da pequena Nanahoshi, e a menina partiu pra cima do velho. Quando estava para agarrar seus ombros e derrubá-lo no chão, o velho parou abruptamente e bateu a bengala no chão. Com um simples movimento, ele virou a mão para trás e segurou a cabeça da pequena selvagem, e com a outra que segurava a bengala, ergueu o objeto até que pudesse fazer um sinal de silêncio.

Nana parou de se debater e prestou atenção. O que chamara a atenção do velho?

Sem aviso, o velho largou o rosto da menina, fazendo-a estatelar-se no chão, e avançou para uma enorme pedra, abaixando-se atrás dela.

—Faça silêncio! – resmungou ele fazendo um sinal para que ela o seguisse.

—FOI VOCÊ QUE COME-

—SSSHHHH!!!

Ela finalmente parou de reclamar e se abaixou juntamente com Lopine. O selvagem lupino ergueu-se devagar e espiou sobre a rocha.

—Está ouvindo?

Nana negou com a cabeça.

—É o som de um incêncio... E pelo cheiro do ar... Não é um incêndio qualquer...

Ele saiu furtivamente de trás da rocha e avançou a passos rápidos para mais fundo no vale de rochas que se encontravam. Nanahoshi ergueu-se aos tropeços e correu para alcançá-lo.

Francamente, esse velho é um folgado. Não tem força pra se defender, mas anda quilômetros sem se cansar e ainda sai correndo desse jeito.

O vale fazia uma curva para a esquerda, e sobre as pedras via-se de longe um brilho anormalmente esverdeado.  Um cheiro estranho e pútrido invadiu as narinas da pequena selvagem, fazendo seu nariz arder.

—Que cheiro é esse? – perguntou ela tapando o nariz e a boca.

Lopine não respondeu. Continuava avançando rapidamente.

Quando estavam próximos da curva do vale, o velho diminuiu o passo e se aproximou mais das rochas que formavam a parede do vale até que finalmente parou. Nana se aproximou cambaleante, tonta devido ao cheiro nauseabundo. 

—O que foi? – a menina tornou a perguntar ainda com o nariz tampado.

Ele ergueu a mão bruscamente num sinal de silêncio. Ficaram ali parados, completamente quietos, por aproximadamente três minutos. Depois, Lopine recomeçou a avançar, mas de forma mais contida e cautelosa. Fez um sinal com os dedos para que Nanahoshi o seguisse, e eles adentraram a cena banhada pelo brilho verde.

Ao contemplá-la de frente, a expressão do velho se tornou profundamente sombria.

—Nanahoshi – disse ele num tom solene. – Não toque de maneira alguma qualquer dessas labaredas verdes.

A cena era apavorante. Haviam várias estacas enfiadas no chão, algumas formando arranjos que lembravam fogueiras altas com poucas toras. Também haviam totens de madeira apodrecidos e manchados e enfeitando esses itens de madeira, dezenas de crânios se espalhavam ali, além de esqueletos humanóides  quebrados e manchados de sangue. E sobre cada peça calcária que um dia pertencera a alguém,  uma labareda esverdeada dançava de forma fantasmagórica.  Como havia dezenas delas, elas haviam tomado aquela parte do vale, e estavam incendiando tudo ali, até mesmo as rochas.

—Mas o quê...? – Nanahoshi começou a perguntar, mas estava tão apavorada que sua voz desapareceu.

—Fogo-fátuo. – respondeu Lopine num tom sombrio. – É um fogo fantasmagórico que queima as almas.

Nana olhou assustada para o velho. Ele prosseguiu sua explicação:

—Quando uma pessoa entra em contato com as chamas, ela aparentemente não afeta o corpo, mas na verdade ela está consumindo sua alma. As pessoas mortas por fogo-fátuo estão condenadas à agonizar para sempre no submundo do universo, o lugar onde as piores criaturas são geradas... e também punidas. 

