As Crônicas de Pan Gu escrita por Nanahoshi


Capítulo 4
As Crônicas dos Reinos - Fogo-fátuo


Notas iniciais do capítulo

OLÁÁÁR!
Trazendo uma surpresinha!!! Capítulo fresquinho aqui ♥
Agora o negócio começou a ficar complicado x.x
Vai ter mais um capítulo falando sobre essas duas e então mudarei de personagens :3 Era pra ser apenas um capítulo falando da Nana e da Kit mas acabou ficando muito longo, então pra não ficar massivo, dividi em três.
Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/650755/chapter/4

Keyla estava sentada do lado de fora de sua casa, meditando. Vários pássaros estavam pousados em seus ombros e braços, formando uma orquestra um tanto desorganizada. Maddox havia voltado para o campo.

Tudo estava extremamente calmo. Calmo... Calmo demais.

Keyla abriu os olhos.

Essa sintonia... Não é normal o ambiente ficar tão harmônico. Alguma coisa está errada...

Subitamente, um mau pressentimento tomou conta de Keyla. Era tão ruim que a selvagem sentiu o ar escapando de seus pulmões enquanto seu coração parecia estar sendo comprimido por uma mão invisível.

–Preciso... Avisar o Maddox...

Uma corneta soou ao longe. Todos os habitantes da Vila da Ponte Quebrada se sobressaltaram e olharam apreensivos na direção da torre de vigia.

–ELES ESTÃO VINDO! – berrou uma voz vinda daquela direção. – EM ALGUNS MINUTOS IRÃO ATRAVESSAR A PONTE! EVACUEM A VILA! CORRAM PARA A CAPITAL!

Uma correria começou pela Vila. Famílias se juntavam e corriam morro acima na direção da cidade. Pais procuravam seus filhos e vice-versa. Pastores tentavam resgatar seus rebanhos. Keyla viu Maddox vir correndo do campo.

–Querida... – ele disse com um tom sombrio ao chegar perto da esposa.

Ela sabia o que ele ia dizer.

–Kitten...

***

Ruhama havia finalmente acabado suas lições do dia. Entediada e pensativa, seguiu para seu quarto. Entretanto, enquanto caminhava cabisbaixa no corredor pensando na cena que vira mais cedo, uma voz lhe arrancou de seu torpor invadindo todos os cômodos da casa.

–Eu já disse que não é pra reduzir tanto!

A pequena selvagem congelou ao escutar a voz de seu pai, rei dos selvagens, borbulhando de raiva e frustração.

–Mas Majestade... a população está passando fome. Muitas crianças e idosos já morreram de inanição. – disse uma voz rouca bem mais baixa que a do rei. Era de um dos conselheiros.

–Que se dane! Idosos só servem para ocupar espaço. E as crianças que morreram de fome não eram dignas de ir atrás de seu próprio alimento. Somos os selvagens. Descendemos de animais temíveis, caçadores da natureza. Quem não consegue seu próprio alimento na natureza está fadado a morrer. Não precisamos dos que não conseguem roubar um mísero pão!

Uma estranha dor comprimiu o peito da princesa ao se lembrar da cena da garota dividindo o pão que roubara com um cachorro de rua. E principalmente... As lágrimas que manchavam seu rosto enquanto ela murmurava que não queria ter roubado.

–Majestade...

–Basta! Continue recolhendo o imposto da população. Temos que minimizar a crise pelo menos aqui. Senão como a corte vai ter condições de pensar numa solução para tudo isso?

Ruhama foi se afastando da porta da sala de reuniões do pai pé ante pé. A dor do peito agora se alastrava para outras partes do corpo e ela se sentia horrível.

Quando já estava afastada o suficiente, começou a correr para seu quarto. Por algum motivo, sentia a necessidade desesperadora de correr para algum lugar seguro. Seguro...

Ela estava tentando fugir de quê?

Que sensação era aquela?

Em meio à corrida, uma gritaria começou a ribombar pelos corredores do castelo. Sons de corneta encheram o ar. Segundos depois, a princesa escutou alguém chamando por ela.

–Senhorita Ruhama? Senhorita Ruhama!?

