Conflito Ancestral escrita por Trubluu, The Thief


Capítulo 1
Capítulo único — O Guerreiro Sangrento


Notas iniciais do capítulo

Se ainda não leu a lenda de Pirarucu, vale a pena dar uma pesquisada pra ter uma noção do que estamos apresentando para vocês. :)

Nos vemos lá embaixo. Boa leitura.



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— Você não pode escapar da fúria de mil trovões! — A temível voz ecoava do firmamento. Nunca antes Tupã se mostrou tão insatisfeito. Os céus transbordavam sua cólera com descargas de energia por toda a floresta. As árvores sofriam com as chamas causadas pelo Deus dos Raios e os animais, amedrontados, corriam para longe da margem dos rios. Mas era inútil, qualquer lugar no perímetro de alguns quilômetros era sujeito a fúria inigualável de Tupã. E quem poderia se opor? Apenas um ser.

Pirarucu, um exímio guerreiro, inigualável na arte da lança, hábil como nenhum outro já foi com magias de muitos tipos, capaz de proezas que nenhum outro humano foi capaz de realizar, tinha seu coração amargurado e maldoso. Sentia prazer em cometer atrocidades, homicídios e heresias. Sua alma, também chamada de Anhang, era maldosa por natureza e a ele sempre foi lícito e agradável ofender a composição do universo e seus regentes, os deuses, em especial Tupã. Sua maldade durou diversos anos, ninguém era capaz de deter seus atos cruéis e cada vez mais sua essência maligna e destrutiva foi incomodando o equilíbrio da floresta e da natureza como um todo. Cansado de ver A Criação sofrer com os atos horrendos de Pirarucu, Tupã despeja sua cólera incansavelmente tentando matá-lo.

— Não há como você fugir desta vez, Pirarucu! Pôlo, venha! — A voz de Tupã preenchia os céus como grandes sons de trovão.

Ao chamar pela divindade do Vento, Pôlo, Tupã observou de seu trono celeste toda a chama que ardia pela superfície da floresta se alastrar ainda mais, com uma grande ventania. Pôlo sempre foi um obediente servo de Tupã, apto a todo tipo de exigência, contudo, matar Pirarucu já estava fora de sua alçada. Conseguir tal feito sozinho era basicamente impossível e ele precisaria de auxílio e mais poder. Sabendo disso, Tupã o concedeu toda sorte de eletricidade que tinha, oferecendo a Pôlo a capacidade de dizimar aldeias inteiras com um único balançar de mãos. Nas margens do rio Tocantis, Pirarucu segurava um de seus amuletos mágicos nas mãos fortemente. Passou os dedos em um dos ferimentos de seu braço e buscou um pouco de sangue, despejando no amuleto, que brilhou azulado. Logo, as marcas de tinta em seu rosto, pintado à caráter de guerra, brilharam também em tom azulado e este foi capaz de disparar tão rápido quanto a mais veloz das onças. Pirarucu era sagaz e inteligente, o que, somado aos seus conhecimentos e capacidade de combate, o tornavam temível até mesmo entre os deuses. Continuou correndo pela margem do rio, evitando os golpes de Pôlo o quanto podia, já armado de mais um de seus amuletos, este de cor mais amarelada. As descargas elétricas que Pôlo lançava eram facilmente evitadas pelo hábil Pirarucu, que corria em meio as chamas da floresta como um vulto.

De seu trono, Tupã irritava-se com a persistência do Guerreiro e lamentava-se profundamente por estar impossibilitado de ir pessoalmente dar fim a existência do cruel índio. Por sua essência estar diretamente ligada ao clima, Tupã adquiriu onipresença, sendo capaz de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, manifestando-se como chuva, nuvens, raios, tempestades, relâmpagos e trovões, porém, não era capaz de adquirir corpo físico na Terra. Sabendo disso, Pirarucu zombava de Tupã o quanto podia e amaldiçoava com palavras e feitiços tudo o que poderia surgir de sua existência, como a própria vida, destruindo ou assassinando qualquer coisa que o enfurecesse.

Pôlo, usando suas habilidades com o Vento, conjurou um grande tufão que arremessou Pirarucu a centenas de metros de distância. O guerreiro por sua vez, demostrando certo cansaço da longa batalha que estava travando, falhou em usar mais uma de suas magias para evitar os ferimentos da queda e despencou sobre uma árvore em chamas. Pôlo continuou perseguindo Pirarucu com vigor, enquanto o guerreiro erguia-se rapidamente usando seu amuleto amarelado para cicatrizar as feridas. De súbito, Pirarucu deslocou-se para o lado com velocidade, onde logo caiu um dos raios de Tupã, que tentava acertá-lo. Com força sobre-humana, o guerreiro sangrento sacou sua temível arma, uma lança forjada manualmente pelo próprio Abaçai, Deus da Guerra, e golpeou as chamas que consumiam a floresta, capturando-as para a ponta da lança. Com a lança agora em chamas, Pirarucu avançou contra Pôlo para acertá-lo, certo que, com aquilo, poderia reduzi-lo à cinzas. Sua lança continha encantamentos antigos da própria Deusa Do Fogo, Angra, e com essas capacidades o Guerreiro sabia que poderia ferir O Vento.