“Só existem três motivos para manifestação de fogo-fátuo. O primeiro é ter no local o túmulo de uma pessoa que foi extremamente má quando viva, afinal as chamas são geradas por sentimentos e intenções ruins.  A segunda é que nesse local tenha acontecido alguma tragédia tão ruim, que as vítimas morreram amaldiçoando seus assassinos ou outra coisa tão intensamente que gerou energia negativa suficiente para iniciar um incêndio desse fogo fantasmagórico. Qualquer ato de barbaridade que gere muita energia ruim gera também o fogo amaldiçoado. E  o terceiro e último é  que o lugar tenha sofrido um ataque ou até mesmo uma simples passagem de desalmados. Quanto mais terríveis forem eles, o simples fato de passarem por um lugar já deixa a energia suficiente para desencadear um incêndio.”

Nanahoshi analisou as labaredas verdes que pulavam de corpo em corpo. Pareciam pequenos fantasminhas travessos inofensivos, mas a energia ruim que emanavam, além do cheiro pútrido de morte quebravam qualquer impressão inocente.

—Você pode ouvir, Nanahoshi? – velho virou a cabeça na direção de uma das labaredas e suas orelhas ficaram muito esticadas, como se ele fizesse um enorme esforço para ouvir.

Ela negou com a cabeça.

—Talvez não seja suficiente para que você escute. Eu escuto por ter experiência e mais sombras em meu coração do que você, que é jovem e inocente. As chamas do fogo-fátuo também emitem os sons dos gritos daqueles que queimaram. Como elas estão muito baixas, provavelmente a chacina que aconteceu aqui já é muito antiga ou talvez os espíritos tenham perdido sua força ruim.

O rosto do velho lobo voltou a ficar contorcido de forma extremamente sombria.

—Nanahoshi, eu vou lhe ensinar uma coisa que quero que leve para o resto da vida.

A selvagem engoliu um seco.

—Assim como eu disse anteriormente, o fogo-fátuo queima as almas das pessoas, amaldiçoando-as a sofrer eternamente no submundo. Esta é uma das maldições que ele é capaz de jogar sobre nós, mortais. Entretanto existe uma segunda.

Dito isso, ele segurou os ombros da menina e virou-a de costas para o fogo-fátuo, e os dois caminharam de volta pelo caminho que haviam vindo.

—Tente ao máximo evitar contato com essas chamas. Até mesmo visual. Só de estar na presença delas, elas já estão nos amaldiçoando.

—Como assim?

—Você percebeu que ele exala vários tipos de coisa: energia ruim, um cheiro de morte, sons de desespero... Ele estimula todos os nossos sentidos com coisas malignas. Isso é absorvido pelo nosso corpo e reflete na nossa alma. É uma maldição que se instala em nós lentamente à medida que temos contato com esse fogo.

—E o que essa maldição faz exatamente? – perguntou a menina com um arrepio correndo-lhe o corpo.

—Corrompe nosso espírito lentamente, alimentando os sentimentos ruins que temos, o lado escuro do nosso coração. Se não prestarmos atenção e não tivermos autoconhecimento, seremos gradualmente tomados pelo mal até nos tornarmos servos da escuridão... assim como os Sem-Alma.  Para mim, esta é a pior maldição, pois transforma pessoas boas em monstros. Além disso, quanto mais você se deixa levar pelos sentimentos malignos, mais rápido essa maldição te consome. Isso acontece principalmente quando perdemos pessoas para o fogo-fátuo, ou em algum lugar que haja um incêndio. O buraco deixado por ela é preenchido pela maldição, e as pessoas começam a se transformar...

Eles avançavam rapidamente pelo vale, se distanciando do local da chacina.

—Não vá esquecer, hein?

—Hu-hum... – ela concordou com um aceno hesitante da cabeça.

Enquanto avançavam, um novo som chegou até eles.

Tap, tap, tap, tap...

Eram passos.

—O que é isso? – a menina se encolheu, recuando do caminho.

—Tem alguém se aproximando. – anunciou Lopine trazendo a bengala para frente do peito. – Esteja pronta para lutar ou fugir.

Nanahoshi voltou a engolir um seco. Seus músculos se enrijeceram e ela arreganhou os dentes instintivamente.  

O som dos passos aumentava gradualmente, mas parecia que os donos daquele som nunca o alcançavam.

—Prepare-se, Nanahoshi.

Os passos agora estavam muito próximos.

Ao longe, Nana ouviu outro som. Uma voz muito baixa murmurava.  Apurou os ouvidos. Ela ainda não conseguia entender.

Mas assim como o som das batidas dos pés que se aproximavam, a voz aumentou de volume também, só que mais rapidamente. Em determinado momento, a menina conseguiu ouvir claramente.