–Estou aqui. – respondeu ela.

Era uma das governantas do castelo.

–Siga-me. – pediu a selvagem mais velha estendo a mão.

–O que está acontecendo, Bo?

A criada a puxou pela mão e começou a correr. Ruhama pôde notar uma expressão muito tensa no semblante da mulher.

–Estamos sendo atacados. Precisamos evacuar o castelo.

–Atacados? Por quem?

A outra guardou silêncio. O ritmo da corrida era exaustivo. A pequena começou a sentir câimbra nas pernas.

–Bo, vá mais devagar!

–Não podemos senhorita. Temos que correr ou...

–Ou...?

Silêncio. A princesa começou a se irritar. Odiava quando a tratavam como um bebê que não conseguia lidar com nada.

–Eu já perguntei – a pequena puxou o braço do aperto de Bo com toda a força que tinha. – O que está acontecendo?

As duas viraram num corredor que dava numa escada estreita feita de pedra. Era a passagem que dava acesso aos porões.

–Os Sem-Alma... – disse Bo num sussurro. – Eles cercaram a cidade.

***

–Uaaah!

Nanahoshi e Kitten deitaram arfantes no chão. Kat ainda tentava alcançá-las, arrastando as patinhas pelo chão e a língua estirada para fora da boca.

–Nana... Nunca... Nunca mais... Me faça invadir um ninho de ouriços...

–É... Eu tenho que me lembrar... De nunca tentar roubar a comida deles... – e depois disso, por mais arfante que estivesse, começou a rir.

–Por que você está rindo, sua idiota? – Kit tentava reprimir a risada.

–Ah, é que foi divertido... Né, Kat?

O gato preto agora estava estatelado no chão ao lado de Kit, as patas esticadas em quatro direções diferentes e uma expressão de cansaço profundo no rosto . O felino mal conseguiu soltar um muxoxo.

–Ah, qual é? Foi sim...

Kit virou de lado no chão e fitou o cenário diante de si. Nanahoshi continuou estatelada de barriga para cima. As duas permaneceram um tempo em silêncio. O único som que se ouvia era o chiar das árvores e burburinho da corrente do rio.

Quebrando o silêncio, de repente, Kit, Kat e Nana ouviram um estranho som que lembrava um ronco. Alguns segundos depois, a selvagem de cabelos negros soltou um risinho sem graça.

–Droga, continuo com fome... Acabamos não pegando nada dos ouriços raivosos.

É mesmo!, lembrou-se Kit. Como a discussão sobre Kat ter roubado ou não as nozes de Nana havida acabado em uma caça a ninhos de ouriços raivosos, Kitten havia se esquecido completamente que havia trazido comida para a amiga.

–Ah, Nana! – a selvagem se colocou sentada no chão e agarrou sua bolsa. – Eu trouxe uma coisa pra você.

Foi impossível descrever a expressão no rosto da pequena Nanahoshi ao ver os dois pedaços de pão saindo da bolsa da amiga. Demorou alguns segundos para que ela piscasse várias vezes e virasse a cara para o lado.

–Eu não tô com fome. Eu comi mais cedo...

Kit olhou-a atônita. Sério que ela estava bancando a durona?

–Vamos, Nana. Eu trouxe pra você. Mesmo que não esteja com fome, fica com eles. Mais tarde você come.

Ela ainda ficou alguns segundos mantendo a pose durona, a cabeça virada exageradamente para o outro lado e os bracinhos cruzados na frente do peito. Um silêncio estranho tomou conta do ambiente.

1,2,3,4...

Brrrrrlough...

Um ronco agudo quebrou a linha silenciosa que havia se estabelecido ao redor dos três amigos. Era o estômago de Nana.

Kit abafou um riso e gesticulou segurando os pães.

–Anda, come logo.

Com o rosto avermelhado, ela tentou manter a pose, mas era tarde demais. Sua barriga havia lhe entregado de novo.

Estendeu as mãozinhas timidamente e hesitou antes de segurar as metades de pão. Quando a timidez cedeu, ela os agarrou avidamente e levou uma delas a boca, devorando-a. Kitten observou, satisfeita, a amiga se alimentando vorazmente dos pães que pegara ‘escondido’ de sua casa. Nem as migalhas fugiram da menina faminta.