Pirarucu adquiriu tantos recursos quantos possíveis para derrotar a soberania de Tupã. Seu ódio pela divindade era tamanho, que Pirarucu, desde sempre, treinou seu corpo e alma para que seu rancor o concedesse o poder e a vontade necessária para matá-lo. Em uma frenética combinação de movimentos e golpes com a lança, Pirarucu lutava com a própria entidade do Vento em um balé mortal de sangue e fogo. Sua arma encantada com os poderes de Angra ardia e flamejava diante das rajadas de vento e raio que Pôlo o disparava. Mas Pirarucu era imbatível em um combate corpo a corpo e desde que Pôlo recebeu as capacidades elétricas de Tupã este não era mais capaz de tornar-se intangível como o próprio vento, o que dificultava e muito o seu triunfo. Por outro lado, porém, sem os poderes de raio, Pôlo não tinha meios eficazes para ferir Pirarucu significativamente. O Guerreiro Sangrento, entretanto, era sádico e não cedia um centímetro de espaço, golpeando com velocidade alucinante. O Deus do Vento não teve outra saída a não ser recuar para evitar ferimentos graves. Tupã auxiliava como podia, lançando raios em Pirarucu, mas o Guerreiro evitava facilmente as descargas elétricas.

As marcas azuladas no corpo de Pirarucu ainda brilhavam forte, evidenciando que seu corpo ainda possuía as capacidades sobre-humanas fantásticas como a força de mil gorilas e a velocidade de mil onças. Sua resistência também aumentara, a medida que seu tempo de reação também era impecável, capaz de evitar até mesmo os golpes de Tupã. Pegando mais um de seus muitos amuletos, Pirarucu bravejou contra os céus, escarnecendo do Deus dos Raios e proclamando heresias malditas. Lançou seu amuleto diretamente ao solo, ao qual imediatamente surgiu uma árvore, grandiosa e imponente como qualquer outra árvore da Amazônia. A árvore, verde como nenhuma outra, expulsou de perto todas as chamas que ardiam pela floresta, além das próprias árvores e animais e todos os golpes de Tupã, o que deu certo tempo para Pirarucu se recompor e arquitetar uma breve estratégia de contra ataque.

Pôlo observava irritado a grandiosa árvore que Pirarucu usava como refúgio. Seus poderes não conseguiam atravessar a atmosfera criada pela planta, que continha em si algum tipo de habilidade protetora, capaz de afastar qualquer tipo de ameaça. Pirarucu, sabendo que estaria seguro ali durante alguns segundos, usou o tempo para realizar uma mágica mais elaborada. Pegando uma pequena pena vermelha que levava agarrada ao pescoço por um colar, desenhou alguns símbolos chamado runas, na palma de ambas as mãos. Molhou ambos os desenhos com o sangue que lhe escorria da testa e juntou as palmas, o que resultou em um brilho fortíssimo que logo cessou. Pirarucu então ergueu-se do chão, pegando sua lança encantada e acendendo-lhe as chamas, preparado para o que estava por vir.

Tupã, vendo tudo com muita irritação, percebeu os verdadeiros intuitos de Pirarucu e irou-se ainda mais. Sabia que aquela magia tornaria realmente letal os ataques que Pirarucu executasse dali em diante. Pôlo já não seria o bastante, nem mesmo com seus poderes elétricos. O cenário era caótico, havia apenas destruição por onde se podia ver. Temendo que as chamas consumissem toda a vida do lugar, Tupã ordenou uma forte tempestade, que apagou em alguns minutos o incêndio da floresta. Depois disso gritou com voz de trovão o nome daquela que ajudaria a deter os atos horrendos de Pirarucu. Uma deusa, que auxiliaria Pôlo a tirar, de uma vez por todas, a vida do Guerreiro Sangrento.

— Iururaruaçú! — A voz de trovão rasgou os céus com um retumbante estrondo. Tupã clamava pelo nome da Deusa, que, prontamente, atendeu.

A Deusa das Correntezas, Iururaruaçú, ou somente Iuru, emergiu do rio Tocantis imediatamente, seu corpo levemente azulado, sempre molhado, com algumas poucas escamas dispostas em partes aleatórias do corpo. Seus cabelos negros cobriam-lhe o rosto e pingavam água infinitamente, mantendo o corpo da entidade sempre hidratado. Tinha forma humanoide, com braços, pernas, tronco e cabeça. Seus olhos eram vibrantes e firmes e andava nua sobre as águas. Não foi necessário mais palavras de Tupã para que a Deusa das Correntezas soubesse o que fazer, logo juntou-se à batalha ao lado de Pôlo. O Deus do Vento agradeceu mentalmente pela ajuda e se voltou para Pirarucu, sabendo que a partir dali o confronto seria ainda mais perigoso. Pirarucu, por sua vez, não parecia mais ferido ou cansado como antes. A grandiosa árvore que antes o protegeu durante um curto período de tempo, agora definhava sem vida, parecendo ter cedido sua vitalidade para o Guerreiro Sangrento completamente.

A Deusa das Correntezas e o Deus do Vento juntaram forças em ataques simultâneos. Pôlo espalhando a mais poderosa carga de raios que pôde juntar por toda a região e Iuru movendo o próprio leito do rio para atingir Pirarucu, que com capacidades irreais, disputava contra as águas do rio usando as chamas de Angra que estavam presas em sua lança. Tamanho era o calor produzido por Pirarucu que a água evaporava rapidamente ao chegar perto de sua arma, que, depois do último encantamento, parecia imbatível. As chamas do Guerreiro jamais cessavam, sendo brutais até mesmo para as divindades, que sentiam tamanha força em sua Anhang, a Alma, fonte de energia e poder para as magias que usavam. O Guerreiro, incansável, seguia disparando labaredas ardentes contra as rajadas de água que Iuru o lançava. Ao mesmo tempo, conjurava mais uma de suas técnicas, essa capaz de dizimar hectares de floresta facilmente. Neste ponto da batalha, Pirarucu entrava em frenesi, evidenciando sua sanguinolência e sadismo. De fato era um guerreiro inigualavelmente poderoso e perigoso, corrompido por forças malignas e disposto a matar e destruir.