Alguém a chamava.

—Nana! Nanahoshi!

Estava se aproximando.

—NANA! NANAHOSHI!

Subitamente, uma pancada em seu peito fez a pequena selvagem arfar e tudo escureceu.

***

Estavam todos tensos. O tropel se aproximava a cada minuto, ora parecendo que se distanciava, mas logo os sons recomeçavam a aumentar de volume. 

Entretanto, o que chegou primeiro foi o cheiro.

Ao sentir seu nariz arder, todo o corpo de Bo arrepiou-se.

—São eles.

Levantou-se abruptamente e segurou a mão de Ruhama e Sarai.

—Eles estão chegando! – anunciou numa voz contida para que não a escutassem dos túneis.

Os guardas se levantaram prontamente.

—Homens em formação! – ordenou o capitão da Guarda Real.

Os habitantes do castelo se levantaram  e se organizaram em grupos. Os sacerdotes e anciãos correram para um canto da caverna, e os soldados formaram arcos de proteção ao redor deles.

—Haja o que houver, não permitam que os Sem-Alma alcancem as princesas!! – o capitão agora bradou com toda força de seus pulmões, indiferente à aproximação dos monstros. 

Dito isso, aproximou-se de Bo e disse:

—Conto com você.

A criada assentiu e segurou a mão das princesas com um pouco mais de firmeza. Ruhama e Sarai assistiam a tudo num silêncio amedrontado.

—Vamos. – ordenou Bo com a voz forte. 

Seguindo pelo túnel oposto ao dos ruídos, Bo iniciou a corrida o mais rápido que podia sem que as princesas começassem a tropeçar. Evitava correr em linha reta, virando a cada duas entradas aleatoriamente para direita ou esquerda. A única coisa que queria era se distanciar ao máximo dos desalmados, e para isso teriam que se embrenhar profundamente no labirinto de túneis subterrâneos.

Quando a fuga começou a se prolongar demais, elas começaram a se sentir zonzas por causa do medo e da fadiga.  A noção de tempo e espaço se perderam, e a única coisa que elas sabiam é que deviam continuar fugindo.

Depois do que pareceram horas, Sarai soltou um alto gemido e parou de correr, sendo arrastada por alguns metros pela criada. Quando Bo parou, Sarai continuou suspensa apenas por seu braço que ela segurava com muita força.

—Alteza! Alteza! A senhorita está bem? – ela se abaixou e pegou a pequenina no colo. Aproximou-se da parede e recostou-se aninhando Sarai.

A princesa havia fechado os olhos, e sua respiração era muito leve.

Ruhama permaneceu em silêncio observando a irmã.

—Alteza! – Bo deu leves tapinhas na bochecha da caçula.

Ela gemeu em resposta. Aos poucos, piscou lentamente os olhinhos, gemeu e disse com voz fraca:

—Bo, pode me chamar de Sarai.

A criada suspirou aliviada.

—Vamos descansar um pouco aqui. Estamos muito fundo nos túneis, então a chance de nos encontrarem é bem baixa. Mas, mesmo assim, não vou baixar a guarda. As senhoritas podem descansar enquanto eu fico de vigia.

—Mas Bo, você também precisa descansar! – protestou Ruhama. – Olha o quanto a gente correu! E foi você que foi puxando a gente...

A selvagem se virou para as duas princesas e fitou-as com um carinho profundo.  Muitas vezes pegava-se refletindo o quão diferentes elas podiam se tornar de seu pai, o Rei dos Selvagens.

Erguendo as duas mãos, pousou cada uma no topo da cabeça das meninas.

—Vai ficar tudo bem. Vocês descansam agora, depois trocamos.

Elas hesitaram, mas assentiram.  Depois se aninharam no chão, escorando-se na parede e fecharam os olhos. Bo se acomodou perto das duas e dedicou-se a prestar atenção.

Estavam completamente perdidas nos túneis subterrâneos, sem nenhuma chance de encontrarem uma saída. Além disso, estavam sem suprimentos para sobreviver. Sem água e comida, o tempo que agüentariam ali seria bastante limitado. A única esperança que tinham era que o ataque dos Sem-Alma fosse finalmente anulado e que o exército montasse equipes de busca para procurá-las nos túneis.

