Blood And Fire escrita por Sawatari


Capítulo 2
Conheço a deusa pirralha e emburrada da caça




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            Você já tentou correr com suas costas caindo aos pedaços? Não? Sorte sua, porque é um saco. A garota tinha segurado meu braço antes de correr, e agora não tinha santo que fizesse ela me largar, de modo que eu tinha que seguir ela. E também tinha arrancado a espada da minha mão na primeira chance que teve.

            O que jeito que ela olhava nervosa toda vez que nós virávamos um corredor estava começando a me irritar, mas isso também fosse bom, porque segundo ela podia ter mais coisas atrás da gente. Eu esperava que ela falasse o que estava acontecendo ali, mas tirando sua ordem para eu segui-la, não tinha dito mais nada. Então respirei fundo, o quanto podia com os pulmões quase caindo, e perguntei:

 

            - Quem é você? – ela continuou seguindo, e quando já estava achando que ela tinha ignorado, respondeu.

            - Elena Sullivan. – disse, sem se virar.

            - Eu sou Michael.

            - Eu sei quem você é. – ela retrucou, irritada. – O chefão lá de cima também sabe.

            - O chefão? – repeti, tentando achar algum sentido naquela frase.

            - Zeus.

 

            Zeus?

 

            - Zeus é o deus dos gregos, né? – eu perguntei. – Mas isso era só uma história dos caras pra explicar coisas comuns.

            - O manticore que quase nos matou era uma história? – Elena rebateu, séria.

 

            Não, definitivamente não era. Mesmo assim, não fazia sentido. Tentei lembrar o que sabia sobre mitologia grega antes de entrar para aquela escola. Um deus do mal tinha comido todos os filhos, mas Zeus ficou vivo e os tirou de dentro do deus, e depois virou o rei dos deuses. Ah, e andava sempre com um raio. Ajudou muito a entender a situação.

 

            - Por quê? – perguntei depois de algum tempo. – Por que ele está atrás de mim?

            - Porque talvez o mero fato da sua existência pode pôr fim a toda a ordem olimpiana. – ela disse, parando de súbito. Então, sem soltar meu braço, se virou, me encarando com aqueles olhos cor de mel. – Porque talvez você seja filho de Héstia.

            Do jeito que ela falava, a coisa era grave, mas eu ainda não entendia nada. – Quem é Héstia?

            - A deusa do fogo, da família. – Elena se virou e recomeçou a andar. – A primeira deusa a jurar castidade perante Zeus. É a mais virtuosa das deusas por isso. Ou era, até que descobríssemos você.

 

            Ela tava de sacanagem comigo, né? Ah, qual é, eu, filho de uma deusa das histórias gregas? Até parece! Tudo bem, eu sabia que o homem leão, ou manticore, tinha sido bem real, que eu tinha feito ele pegar fogo, mas devia ter uma explicação perfeitamente lógica para isso. Ainda tinha a hipótese de eu estar dormindo na aula de alguma freira e sonhando com tudo isso, mesmo não tendo criatividade para tanto.

 

            - Para onde vamos?

            - Tenho que levar você para o conselho antes que mais algum monstro apareça. – respondeu ela. – Assim os deuses podem debater em paz.

            - Me levar pra onde?

            - Olha, por que você não pára de fazer perguntas idiotas e depois eu te explico tudo, ok?

            - Tá. – acho que seria mais fácil assim, mesmo que não fosse fácil. Tinha tanta coisa que eu queria perguntar.

 

            Continuamos seguindo, descendo até o pátio da escola. Quando passamos por ali, conseguia ver, no canto, três figuras olhando confusas para a sala do diretor, ainda segurando os tacos de baseball. Fazia alguns minutos que eu estava lá com eles, só mais um garoto normal, e agora estava fugindo com uma desconhecida para salvar minha vida de monstros.

            Elena passou reto pela entrada e seguiu pela rua quase coberta de gelo ao lado. Olhava para os lados a procura de alguma coisa, mas não tinha nada ali. Com um frio desses, ninguém sairia de casa. Foi então que achou um beco entre duas casas e entrou lá, me arrastando junto. Esperava que tivesse alguma coisa lá, mas estava vazio, além de nós.