Pôlo, assustado com tamanha fúria, recuou e voou aos céus, puxando para si toda a energia que havia espalhado pela floresta, trazendo consigo grandiosas rochas que foram magnetizadas pela forte eletricidade que havia despejado pela mata momentos atrás. Agora, em posse de toneladas de ferro, ouro, chumbo, cobre e tudo mais que pudesse ser atraído por um campo magnético debaixo dessa terra, gritou em fúria, como nunca antes havia feito, e arremessou o ataque em direção a Pirarucu sem pudor algum. Iuru imediatamente usou o próprio rio para fugir para longe do impacto do ataque, deslizando pelas águas como serpentes pelo chão. Os blocos de ferro cobriam o céu e faziam a imensidão da floresta torna-se pequena.

Pirarucu vendo aquilo sorriu debochado, incrédulo com a proporção descomunal do ataque. Pegou em sua mão esquerda um dos últimos amuletos que lhe restava, feito de uma pedra de rubi. Este, o mais letal de todos os amuletos que possuía, era capaz de destruir aldeias inteiras se bem utilizado. Investindo metade do poder acumulado em seu último ritual da pluma vermelha, Pirarucu lançou a pequenina pedra de rubi contra o gigantesco asteroide que descia em sua direção. Agora quente e brilhante com a energia que recebeu, o Rubi parecia como brasas do próprio Inferno. A força absurda do Guerreiro Sangrento permitiu que a pequenina joia preciosa ultrapassasse qualquer barreira de velocidade conhecida ao ser lançada, atingindo o asteroide antes mesmo que o próprio Pirarucu pudesse notar. Em sua mão esquerda, a marca das runas sumiam, enquanto que, em sua mão direita, ainda brilhava a marca que fez com a pluma vermelha. Segurava firme a lança e observava a explosão imediata do asteroide pela pedra de rubi, que o acertou e não somente o reduziu a migalhas quanto também transpassou o peito de Pôlo o ferindo quase mortalmente. O Deus do Vento caiu semi inconsciente nas águas do rio, enquanto chovia fragmentos de ferro e ouro por todo o vale. Agora exausto, Pirarucu viu o efeito de seu melhor encantamento cessar, retirando dele toda a força e velocidade extra. As marcas no seu corpo já não brilhavam em tom azulado mais e tudo o que lhe restava era mais um amuleto guardado e sua lança, além da magia da pluma vermelha em sua mão direita, que aumentava o potencial letal de seus ataques.

Pôlo foi resgatado por Iururaruaçú, suas águas envolveram o Deus do Vento e o deixou em segurança nas margens do rio Tocantis, enquanto Pirarucu, ofegante, ainda se preocupava com os repentinos ataques de raio de Tupã. O Guerreiro Sangrento praguejava contra os céus, anunciando blasfêmias e heresias contra o Deus do Raio, irando-o ainda mais. Tupã, incontrolável, decidiu enviar seu último e mais brutal recurso para deter as atrocidades de Pirarucu. Xandoré, o demônio que odeia a humanidade.

O cenário se resumia a restos. Fragmentos de asteroides e árvores em uma enorme cratera. O Rio Tocantis teve seu curso mudado, tornando-se, basicamente, um lago. Os animais, completamente dizimados, faziam falta no local que antes foi uma floresta viva e grandiosa. Pirarucu tremia, seus ferimentos castigavam seu corpo, sua resistência não era mais a mesma de quando iniciou o combate com Tupã alguns dias atrás. O Deus dos Raios travara, antes disso, uma longa luta contra o Guerreiro, o deixando mortalmente ferido. Mas Pirarucu jamais se deixava vencer e, de alguma maneira, conseguia saídas e recursos para voltar a desafiar os deuses. Para liquidar de uma vez por todas o Guerreiro Sangrento, Tupã chamou por Pôlo e Iuru, porém eles não eram capazes de derrotá-lo, mesmo estando ferido e cansado. A única saída era trazer à Terra o demônio definitivo, capaz de destruir para sempre qualquer ser: Xandoré.

Assim que a entidade surgiu, Pirarucu recuou, sabendo do perigo iminente. Xandoré assumia a forma de um índio alto, moreno, de cabelos cumpridos e porte atlético. Tinha capacidades fantásticas, podendo se transformar em águia e executar magias. Além disso, possuía toda sorte de habilidades sobre-humana, o que seria um problema para Pirarucu, tendo em vista que seu encantamento que lhe concedia esse poder havia cessado e executá-lo novamente requeria novas condições.

Iuru, deixando Pôlo em segurança, observou a chegada de Xandoré, pelas sombras, surgindo do chão como um vulto. Seu poder, agora reduzido drasticamente, seria inútil contra o poderoso Guerreiro, por esta razão recuou, deixando que o Demônio Xandoré cuidasse do combate dali em diante. Naturalmente, por ser Deusa das Correntezas, seus poderes são completamente limitados em lagos e qualquer tipo de água parada. Infelizmente o rio Tocantis já não corria seu curso normalmente, com a força de antes. A cratera aberta pelo meteoro interrompeu o rio e mudou completamente a geografia do lugar. Demoraria algumas horas até que o rio fosse capaz de avançar novamente.