Ao cogitar a idéia, lembrou-se dos outros criados, soldados, anciãos e sacerdotes que haviam ficado na caverna.

Será que estariam vivos?

Mil perguntas e medos se misturavam num redemoinho furioso dentro da mente de Bo, e a selvagem começou a sentir o peito apertado e as pálpebras pesarem.

Droga, eu não posso dormir...

Os minutos se arrastaram, e Bo começava a se entregar ao sono. Estava entre o sono e a vigília quando um estranho cheiro fez seu nariz franzir-se.

O que é isso? Eu não ouvi som nenhum de alguém se aproximando... E nesse túneis, os passos ecoam muito...

Ela levantou de onde estava e colocou-se em posição defensiva.

—Quem está aí? – arriscou.

Nenhuma resposta. Apurou todos os sentidos e tentou captar qualquer coisa que denunciasse alguma presença.

O cheiro começava lentamente a se intensificar, e lhe causava uma sensação estranha. Por isso, abaixou-se e acordou as meninas.

—Altezas, acordem!

As meninas piscaram, zonzas de sono e cansaço, e olharam meio vesgas para a selvagem mais velha.

—Levantem! – ela agarrou os ombros de Sarai e chocalhou-a. Fez o mesmo com Ruhama.

—Qual o problema? – perguntou a princesa mais velha bocejando.

—Eu senti a presença de alguma coisa nos túneis. Estejam prontas para fugir.

Ouvindo isso, as duas despertaram subitamente, colocando seus sentidos em alerta. O mesmo cheiro que Bo detectara invadiu a narina das pequenas.

—Esse cheir-

Mal Ruhama começou a falar, um vulto se agitou na escuridão, e o cheiro pútrido de morte inundou o cérebro das três selvagens.

—Sem-Alma! – berrou Sarai.

—SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS- SSSSSSSSSSHHHHHHAAAAA!!!

Um silvo terrível ecoou nos túneis e Bo finalmente conseguiu distinguir um pouco da forma do monstro. O ar fugiu involuntariamente de seus pulmões enquanto via a enorme Serpente Infernal rastejando pelo túnel na direção delas.

—RUHAMA! SARAI! FUJAM!

As meninas permaneceram no mesmo lugar, congeladas de medo.

—EU DISSE PRA VOCÊS FUGIREM!

—E você, Bo? – conseguiu perguntar a caçula.

—Vou ficar para retardá-la. Vocês têm que fugir agora!

—Mas-

—LEMBREM-SE DO QUE EU DISSE!

As duas se entreolharam aterrorizadas. Ruhama começou a balançar a cabeça.

—VÃO! – e dito isso, Bo empurrou-as com toda a força que tinha na direção oposta a da serpente. Movidas mais por instinto e medo do que vontade própria, as princesas começaram a correr.

—RUHAMA! SARAI! – elas ouviram a doce governanta gritar. – FIQUEM VIVAS!

Lágrimas involuntárias rolaram pelo rosto das duas enquanto elas corriam para mais fundo no labirinto de túneis.

***

—Nana, Nana! Acorda! 

Kitten balançava a amiga freneticamente agarrada a seus ombros.  A outra por sua vez ainda estava meio inconsciente, com um filete de saliva escorrendo-lhe pelo canto da boca.

—Hmmm... Maaaaa... – gemeu a que dormia.

—Caramba! ACORDA! – perdendo a paciência, Kit lhe deu um bom cascudo no topo da cabeça, que finalmente arrancou a outra selvagem de seu torpor.

—FUJA KIT! – ela berrou pulando de pé em posição de ataque.

Ela piscou, vendo apenas a escuridão do túnel. Seus olhos aos poucos começavam a se acostumar, e ela pôde ver vagamente a silhueta da amiga.

—Nossa Kit! Desculpa... Eu acabei pegando sono...

Kitten balançou a cabeça.

—Tá tudo bem, você precisava descans... SSH!

Ela se jogou contra a companheira, prensando-a na parede.

—Está escutando?

Nanahoshi piscou atônita com a pergunta da amiga, mas logo reposicionou suas orelhas de lobo e prestou mais atenção nos sons. Ao longe, ouviu claramente o som de passos rápidos e leves avançando pelos túneis. Um arrepio fez seu corpo estremecer.