Enquanto lambia os dedos, Nanahoshi sentiu um cheiro estranho impregnando o ar. Kitten se agitou, demonstrando que também sentia.

–Que cheiro horrível é esse? – reclamou Kit tapando teatralmente o nariz.

A outra parou de chupar os dedos e prestou atenção ao redor. Ao longe, o som de uma corneta soou.

–Uma corneta... O que será que está acontecendo? – cautelosamente, a selvagem com orelhas de gato se levantou.

Nanahoshi se concentrava no cheiro. Em sua mente, uma vaga lembrança começava a subir para a superfície. Kat, que estivera dormindo, ergueu a cabeça parecendo levemente alterado devido ao cheiro. Entretanto, após alguns segundos, o gato arregalou os olhos e arqueou o dorso com todos os pêlos negros arrepiados. Um chiado terrível irrompeu da garganta do filhote.

–Kat, shiu! – repreendeu Kit. – O que foi?

O filhote continuava a miar.

Com leves cliques as peças do quebra-cabeça começaram a se encaixar para a selvagem-lobo.

–Kit! Vamos... Vamos sair daqui agora!

A outra olhou para a amiga e se assustou ao ver que os olhos dela estavam tão arregalados quanto os de Kat.

–Qual o problema?

–Esse cheiro... – ela franziu o nariz e balançou energeticamente a cabeça. – É fogo-fátuo! Tem um incêndio de fogo-fátuo acontecendo aqui perto!

–Fogo-fátuo?

–Sim! É um fogo verde e fantasmagórico que aparece em lugares que têm espíritos maus e-

Nanahoshi não teve tempo de terminar sua fala. Ao longe, uma multidão de selvagens e animais corria na direção delas. Os três sentiram seus músculos agindo sozinhos. Retesaram-se e firmaram-se onde estavam.

–Kat, foge daqui! – berrou Kit para o filhote de gato.

O felino hesitou. Olhou para a multidão, para as duas amigas e depois aspirou novamente o cheiro de medo que pairava no ar.

–AGORA, KAT! – Kit empurrou o gato com toda a força na direção da floresta. O filhotinho não resistiu mais. Correu e sumiu em meio à vegetação seca.

Os primeiros aldeões as alcançaram. Alguns sequer as notaram ali, de tão apavorados que estavam. Outros trocaram olhares cheios de horror com as meninas.

–O que está acontecendo!? – berrou Kit com todo o ar que tinha nos pulmões.

–Fujam! Fujam!

–Corram para a floresta! Se escondam!

–Vão para a cidade!

Os gritos as atordoaram. As sugestões faziam suas cabecinhas zunirem.

–O que está acontecendo!? – repetiu a menina.

Nesse momento, um enorme tigre esbarrou em Nana e a derrubou no chão. Encolhido no chão, o animal foi se transformando gradualmente num homem-tigre.

–O que estão fazendo paradas aqui!?

Kit o reconheceu imediatamente. Era um agricultor amigo de seu pai, Rufus.

–Rufus! Você pode dizer...

–Os Sem-Alma. – ele puxara Nanahoshi para o colo e massageava seu ombro enquanto a menina choramingava.

Kitten ficou alguns segundos em silêncio enquanto patas, cascos e pés faziam a terra tremer ao redor deles.

–S-Sem-Alma?

Parecia que da primeira vez que Rufus pronunciara o nome, Nanahoshi não havia entendido. Porém dessa vez, ela ouviu claramente a amiga pronunciar aquele nome maldito. Ao processar a informação, a pequena selvagem se colocou de pé e agarrou o braço de Kit, puxando-a na direção em que todos corriam.

–Vamos embora! Temos que fugir o mais rápido possível!

–Ei, Nana! – ela resistiu aos puxões da outra e olhou perdida para Rufus. – Quem são os Sem-Alma? O que eles querem?

–São zumbis amaldiçoados que voltaram do submundo para destruir a criação de Pan Gu. Eles são feitos apenas para matar e destruir. E são o pior tipo de assassinos...

Nana não desistira e ainda puxava a amiga.