Pôlo, ainda ferido gravemente, não conseguia se mover. Em seu corpo uma terrível cicatriz brilhava, corroendo-o lentamente. Iuru, para evitar o falecimento do Deus do Vento, envolveu-o com suas águas, curando lentamente o ferimento, amenizando o estrago. Os céus reverberavam e gritavam com raios e trovões, anunciando a insatisfação de Tupã.

Pirarucu pegou seu último amuleto, mantendo-se em guarda com sua lança encantada nas mãos. Xandoré, irônico, iniciou um diálogo breve.

— Eu gosto de você. — o demônio disse, sarcástico, apontando para o estado do lugar — você parece comigo…

Pirarucu, quieto, não respondeu. De seu rosto descia sangue constantemente e seus lábios, apesar de estar chovendo, mantinham-se secos. Sentia sede e fome, apesar de tudo ainda precisava se alimentar. Manter um confronto por tanto tempo e com tantos oponentes poderosos era de mais, até para ele. Seus olhos falhavam, a visão turva. Os sentidos cansados, mas a vontade inabalável. Queria a todo custo destruir Tupã e todos que estivessem em seu caminho. Deu dois passos em direção a Xandoré aproximando-se um pouco mais da cratera que ali havia se formado. Xandoré esperava calmo na outra margem enquanto Pirarucu o examinava..

— Olha, talvez possamos conversar um pouco. De todos os humanos você é o único que parece ser interessante.

O Guerreiro, ferido e cansado, mantinha-se firme. Em sua palma da mão direita, a runa brilhava mais forte, mostrando que ainda estava em plena ativação, concedendo poder letal aos seus ataques. Em sua mão, sua arma mais formidável, a Lança de Abaçai, encantada com as chamas de Angra, a Deusa do Fogo. No horizonte, enfim o Sol parecia se erguer, atravessando fracamente as nuvens de tempestade de Tupã. Xandoré estava parado a poucos metros, em cima de um tronco de árvore caído, a beira do precipício, na outra margem. Pirarucu pegou em sua mão seu último amuleto, este de cor negra. Pensou consigo mesmo que deveria usá-lo com cautela, pois, além de ser poderoso, era sua melhor chance de sobreviver ao implacável Xandoré. O Guerreiro ainda usufruía de mais um recurso, mas este era apenas para um caso extremo. Pirarucu se auto proibiu de utilizá-lo sem extrema necessidade, e mesmo à beira da derrota, este não era o caso. Xandoré sorria, evidenciando a arrogância. No fundo, o Demônio não passava de um manipulador maligno e brutal. Em sua essência ele era apenas apto a destruir e aniquilar. Igualmente a Pirarucu.

O Guerreiro Sangrento caminhou até a beira do precipício. Olhou ao redor e viu que por enquanto os raios de Tupã não iriam importuná-lo. Sua lança acendeu em chamas mais forte que nunca. Seus olhos determinados.

 

— Eu vou matar vocês, um por um. Cedo ou tarde. — Essas foram as ultimas palavras que Pirarucu disse até o término da batalha.

Saltou o precipício, lançando seu corpo contra as rochas pontudas do fundo. Xandoré, surpreso, olhou incrédulo a atitude do índio. O que ele vai fazer?

Não tardou para Pirarucu aproximar-se do chão. Assim que estava próximo de chocar-se, ativou o poder de seu amuleto, que sumiu de sua mão e apareceu próximo a Xandoré, fazendo o Demônio trocar de lugar com o Guerreiro Sangrento. Xandoré chocou-se contra as rochas no lugar de Pirarucu e teve seu corpo completamente amassado. Pirarucu sorriu, seu plano tinha dado certo. Reativou o poder do amuleto negro, que ainda poderia ser ativado mais uma vez, totalizando três. Trocou de lugar com uma das rochas, aparecendo ao lado de Xandoré, ferido e sangrando, golpeando-lhe com a lança flamejante na cabeça. Sorriu em triunfo, seu corpo ferido mas seu orgulho intacto. Olhou para os céus, satisfeito do resultado de sua estratégia. Viu alguns filetes de luz atravessar as nuvens negras e dar um tom singelo de calma ao desastre. Para Pirarucu, afrontar os deuses como estava fazendo era uma inigualável vitória. Mas o combate não acabaria ali, ainda restava Tupã. Infelizmente, Tupã não era o último desafio de Pirarucu. Xandoré não teve seu fim ali. O demônio era mais poderoso do que parecia…

— Ei, rapaz. Eu estava conversando com você.

Pirarucu olhou, incrédulo, Xandoré levantar-se lentamente, enquanto seu corpo se regenerava de maneira acelerada.

— Não gostei da sua atitude.

O Guerreiro Sangrento saltou para trás, amedrontado. Nem as chamas de Angra poderiam deter o demônio Xandoré? O céu parecia demonstrar as risadas de Tupã, que observava tudo de seu trono celestial. Xandoré, ainda com metade do crânio desconfigurado, parecia muito feliz com toda aquela situação.

— Ele é um monstro! — Iuru, a Deusa da Correntezas, comentou, observando de longe.

Pirarucu empunhou sua lança flamejante, firmemente. Xandoré sorriu, agora completamente recuperado.

— Admito que isso me pegou de surpresa. Você é cheio de truques! Mas… Infelizmente pra você, não sou fácil de se destruir! — Xandoré disse já exaltado, com sua personalidade sádica aflorando. Seu olhar havia mudado, seus olhos brilhavam. — Eu vou me divertir com você Pirarucu. — Xandoré tinha sua voz levemente alterada, mais grave. Sua Anhang, a Alma, a essência de vida que carateriza os seres, era tão poderosa e nefasta que até mesmo Pirarucu duvidava de sua veracidade. Não pode ser real. Tamanha fúria e poder… — Vamos Pirarucu, lhe oferecerei uma digna luta! — Com um balançar de mãos, Xandoré fez surgir uma lança de ouro na sua frente. Pegou a arma e, com destreza inimaginável, iniciou os ataques.