—São Sem-Alma?

—Eu não sei. – murmurou Kit. – Já faz um tempo que estou escutando esses passos. Ora eles ficam mais altos, depois se distanciam, somem e reaparecem. Quem quer que seja, está muito mais perdido e desesperado do que nós.

Nana voltou a prestar atenção. Dessa vez os passos aumentavam, aproximando-se cada vez mais. Fechou os olhos e dedicou-se a isolar o som em sua mente.

—São pessoas. E são duas. – anunciou ela depois de alguns segundos.

—Eu também pensei que fosse. Os passos estão leves demais para serem de desalmados, além de que não senti nenhum cheiro ainda.

Elas ficaram em silêncio por alguns minutos. Depois, Nanahoshi falou:

—O que vamos fazer?

—Vamos continuar escondidas aqui – respondeu a outra depois de hesitar. – Mesmo que sejam selvagens, vamos evitar nos expor muito. Além disso, quanto maior o grupo, maior a chance de eles nos encontrarem.

Nana engoliu um seco.

—Tudo bem.

Voltou a escorar-se na parede, escorregando até cair sentada. Entretanto continuou atenta ao som.

—Estão vindo pra cá. – disse Kit se afastando mais para o fundo do túnel. Ela estendeu o braço e puxou Nana, e as duas recuaram.

Como elas previram, os donos dos passos estavam na rota do túnel que cruzava mais à frente com o que elas estavam. Permaneceram em completo silêncio esperando que eles passassem.  Quando estavam muito próximos, as duas foram capazes de ouvir a respiração arfante de duas pessoas, que aparentemente eram crianças.

—Ruhama. – arfou uma voz infantil com um forte tom de choro. – Eu não agüento mais...

—Vamos Sarai! – ralhou uma outra voz, um pouco mais madura, mas ainda assim infantil e com o mesmo tom de choro. – Bo ficou para trás pra nos salvarmos! Precisamos nos distanciar o máximo que pudermos!

Ruhama? Sarai? Onde eu já ouvi esses nomes?, pensou Nanahoshi.

É impressão minha ou eu já ouvi esses nomes antes?, perguntou-se mentalmente Kitten.

Mais alguns instantes e as duas meninas passaram zunindo pelo túnel adiante, e o som de seus passos começou gradualmente a se distanciar. Depois de alguns segundos, Nanahoshi finalmente se lembrou onde já escutara aqueles nomes.

—São as princesas, Kit! Elas também estão fugindo!

A outra permaneceu em silêncio.

—Vamos segui-las!

—Pra quê?

—Ora, elas não conhecem os túneis. Se elas continuarem correndo do jeito que estão, vão acabar virando no túnel errado e voltar para a superfície ou até mesmo...

A voz de Nana foi morrendo ao se lembrar do horror que sentira na presença dos Sem-Alma.  Ela se levantou e encaminhou-se para o túnel pelo qual elas seguiram. Os passos ainda estavam próximos.

—Eu vou atrás delas.

—Nana, não! Não podemos nos separar!

A menina hesitou. Prometera a si mesma que não deixaria nada acontecer com Kitten, mas deixar aquelas duas correndo cegamente  para a morte definitivamente não fazia parte de sua política.

—Não posso deixar que elas caiam nas mãos dos Sem-Alma. Eu tenho certeza que se os papeis estivessem invertidos, elas nos ajudariam.  

—Mas Nana...

Ela permaneceu em silêncio. Lembrou-se de Keyla e Maddox se sacrificando para que os outros fugissem.

—Eu só não quero que mais pessoas inocentes morram.

Ao dizer isso, avançou para o túnel sem hesitar. Aprumou-se mexendo os ombros e começou a correr. Mal se passaram alguns segundos e ela ouviu passos atrás de si.

Kit se juntara a ela.

*

Depois de alguns minutos seguindo o som dos passos das princesas,  Nana começou a reconhecer a rota que tomavam.

—Uh-oh.

—O que foi? – perguntou Kit seguindo-a em seus calcanhares.

—Está reconhecendo esse túneis?

Kit analisou em volta e repassou mentalmente os últimos pelos quais passaram. Os túneis agora estavam menos empoeirados, com tochas que ainda ardiam, o que significavam que estavam próximas à superfície.