–Vamos! Eles são cruéis! Eles queimam as nossas almas, Kit!

Kit estava perdida. Não conseguia absorver a gravidade da situação.

–Onde estão os meus pais?

Rufus calou-se por um momento. Nesse pequeno intervalo de tempo, um outro bárbaro agarrou Rufus pela nuca e arrastou-o para a floresta.

–VAMOS LOGO, RUFUS!

–As garotas precis-

–Não interessa! Salve sua pele! Que os tolos fiquem para trás!

Enquanto era arrastado, Rufus olhou para Kit e gritou:

–Seu pai e sua mãe estão lá ainda! Ficaram para retardar os Sem-Alma!

A garota permaneceu estática. Seu cérebro custava a raciocinar. Aos poucos, os elementos foram se juntando. O cheiro, a corneta, a multidão desesperada, os olhares de pavor, o medo de Nana, o aviso de Rufus, o fogo-fátuo e seus pais... Tentando salvar a vila e os aldeões.

Por quê?

Movendo-se por puro instinto, Kitten disparou na direção oposta à floresta. Ao perceber o movimento da amiga, Nana correu desesperadamente atrás dela. Vários medos se misturaram dentro da pequena órfã. Em sua mente surgiram os rostos acolhedores de Maddox, Keyla e Kit. A família que a acolhera quando ela não tinha nada nem ninguém. Se ela os perdesse...

Seus passos aceleraram. Seu pequeno corpinho se encurvou e suas unhas das mãos arranharam a terra enquanto ela perseguia a amiga.

–KITTEN! – berrou Nanahoshi.

A pequena selvagem parou derrapando na entrada da Vila da Ponte Quebrada, que ardia em chamas. Chamas laranjas se misturavam com labaredas verdes que cheiravam à morte. Gritos horrorosos enchiam o ambiente, e muitos deles davam a impressão de vir de dentro do fogo esverdeado.

–MAMÃE! PAPAI! – Kit gritou com toda a força que tinha. Nesse instante, Nana a alcançou.

–Kit, haja o que houver, não toque nas chamas verdes. Vamos achar o Sr. Maddox e a Dona Keyla!

Esgueirando-se pelos destroços e evitando os dois tipos de incêndio, as duas avançaram para dentro da Vila. Os gritos só aumentavam e se multiplicavam. O fogo se tornava cada vez mais quente e sufocante. Com o calor, o ar tremia ao redor delas, dando a tudo um aspecto irreal, como se tudo não passasse de uma alucinação horrível.

–ROOOOOOOOOOOAAAAAR!

Um rugido assustador abafou todos os outros ruídos por alguns segundos. As duas automaticamente procuraram a origem do som. Próximo à outra entrada da Vila, onde ficavam os utensílios dos agricultores e os guardas, vários vultos se lançavam agressivamente uns contra os outros. E dentre eles, ela viu se erguer um. Sustentado nas duas patas traseiras, um enorme tigre de três metros de comprimento se projetara para cima, abrindo as enormes patas enfeitadas com garras curvas. Mas havia algo de diferente naquele tigre além do tamanho. A pata posterior direita... era feita de madeira.

–PAPAAAAAAI! – Kit se lançou na direção dele sem nem se lembrar que haviam chamas infernais ao redor dela. Nanahoshi conseguiu alcançá-la a tempo e atirou-se sobre a amiga.

–Ficou maluca!? Você não vai ajudar seu pai desse jeito!

As duas se arrastaram para baixo de uma carroça que ainda não fora consumida pelo fogo. De lá voltaram a observar a cena.

E foi esta a primeira vez que Kitten viu um Sem-Alma.

Inicialmente ela não conseguir distinguir muito bem o que exatamente era, mas a medida que as chamas dançaram ao redor dos combatentes, ela finalmente pode distinguir a forma esquelética de um cavaleiro sem cabeça montado num cavalo igualmente esquelético. O animal portava uma armadura adornada com caveiras humanóides, e seus cascos rangiam soltando faíscas e labaredas de fogo-fátuo. Do pescoço decepado do cavaleiro, saía uma chama esverdeada muito brilhante, como uma chaminé fantasmagórica.