Pirarucu gritou, urrando em fúria. Ainda possuía mais uma chance com o amuleto negro e sabia que sua lança era a arma definitiva. Deveria vencer. Mas já ferido e cansado, depois de dias de luta, era difícil manter-se páreo para alguém tão poderoso quanto Xandoré. O demônio avançou, estocando o Guerreiro com sua arma de ouro, que habilmente girou desviando do ataque e golpeou Xandoré, com sua lança em chamas, porém, o demônio esquivou agachando-se no chão. Na sequência tentou derrubar Pirarucu com uma rasteira rápida, mas o índio era inteligente e travou o golpe do demônio com sua arma. Xandoré então saltou, segurando sua lança e fazendo-a liberar uma energia negra, obscura, arremessando-a em Pirarucu. O Guerreiro Sangrento viu a lança de Xandoré multiplicar-se em dezenas e, com a visão turva, teve dificuldades para evitar todas. O Demônio sorria sádico, vendo Pirarucu esgueirar-se pelo chão para evitar seus golpes.

— Vamos lá Guerreiro Sangrento! Mostre-me do que é capaz!

Xandoré provocava, atacando Pirarucu com múltiplas lanças vindas do alto. O Guerreiro então conjurou as Chamas De Angra, criando labaredas de fogo gigantes, girando e acertando tudo a seu redor, derretendo pedras, evaporando água e fundindo os metais. Xandoré rodou sua lança nas mãos para se defender, mas em vão. Sua arma logo se consumiu com o calor das chamas, deixando-o de mãos nuas, desprotegido. Guardou o rosto com os braços e deixou-se queimar. Quando a torrente flamejante terminou, o Demônio surgiu caminhando com a pele chamuscada e rapidamente se recuperando.

—Agora sim está ficando interessante, Pirarucu.

O Guerreiro então correu em direção a Xandoré, este sacou mais uma lança dourada do ar e veio de encontro ao índio assassino. Chocaram armas e mediram forças, Xandoré era inigualavelmente mais forte, porém, Pirarucu muito mais hábil com uma lança em mãos. O índio girou a lança em direção ao rosto de Xandoré, que desviou por pouco, mas abaixou a guarda tempo o bastante para que Pirarucu segurasse com a mão esquerda sua haste dourada e o desarmasse. O Guerreiro então cravou sua própria lança no chão, com a parte flamejante para baixo, efervescendo o solo e aquecendo o lugar. Pequenas labaredas de fogo começaram a surgir em círculo, ao redor da luta. Xandoré mudou sua postura, mais sério. Pirarucu correu em direção ao Demônio com a lança de ouro em mãos, inclinou o corpo para frente e flexionou os joelhos para ter um tempo de reação mais ampliado. Já havia perdido boa parte da visão de seu olho esquerdo e isso causava-lhe um ponto cego perigoso. Deveria terminar com tudo antes que Xandoré notasse sua deficiência.

O Demônio gargalhou e saltou em direção ao Índio Assassino, revelando presas e garras afiadas. Em suas costas, grandes ossos sobressalentes surgiam, aparentando-se com um par de asas. Com a lança em punho, Pirarucu estocou Xandoré, mas o Demônio deslizou seu corpo para o lado com o auxílio das asas e desviou do ataque, acertando Pirarucu na cabeça, arrastando seu crânio no chão e arremessando-o contra uma rocha. Brutalmente ferido, Pirarucu levantou com determinação inabalável, quase cego e agora com o braço esquerdo quebrado, além de diversas fraturas pelo corpo. Eu vou matar todos vocês, um por um. Cedo ou tarde. Eu vou matar todos vocês, um por um. Cedo ou tarde.

Incansável, o índio assassino correu mais uma vez na direção de Xandoré, golpeando-lhe com a lança novamente. Mas seus movimentos eram lentos e o demônio apenas desviava com calma.

— É só isso Pirarucu? — Xandoré perguntou, entediado. Seus ossos agora ganhavam músculos e penagens, transformando-se em legítimas asas.

O índio hesitou, cuspiu sangue. Seu corpo havia chegado ao limite. Eu vou matar todos vocês, um por um. Cedo ou tarde. Apoiou-se na lança, tinha dificuldades para respirar. Uma de suas costelas havia transpassado o pulmão. Xandoré o chutou, derrubando-o no chão impiedosamente. O Guerreiro caiu, mas tornou-se a levantar. Tupã, dos céus, regojizava-se com o sofrimento de Pirarucu.

— Mate-o agora, Xandoré. — A voz dos céus ordenou.