—Se elas continuarem assim, vão acabar saindo dos túneis, e com azar, bem no meio de um bando de desalmados.

As duas estremeceram em meio à corrida.

—Vamos mais rápido. – sugeriu Kitten apertando o passo.

Mesmo acelerando as duas perceberam que não conseguiriam.

—Droga! – resmungou Nana entre dentes enquanto alongava as pernas.

—Elas vão sair!

Tarde demais. A luz do dia lá fora inundou o túnel à direita, e os passos das princesas seguiam diretamente para lá.

—Vamos Kit! Se a gente alcançá-las, podemos levá-las pra um local seguro. Depois fugimos.

A outra assentiu.

—Não saia de perto de mim, ta? – pediu Nana a Kit.

—Pode deixar.

Juntas elas reduziram a distância entre elas e o final do túnel e saltaram para fora.

Inicialmente a luz do dia cegou as duas pequenas, mas aos poucos, com seus olhos se acostumando, elas contemplaram o cenário.

—Isso é... – Kit mal conseguia falar de tanto medo.

 Estavam as duas congeladas ao pé de uma das colunas da entrada do palácio contemplando a praça central da cidade.

—O inferno. – completou Nanahoshi com os olhos vidrados de pavor.

O exército dos selvagens lutava impiedosamente contra os Sem-Alma. O centro da Cidade Perdida agora virara palco de um verdadeiro massacre de guerra, com cadáveres e pedaços deles formando um tapete irregular no chão, manchas de sangue colorindo pedras e edificações destruídas. O Rei estava no meio da plataforma de teletransporte demolida, brandindo seu machado e decapitando um desalmado atrás do outro.

—AVANTE BÁRBAROS! – berrava ele. – FEITICEIRAS: FAÇAM A INVOCAÇÃO CONJUNTA DAS 12 PRAGAS!

Assustadas como estavam,  Nanahoshi e Kitten haviam se esquecido completamente do motivo de terem saltado para a superfície. A primeira a se mexer foi Nana.

—Kitten! – ela exclamou. – As princesas!

Ela apontou o braço para um canto próximo à passarela que levava a um santuário atrás do castelo. Ruhama e Sarai estavam encolhidas ali, mas não ficaram em paz por muito tempo. Uma orda de desalmados percebeu a presença delas e avançou. O que estava mais a frente era um Cavaleiro Sem-Cabeça.

Tudo aconteceu rápido demais.

Nanahoshi se precipitou gritando. Kit tentou impedi-la, mas esticou os braços tarde demais. Ela avançou diretamente para onde as princesas estavam, sem sequer hesitar, e parou derrapando diante delas. Os desalmados estavam apenas a alguns metros.

Estando ali diante delas, Nana nunca teve tanta certeza do que realmente queria do fundo do coração.  

Várias vozes encheram sua cabeça.

“S-Sem-Alma?”

“São zumbis amaldiçoados que voltaram do submundo para destruir a criação de Pan Gu...”

“Onde estão os meus pais?”

“...Ficaram para retardar os Sem-Alma!”

“Não interessa! Salve sua pele! Que os tolos fiquem pra trás!”

“MAMÃE! PAPAI!”

“FUJAM!”

“Obrigada por salvar minha filha...”

“FIQUEM VIVAS!”

Eu não quero mais... QUE NINGUÉM MORRA!

Gritando isso em sua mente, Nana encarou os Sem-Alma que avançavam e ergueu os braços.

—PAAAAAREM! – ela berrou com uma força que jamais poderia caber numa criança.

Kitten ergueu a cabeça enquanto corria. Os desalmados estavam quase chegando. Não ia dar tempo  nesse ritmo.

“Kitten! Hahahahaha!”

“Não saia de perto de mim, tá?”

Olhando da amiga para os monstros, Kit viu o que acontecer.

Nanahoshi iria morrer na sua frente.

—NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOO!  

Um ódio insano explodiu no peito de Kitten. Foi tão violento que ela se curvou na direção do chão. Ao mesmo tempo, ela viu o cavaleiro desalmado alcançando sua amiga e empinando o seu cavalo esquelético. Sua lança de ossos subiu.

Foi nesse momento que ela sentiu o tempo desacelerando. Enquanto corria, ela percebeu que não daria tempo. Quando achou que Nana estava condenada, ela finalmente reparou nos olhos da amiga.