–São eles... Eles são os Sem-Alma? – perguntou Kit com um pavor claro inundando sua voz.

–Sim. – Nanahoshi estremeceu e desviou o olhar do cavaleiro sem-cabeça.

–Eles são assustadores...

Kit engatinhou para o outro lado da carroça e analisou a luta. Seu pai lutava sozinho contra mais de dez desalmados, e incrivelmente a luta parecia equilibrada. Mas eles não paravam de aparecer. De todos os lados, surgiam mais e mais vultos assustadoramente magros e enegrecidos.

Ficaram tão absortas no combate que não perceberam. Não perceberam o cheiro se tornando mais denso, o ar debaixo da carroça ficando mais quente. A primeira a perceber foi Nana...

Mas era tarde demais.

A carroça foi tirada do chão violentamente e arremessada a vinte metros de distância. Ao se virarem, depararam-se com uma criatura horrível e deformada. Parecia mais um rato mutante com pernas alongadas carregando uma carapaça redonda no lombo. Seus olhos leitosos brilhavam esverdeados e seu bafo cheirava à carne decomposta.

Por um instante, as duas garotas apenas encararam aterrorizadas o monstro à sua frente. Ele bufou e aspirou ruidosamente como se estivesse sofrendo de um grave problema na garganta. Ao sentir o cheiro do medo das selvagens, soltou um guincho e ergueu as patas.

Nanahoshi, que estava mais recuada em relação ao rato mutante, conseguiu visualizar exatamente o que aconteceria a seguir. A visão das patas rasgando o corpinho magro da amiga preencheu sua mente, e ela teve certeza de uma coisa naquele momento.

Qualquer coisa poderia acontecer com ela, desde que Kitten ficasse a salvo.

Ao processar isso, o corpo da pequena moveu-se sozinho. Levantou-se num pulo e colocou-se entre Kit e o monstro. Abriu os braços e gritou o mais alto que pôde:

–FOGE!

Kit continuava encolhida no chão, encarando boquiaberta a amiga. Parecia tudo tão cruel e surreal... Nanahoshi protegendo-a com o próprio corpo...

O que ela deveria fazer?

O monstro agitou as patas no ar e ameaçou descê-las com força total sobre a cabeça de Nana. Entretanto, ao iniciar o movimento, o monstro encontrou o olhar da menina.

Em seu tosco cérebro de animal selvagem, uma área de sua mente berrou primitivamente ‘perigo!’. Mas o golpe já havia sido desferido. Não havia mais como recuar.

–PARE... AGORA!!

O ar da Vila tremeu. As patas do monstro congelaram no ar como se tivessem esbarrado em algo sólido. Nanahoshi fixou as garras podres do rato aspirando seu cheiro pútrido. Kit continuava na mesma posição, incapaz de processar tudo o que estava acontecendo.

Antes que qualquer um dos três pudesse reagir, um vulto saltou sobre as duas selvagens e derrubou o rato desalmado, arremessando-o contra os entulhos de uma casa em chamas.

– M-mãe!? – exclamou Kit com muito esforço.

Keyla se ergueu diante das duas e lançou um olhar assassino sobre o rato que acabara de nocautear.

–Kit! Nana! – ela exclamou preocupada. – Vocês estão bem?

Foi nesse momento que Nanahoshi percebeu que estivera na posição de defesa até agora. Com muito esforço conseguiu movimentar os braços esticados e assentir. Kitten balançava fervorosamente a cabeça.

–O que estão fazendo aqui!?

–Não queríamos deixar a senhora pra trás... E o Sr. Maddox...

Keyla fitou a menina assustada de pé à sua frente. A visão de Nana se colocando diante de sua filha sem nenhuma hesitação para protegê-la repetiu-se novamente diante de seus olhos.

–Nanahoshi... – a selvagem estendeu a mão direita e abaixou-se, dando um meio abraço na garota.

Ela por sua vez permaneceu imóvel, pega completamente de surpresa pelo gesto da domesticadora.

–Obrigada por proteger minha filha...

As palavras de Keyla trespassaram a alma de Nana como uma lança. Entretanto, a sensação que preencheu o coração da menina foi de certeza e felicidade.