O Demônio sentiu-se incomodado, não queria matar Pirarucu, tampouco seguir ordens, por um segundo hesitou, e esse foi um grande erro. Pirarucu ainda não havia terminado, enfim o que havia preparado antes estava acontecendo. Sua técnica mais recentemente adquirida consistia em preparar um ambiente propício para que as chamas de Angra tomassem real forma e poder. Xandoré sentiu o chão sacudir. A lança que Pirarucu havia fincado no chão tremia e em um passe de mágica desprendeu-se do solo, voltando para a mão do Guerreiro, que erguia-se com seu sorriso desprezível no rosto. Não podia distinguir o rosto de Xandoré, sua visão só diferenciava contornos e sombras, mas acreditava que este estava surpreso. As chamas de Angra saltaram do chão em torres de fogo gigantes. As brasas ardiam e estalavam, misturando-se as rochas e transformando tudo em lava. O Guerreiro então aproveitou a distração e manipulou as chamas de Angra com sua lança encantada, dando sua forma real, um enorme avatar de fogo, semelhante a uma fada, com pequenas asas e corpo magro. Depois, correu em direção as chamas e saltou até elas, sentiu o corpo queimar ao se aproximar, a dor era terrível. Logo, o avatar de fogo ergueu as mãos para agarrar Pirarucu e ele usou, pela última vez, seu amuleto negro, trocando mais uma vez de lugar com Xandoré, que foi agarrado e preso nas chamas de Angra em seu lugar. Para finalizar seu impressionante combo de ataques, Pirarucu sacrificou a última metade de suas runas na mão direita, dando ainda mais poder as chamas de Angra, acreditando que nem mesmo Xandoré sobreviveria a tanto dano.

Ajoelhou-se no chão e cuspiu sangue novamente, estava em seu limite. Há muito tempo lutava no limite, mas seu coração era amargurado. Seu ódio pelos deuses dava-lhe força para destruir tudo e todos. Apenas queria matar todos. Olhou para os céus, que não manifestava-se. Sorriu. A chuva cessou, parecia que Tupã não podia acreditar. Pirarucu era, de fato, formidável, isso devia admitir. Um mero humano…

O índio assassino não conseguiu manter a técnica de Angra por mais tempo, logo as chamas cessaram, a lava esfriou e o que restou foi uma estátua de pedra, que segurava e espremia nas mãos o demônio mais terrível que existia. As chamas em sua arma encantada apagaram, e agora Pirarucu não tinha mais nada. Nada além de uma última mágica, que se proibiu de usar. Os céus se abriram um pouco, Tupã perdia a força, a tempestade cessava lentamente. Pirarucu ajoelhado no chão via a fada de Angra em forma de estátua rochosa rachar-se, acreditava que era um efeito natural, mas infelizmente, era muito mais do que isso. Iuru via de longe e não acreditava. Tudo estava perdido. Ninguém poderia ir contra Pirarucu. Ele era poderoso demais. Para sua alegria, porém, o rio voltou a correr e sentiu seus poderes retornarem, o ataque de fogo de Pirarucu derreteu todas as rochas que ainda obstruíam a passagem do leito. Para ela, a correnteza do Tocantis era muito importante, por isso fez jorrar novamente toda a água contida em direção ao horizonte, restabelecendo a normalidade do rio, apesar de agora estar com bem menos volume que antes. A Deusa das Correntezas ficou de pé, andou pelas águas ainda nua e determinou-se a terminar com a vida de Pirarucu. Deixou pôlo na margem, envolto por um líquido curativo que ela havia produzido. Agora com Pirarucu enfraquecido, gravemente ferido, poderia liquidá-lo. Não podia desperdiçar essa chance. Com surpresa, entretanto, a estátua de rocha se rompeu completamente e surgiu dali um Xandoré completamente destruído, mas ainda vivo. Iuru não acreditava.

— Você é… Fan.. Fantásti...co — Xandoré começou a falar, seu corpo se reconstruindo lentamente — eu baixei minha guarda. Não deveria ter feito isso… — Agora levantou-se, com as pernas completamente reconstruídas.

Xandoré sabia que se Pirarucu tivesse executado aquela técnica com força total o teria matado, ou ao menos o feito sumir daquele plano de existência. O demônio sentia muita dor, mas estava feliz em ter um combate tão árduo.

— Mate-o agora Xandoré! — Tupã gritou dos céus sem perder tempo. Se não fosse uma divindade, poderia-se dizer que estava experimentando o desespero.

O Demônio fez surgir uma lança em suas mãos, como anteriormente. Mas desta vez a arma emanava uma energia assassina, diferente, perigosa. Foi caminhando na direção do Guerreiro ajoelhado e sorriu uma última vez, ao ver o rio voltar a correr nas costas de Pirarucu. Um sorriso divertido, que parecia indicar alguma coisa que sua mente diabólica havia pensado. O Guerreiro Sangrento, sem opções, ponderava o uso de seu último amuleto. Para ele, era uma humilhação grandiosa ter que usá-lo, mas estava sem escolhas. Morreria ali e não seria capaz de voltar do Sub-Mundo. Tinha certeza que Tupã destruiria sua Anhang para sempre.

— Peça piedade e arrependa-se de seus pecados e eu lhe darei mais uma chance! — Tupã ironizava dos céus, humilhando a condição de Pirarucu. Para o Deus dos Raios, todo tipo de injúria contra o Guerreiro Sangrento era pouco, tendo em vista sua conduta maldosa e profana.

O índio assassino não respondeu. Não tinha mais forças para tal. Ergueu os olhos em direção a Xandoré e o viu se aproximar. O Demônio mantinha empunhada sua arma em direção ao rosto de Pirarucu. Se aproximou o bastante e tocou-o com a lâmina, arrancando um filete de sangue de sua testa. Tupã, dos céus, não estava satisfeito. Sabia que Pirarucu era imprevisível e a qualquer momento o jogo ainda poderia mudar. Xandoré iniciou suas últimas palavras.

— É uma pena Pirarucu. Eu gosto de você. Mas só nos veremos no outro mundo… — Falou em tom de lamento, mas seus olhos queriam dizer muito mais que aquilo.