Ela encarava diretamente os Sem-Alma. Sem medo. Sem hesitação. 

A força do olhar era tão forte que quase a fez recuar. E foi exatamente o que aconteceu com o desalmado. Por apenas um segundo, ela viu as chamas dos olhos do cavalo esquelético tremerem inseguras e o braço do cavaleiro hesitou no ar.

Era desse segundo que ela precisava.

PAPAI!, ela ouviu o próprio grito de desespero chamando pelo pai.

FUJAM!, a voz desesperada da mãe voltou a berrar em sua cabeça.

E essas vozes... ela jamais poderia ouvi-las em outro lugar a não ser em sua cabeça porque... Seu pai e sua mãe... Estavam mortos.

E diante dela, a sua melhor amiga estava prestes a...

—GRAAAAAAAAAAAAAAAH!

Uma explosão de fúria impeliu-a do chão e ela saltou sobre o monstro, derrubando o no chão. O monstro, pego de surpresa, demorou muito para reagir, o suficiente para que Kit agarrasse sua lança e enfiasse em seu peito.

Com a queda do cavaleiro, Nana foi arremessada para trás sobre as princesas, que rolaram para mais longe do grupo que enfrentava.

A selvagem levantou atônita, ainda não acreditando no que acabara de acontecer.

—KIT! – berrou desesperada procurando a amiga.

Quando se virou, seus membros caíram debilmente ao lado do corpo e seus olhos se arregalaram dolorosamente.

Kit lutava contra os desalmados, pulando sobre eles e os estraçalhando, ora usando suas próprias armas, ora usando suas garras e dentes.  O cabelo negro azulado parecia um espírito revolto oscilando entre os monstros, e seus braços delgados pareciam serpentes albinas furiosas manchadas de rubro.

Nana sentiu uma súbita ânsia de vômito e curvou-se, vomitando bile no chão revolvido com suor e sangue.

—Que... inferno... é esse? – ela gemeu num tom doentio segurando a cabeça entre as mãos.

Aos poucos ela se virou novamente para a cena. Nada mais importava. A única coisa de que ela tinha consciência é que sua amiga se transformava diante de seus olhos no monstro mais assustador que ela já vira.

Matar alguém era terrível, e os Sem-Alma sabiam disso. Por isso, quando se matava um desalmado, tinha-se a impressão de estar matando uma pessoa. Eles soltavam guinchos assustadoramente humanos, que contrastavam demais com sua aparência monstruosa. Mas mesmo assim, poças e esguichos de sangue polvilhavam a terrível luta. Num determinado momento, mal se podia distinguir os traços de Kit por causa da enorme quantidade de sangue que cobria seu corpo. Urrando, ela seguia com a carnificina:

—Morram! Morram!

Era isso que ela bradava incansavelmente em sua chacina. Parecia ter tomado tanto gosto pela matança que agora ela dispensava as armas. Arrancava os membros dos monstros e depois os golpeava na cabeça com eles.

Nana não conseguia absorver. Aquilo parecia terrível e surreal demais.

Uma nova ânsia acometeu sua barriga e ela voltou a vomitar bile.

Estava zonza. Tudo começava a se transformar num borrão.

O que ela estava fazendo ali? O que estava acontecendo? Onde elas estavam?

—Kit. – ela chamou baixinho.

Ela tentou erguer a cabeça. Borrões e gritos dançavam diante dela.

Estava tudo tão... verde.

De súbito, um ponto de sua mente clareou.

—Preciso sair daqui. Preciso tirar todo mundo daqui. - a frase se formou sozinha em sua língua.

Ela estava começando a se lembrar de algo muito importante. Algo que ela sabia que devia lembrar acima de tudo.

Verde... Fantasma... Fogo...

Piscou. Abriu bem os olhos.

Meu Deus! Como fora burra! O espetáculo sangrento lhe entorpecera de tal forma que ela se esquecera completamente com o que estavam lidando. Sem-Alma trazem fogo-fátuo. E o fogo-fátuo queima as almas.

Olhou em volta. A cidade estava cheia de focos de incêndio fantasmagórico. Parecia até que o fogo tinha manipulado a mente da garota para que ela não o notasse. E agora elas estavam literalmente no meio de um inferno de fogo-fantasma.