Finalmente havia encontrado algo por que lutar... Finalmente encontrara...

–ROOOOOAAAAR!!!

Um rugido horripilante atravessou o ar na direção das três selvagens. Keyla pulou instintivamente para cobrir as costas da filha e olhou em volta. Uma orda de dez ou mais ratos mutantes se acercava lentamente, ainda hesitando devido ao estrago feito a um dos seus.

–Nana, Kitten! Saiam já daqui! Corram como nunca correram na vida! Eu vou segurá-los!

–Mãe... – Kit estava imersa num estado crítico de choque. Mal conseguia pronunciar uma palavra.

A domesticadora se virou e abraçou a filha com força.

–Eu amo você, Kitten.

Lágrimas brotaram dos olhos das duas selvagens.

–Por favor, mãe... volte.

–Eu vou voltar. Agora andem e-

Um relincho ecoou pelo vale. As chamas chiaram mais alto. As três se viraram ao mesmo tempo na direção de uma tropa de cavaleiros sem cabeça que cercavam Maddox. Um urro foi interrompido no ápice do som.

Contra as chamas, Keyla, Nanahoshi e Kitten viram a cabeça de Maddox se separando do corpo enquanto um cavaleiro brandia sua lança.

O mundo pareceu parar. Uma onda de ódio, raiva e medo se acumularam nas três selvagens.

–PAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAI! – berrou Kit sem pensar.

Keyla abaixou a cabeça e empurrou as duas garotas para longe dos ratos que se aproximavam.

–VÃO! – gritou com raiva.

Lágrimas banhavam o rosto de Nanahoshi. Kit continuava a gritar.

–VÃO AGORA!!! – gritou Keyla com tanto ódio que chegou a assustar as duas pequenas. Lágrimas já lhe encharcavam o rosto felino.

O Sr. Maddox..., a verdade ressoou na mente de Nana.

Ele morreu pra salvar a gente... A vila inteira...

–GRAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!! – Keyla avançou sobre os desalmados, arrancando os olhos do que estava mais próximo. O monstro chiou de um jeito horrível enquanto suas órbitas vazias soltavam uma fumaça esverdeada.

–PAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAI!!!

“Seu pai e sua mãe estão lá ainda! Ficaram para retardar os Sem-Alma!”

–MORRAM SEUS VERMES!!!

Keyla atacava os Sem-Alma sem piedade, mas as duas jovens selvagens continuavam paradas por causa do pânico. Movida pelo ódio pela morte do marido, a domesticadora os assassinava sem piedade, até mais cruelmente que os próprios monstros. No meio da luta, percebeu que as meninas não haviam fugido ainda.

Sentiu medo. Muito medo.

Elas não podiam...

–KIT! NANA! FUJAM! – ela berrou em fúria. –FIQUEM VIVAS!!!

Algo estalou nos ouvidos da selvagem zonza pelos gritos da amiga.

O Sr. Maddox morreu... por nós...

FIQUEM VIVAS!!!

Obrigada por salvar minha filha.

A voz de Keyla soou tão clara que Nana teve a impressão de estar escutando-a falar de novo.

Kitten...

Outro estalo em seu ouvido fez a menina se movimentar. Abaixou-se e agarrou o braço de Kit, puxando-a com toda a força que tinha. Arrastando-a pelo braço, Nanahoshi correu com a amiga para fora da Vila. A outra ainda berrava pelo pai, e ao perceber que se distanciava da mãe, começou a gritar por ela também.

As duas serpenteavam evitando as chamas verdes que enchiam o ar de gritos agonizantes. O rosto da garota estava encharcado. Mal percebia que chorava descontroladamente gemendo alto.

Enquanto corriam, a única coisa que elas conseguiam ver era o verde fantasmagórico do fogo-fátuo dos Sem-Alma...

O fogo que consumia todas as almas...

Ao longe, um grito agudo cortou o ar em agonia.

Ninguém disse nada. Ninguém viu anda.

Mas as duas sabiam.

Um terror indescritível engolfou a garganta das duas selvagens.

Keyla estava morta.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E ai pessoal o que acharam!?? Espero que tenham gostadoo!!!