O Índio Assassino ouviu as palavras com atenção. Sabia que o Demônio queria falar alguma coisa a mais. Sabia que Xandoré tinha em sua mente e alma um desejo que não agradava Tupã. Não demorou a entender o que ele queria lhe dizer. Pirarucu estava convicto. Sua Anhang, embora fraca, voltou a ser evidente.

Xandoré se preparou para executá-lo, deu dois passos para trás e levantou a lança acima da cabeça, posicionando-se para desferir o golpe mortal. Exigiu que Pirarucu pedisse perdão a Tupã, mas o índio assassino não falou nada. Em seus olhos podia-se enxergar o grito de justiça de todas as almas que ele já matou. Em seu sangue rubro que escorria-lhe da cabeça podia-se sentir o arder das chamas do próprio inferno. O Guerreiro então, apenas levantou as mãos tremulas, devagar, e com dificuldades fez um pequeno sinal no ar. Tal sinal representava o próprio Deus dos Raios, Tupã. Um símbolo antigo, arcaico, difundido entre os adoradores de Tupã. Era uma espécie de código, uma runa mágica. Era uma mágica do clima! Uma mágica de Tupã! O último recurso de Pirarucu, que ele julgou ser vergonhoso usar, era uma magia que provinha das naturezas fantásticas e divinas de Tupã, seu maior inimigo. Xandoré observou com falsa surpresa a ativação da técnica. A mágica, ao se completar, devolveu para Pirarucu a vitalidade necessária que ele precisava para continuar a viver, ao menos durantes um ou dois minutos. Tupã não podia acreditar.

Xandoré usou sua lança para perfurar o coração de Pirarucu imediatamente após a conclusão da técnica. No fundo, Xandoré sabia que, no final, por orgulho, Tupã decidiria matar o Guerreiro Sangrento com os próprios meios, com as próprias capacidades. Por isso não usou todo seu vigor no ataque, deixando um espaço de reação maior para Pirarucu. O índio assassino então, foi capaz de segurar o golpe mortal. A mágica que Pirarucu realizou concedia ao seu usuário um frenesi de movimentos e ações, impulsos elétricos que corriam sobre seu corpo e aumentavam sua velocidade, metabolismo e tempo de reação. Mas para Pirarucu, os efeitos da magia corroíam seu orgulho. Sentir o poder dos raios de Tupã correr pelo seu corpo era terrível.

 

Ele levantou devagar, roubando a lança de Xandoré de suas mãos novamente, mas dessa vez, o demônio, surpreso, não resistiu. De seu trono, Tupã não podia acreditar. Nem mesmo ele tinha poder o bastante para prosseguir com esse combate, mas Pirarucu não se rendia de maneira nenhuma. O Guerreiro Sangrento cuspiu sangue. Seu corpo completamente destruído, quebrado. Cheio de fraturas e feridas. O demônio demostrando falso espanto se afastou do Guerreiro. Como seu último esforço, Tupã, dos céus, concedeu a Xandoré um raio, para que o arremessasse no peito de Pirarucu e desse fim a vida do índio. Era o movimento final e definitivo de Tupã. Sua última cartada.

O raio de magnitude incalculável estava agora em posse de Xandoré, para que esse executasse o índio de uma vez por todas. As mãos de Xandoré vibravam diante de tamanha energia. Passeou com os dedos sobre a onda elétrica dada a ele e sentiu na pele todo o poder que Tupã guardava consigo. Logo pensou quantas vidas seria capaz de controlar se tivesse tal poder para si. Pensou ainda como um ser tão poderoso como Tupã, que detinha técnicas fantásticas, podia enfurecer-se tanto com apenas um humano? Com apenas um único índio? O que Pirarucu possuía de verdade? A resposta era óbvia: Apesar de tudo, Tupã o temia, por isso o queria morto. No fundo, Tupã sabia que Pirarucu era capaz de roubar seu trono.

Gargalhadas insanas tomaram o Demônio, que em certos momentos até mesmo perdia o controle sobre os raios de Tupã, tamanha a sua força. Mas depois de alguns segundos ele os controlou, não só os controlou como fez algo a mais. Algo que Tupã jamais saberia. Algo que ninguém havia percebido

— O que está esperando Xandoré? Lhe dei uma ordem!

O Deus ficava cada vez mais impaciente. Xandoré mantinha nas mãos o raio com calma, acostumando-se com a energia. Um chuvisco silencioso começou enquanto ambos os guerreiros se entreolhavam. O som das águas do rio era o que prevalecia no ambiente. Pirarucu ofegava. Sua respiração estava completamente comprometida. Já havia perdido muito sangue. Sua visão não distinguia cores, tão pouco detalhes. Apenas enxergava traços, contornos. Seu braço esquerdo quebrado era a menor das dores. Por dentro, seus órgãos estavam todos dilacerados. O coração fraquejava. Já o Demônio sentia apenas a ardência definitiva nas cicatrizes que Pirarucu havia causado em seu corpo usando as chamas de Angra. Seus órgãos internos estavam feridos, ainda se regenerando lentamente. Sua energia chegava ao fim aos poucos. Revitalizar todo seu corpo de uma só vez custava-lhe muita essência e nem mesmo sua forte Anhang poderia aguentar tanto.

— Desculpe a demora! — Xandoré respondeu Tupã. Ele levantou as mãos aos céus, o poder ainda circundava todo seu braço sem ser disparado e ganhava uma coloração escura — Eu queria fazer parte da morte desse maldito também, então se não se importa, enchi seu raio com todo o ódio de minha Anhang. — Xandoré falou, mostrando o raio negro pulsando e reverberando em suas mãos. Ele havia manipulado o poder de Tupã. Aquela já não seria uma simples descarga elétrica. — Até mais, guerreiro sangrento!