Ela se virou para as princesas.

—Fujam para os túneis! Saiam daqui o mais rápido possível e não toquem no fogo verde! – ela berrou desesperada.

E com isso avançou na direção do massacre orquestrado por sua melhor amiga.

—Kitten, nós temos que sair daqui! Ou seremos amaldiçoadas pelo fogo dos Sem-Alma!

Ela sequer fez um sinal com a cabeça que a escutara. Continuava a pular sobre os monstros que não paravam de aparecer.

—KIIIIIIIIIIIIT!

Nada. Ela estava completamente absorta em sua chacina.

Foi aí que ela percebeu.

“É uma maldição que se instala em nós lentamente à medida que temos contato com esse fogo. [...]Corrompe nosso espírito lentamente, alimentando os sentimentos ruins que temos, o lado escuro do nosso coração. Se não prestarmos atenção e não tivermos autoconhecimento, seremos gradualmente tomados pelo mal até nos tornarmos servos da escuridão... assim como os Sem-Alma.”

A voz do velho Lopine soou clara em sua mente.

E ela se lembrara do sonho tarde demais.

—KITTEN!! – ela berrou com mais força. – NÃO FAÇA ISSO! Você está fazendo o que eles querem!

Ela tentou avançar, mas bem na hora, um Inquisidor do Pântano sem a cabeça desabou diante dela, forçando-a recuar.

Kitten, você não é assim! Pare com isso!

—GROOOAAAAR! – ela urrou e esmagou assustadoramente o crânio de um Leão Caçador de Almas. O Sem-Alma desabou com sangue jorrando de sua boca.

—Kitten... – Nana disse com a voz fraca, as esperanças se esvaindo.

Sua amiga... Que tanto quisera proteger... Havia se transformado num... num...

Monstro.

Nesse instante, um Fantasma-Líder Venenoso agarrou Kitten com uma de suas quatro mãos e arremessou-a contra o chão violentamente. Os Sem-Alma se afastaram um pouco para se recompor com a exceção do que atacara a selvagem. Ele avançou, mas a brecha já fora criada.

Nanahoshi correu e se colocou ao lado da amiga.

—Kit! Vamos! – ela segurou o braço da outra e a puxou para trás.

Ela nem teve tempo de reagir.

Sentiu uma pontada aguda na boca do estômago, e quando percebeu, recebera uma cotovelada em cheio na barriga e foi arremessa longe contra as paredes que sustentavam a passarela. E quem desferira o golpe...

Fora Kitten.

A pancada fora forte demais, expulsando o ar de seus pulmões. Ela desabou no chão e murmurou debilmente:

—Kit-tem...

Sua visão turvou e ela sentiu sua consciência flutuando lentamente.

Droga, eu não posso desmaiar agora...

Preto, marrom, cinza, verde e vermelho se misturaram e embaçaram a visão da pequena selvagem. Suas pálpebras pesaram.

Um ardor tomou conta de suas narinas, e ela percebeu que o ar estava impregnado da fumaça maldita gerada pelo fogo-fátuo dos Sem-Alma.

Se eu tivesse lembrado... 

Ela não tinha escapatória. Estava ali jogada à mercê dos monstros e do fogo do submundo.

No fim das contas, não consegui proteger a Kit...

Por um instante, sua visão voltou ao normal, focando o inferno na terra. Kit continuava sua chacina, seus cabelos completamente cobertos de sangue se agitavam como uma sombra terrível.

Na fração de segundo que ela se virou na direção de Nana, a selvagem pôde ver claramente o brilho verde que se impregnara nos olhos da amiga. Ao focar aquela luz fria, Nana foi engolfada por um medo terrível, e ela sentiu-se sufocar.

Sua visão se turvou lentamente...

Quando mundo havia se reduzindo a apenas uma pequena fresta entre suas pálpebras, Nanahoshi só conseguia ver uma coisa.

Fogo. Chamas verdes, frias e malditas.


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Notas finais do capítulo

E AI PESSOAR??
O que acharam? Sugestões? Críticas?
Querem um spoilerzinho do próximo capítulo??
Quem quiser saber onde vai se passar o próximo capítulo manda mensagem pessoal ou pede nos comentários weeeee o
Beijos de Luz.