Os impulsos elétricos que moviam Pirarucu faziam sua movimentação se assemelhar a de um espírito ou fantasma de tão grotesca. Era como se fosse um pequeno fantoche, que era impulsionado por descargas elétricas. Em algumas partes de seus membros, estava exposta carne viva, mostrando cada movimento forçado dos músculos. Pirarucu não podia mais se mover normalmente, mas mesmo assim era rápido como uma flecha. Os impulsos elétricos moviam cada parte do seu corpo de acordo com seus pensamentos, e então ele seguiu, avançando de punhos nus em direção a Xandoré, em um golpe tão veloz que cortava o ar. Sua mão, aberta, transformava-se em uma lâmina de carne e energia de seu algoz, em um ataque de poder sem precedentes e vergonha inigualável.

Não havia ser vivente capaz de deter tal golpe. Nunca antes foi sentido tamanha fúria e vontade em uma Anhang. Nem mesmo Xandoré ou qualquer outra divindade poderia deter esse golpe de Pirarucu. Nada seria capaz de se opor ao índio assassino. Contudo, O Demônio não queria tentar, não queria deter Pirarucu.

O raio de Tupã mesclado aos poderes de Xandoré, tornou-se um manto de eletricidade e trevas, cercando todo o corpo do demônio. Iuru, não muito distante, observava atenta o desenrolar da batalha, enquanto tratava das feridas de Pôlo, para que este não sucumbisse. O estado de Pôlo era gravíssimo. A única saída para manter o Deus do Vento vivo era abdicar de sua atenção antes dada ao rio Tocantis, que ela mantinha correndo, fazendo-o normalizar poucos, e focar-se completamente no seu tratamento. E assim a Deusa decidiu.

Quando o golpe de Pirarucu atingiu a barreira que Xandoré havia criado, sua lâmina de energia tornou-se negra, influenciada e domada pela essência da Anhang do demônio. Ele então foi acometido por violentos espasmos elétricos que castigavam seu corpo ainda mais, caindo e debatendo-se no chão. Simultaneamente, Xandoré apontou o dedo para cima, mandando uma parcela desse poder maculado aos céus, que respondeu com igual força contra o guerreiro sangrento. Um raio negro desceu das nuvens, atingindo Pirarucu com tamanha brutalidade e violência que as poucas árvores sobreviventes foram arrancadas pela raiz, sendo lançadas até onde a vista não alcança. A onda de impacto do golpe feriu até mesmo Iuru, que usou das águas do rio para criar uma bolha d’água que à protegesse e protegesse também Pôlo, que jazia desacordado. Um buraco cortou o solo e uniu ainda mais terra e rio, engolindo o corpo desfalecido de Pirarucu completamente. As águas do Tocantis seriam seu túmulo definitivo. Sua Anhang havia sumido, seu corpo jamais seria encontrado.

O demônio, que ficara exausto após tamanha demonstração de poder, ajoelhado e recuperando o fôlego, falava a si mesmo, satisfeito.

— Até mais, guerreiro sangrento…



Vendo a derrota de Pirarucu, Tupã alegrou-se, permitindo que o Sol ultrapassasse de vez as nuvens de tempestade. Enfim havia acabado. Pirarucu havia morrido e Tupã sabia que dali em diante ninguém poderia e nem iria afrontá-lo jamais. Descansou sua essência naquele local, restabelecendo lentamente a vida à flora e fauna. A maior das preocupações de Tupã neste momento era o próprio Xandoré. O demônio que antes estava preso, completamente acorrentado no Sub Mundo, agora se via livre e desimpedido para vagar pela floresta. Tupã, contudo, se auto consolava, admitindo que não teve outra escolha senão soltar Xandoré de seu carcere para que matasse Pirarucu. 

Depois de tanta destruição, Xandoré se foi, satisfeito de suas ações, voltando para as sombras, da mesma forma que surgiu. Agora podia caminhar livre por onde quer que fosse, tal como Tupã havia prometido. O acordo entre o demônio que odeia toda a humanidade e o Deus do Clima foi singelo. Em troca da força de Xandoré, Tupã o libertaria. O demônio caminhava pelas sombras, rastejando como serpente para dentro da mata fechada, fugindo dali por quilômetros até não ser mais encontrado por ninguém. 

Iuru, por sua vez, mantinha-se ali, tratando Pôlo, enquanto que aos poucos a vida retornava ao local. Tupã ficou contente, satisfeito do resultado. Tudo havia terminado, enfim terminado. Pirarucu estava enfim morto. Nada poderia ameaçá-lo. Nada.

 

O fim de Pirarucu foi rápido. Seco. Não havia tempo para ponderar. Em seus últimos instante, o Guerreiro Sangrento já estava louco de ódio e perdido em frustração, completamente derrotado. Sua vingança contra Tupã não seria concretizada. Sua mente, nos últimos instantes, apenas vagava em um grande limbo. Era o fim do Guerreiro mais poderoso que a história havia visto. O grande mestra da lança, o perito em rituais, xamã da magia rúnica, o poderoso Guerreiro Sangrento, Pirarucu, havia encontrado a morte. Tudo havia acabado, tal como começou. 

No rio Tocantis, o primeiro peixe surgiu, saltando das águas tão alto como nenhum outro peixe havia saltado, marcando o início de uma nova era. 


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Notas finais do capítulo

E aí? Gostaram? Muito obrigado por ler.



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