 

            - O que estamos fazendo aqui?

            - O que eu disse sobre fazer perguntas? – retorquiu Elena, sem se virar.

 

            Estiquei o pescoço para ver o que ela fazia, e mesmo sendo bem mais alto, não conseguia ver. Então ela levantou um objeto fino e pequeno, feito do que parecia bronze. Primeiro achei que fosse um apito, mas era longo demais, e trabalhado demais. Era a menor flauta que eu já vira. Não que eu tivesse visto muitas flautas, tirando aquelas que usamos para tocar fogo na mesa da vice-diretora.

            Ela soprou aquilo, fazendo uma nota única, aguda e límpida que flutuou no ar alguns segundos, antes do vento apagá-la. A pequena flauta se desfez em pequenos fragmentos de bronze e caíram na neve. Olhei confuso para Elena, mas parecia que ela ainda não estava a fim de me explicar muita coisa. Cruzou os braços, parecendo meio incomodada.

 

            - O que foi isso? – perguntei, antes que pudesse me refrear.

            - Chamado de caça. – ela rebateu, como se fosse algo perfeitamente comum.

 

            Ok, ok, isso não fazia o menor sentido. Desviei os olhos para onde ela olhava, para algum ponto no céu nublado. Era só o que faltava, me aparecer uma luz no meio daquele beco e um deus vir nos buscar. O que aconteceu na verdade foi bem parecido.

            Passaram-se alguns minutos, e agora parecia que a dor tinha voltado ainda mais forte, mas não queria que Elena soubesse disso. Havia alguma coisa que eu não gostava no jeito dela, mesmo ela tendo vindo lá me ajudar. Outro chamado semelhante tomou o ar, me fazendo quase dar um pulo (cena que definitivamente iria acabar com a pouca moral que eu parecia ter).

            Correndo mais rápido do que eu julgava ser humanamente possível, vinha o mais estranho grupo de garotas que já vira. Tirando talvez as professoras solteiras no último dia do ano. Aquilo foi traumatizante. Enfim, as garotas usavam parcas de esqui prateadas e jeans comuns, como se fossem fazer caminhada ou algo assim. Tinham entre dez e quatorze anos, como nós dois, e todas tinham um arco com uma flecha preparada apontando para mim.

            Em menos de dois minutos já tinham parado e formado um cerco à nossa frente. Elena parecia perfeitamente normal, mas eu... Com pesar admito, eu estava surtando. Porque eu tinha quase sido retaliado por um manti... manti... uma coisa que tava num complô com meu diretor, tocado fogo nele, descoberto que deuses gregos existem e eu era filho de uma que não deveria ter filhos, o chefe deles tava me caçando e agora tinha uma dúzia de flechas apontadas pra minha cara. Eu tinha todo o direito de surtar!
            Mas é claro que não surtei. Pelo amor de deus (ou seria deuses? Tanto faz), eu não ia surtar na frente de um bando de meninas. Mesmo que elas parecessem a fim de me matar. Eu ainda tenho amor próprio. Mas ele tá acabando bem rápido...

            O círculo então se abriu e uma das meninas foi até nós. Era mais nova que eu em um ou dois anos, com cabelos castanhos como cobre presos firmemente em um rabo de cavalo e olhos... Ah, deus, os olhos dela eram amarelos? Se não fosse pela expressão de desprezo e pelos olhos anormais, seria muito bonita.

 

            - Então você é o erro de Héstia. – ela disse. Cara, por que todo mundo me chama de erro?!

            - Eu sou Michael. – corrigi, irritado. Cruzei os braços, e doeu pra cacete. – E você?

            - Lady Artemis. – disse Elena, curvando-se um pouco. Eu fiquei na minha, nem sabia quem ela era, não iria me curvar.

            - Eu sou Artemis, deusa da caça, da lua e da vida selvagem. – disse a menina, com a mesma expressão fura.

 

            Cacete, eu ofendi uma deusa. Agora eu to ferrado, pensei. Estava só esperando que as garotas me transformassem em um queijo suíço com suas flechas, mas não aconteceu nada. Todas elas me olhavam ameaçadoras, mas sem atacar. Exceto Artemis, cujo rosto parecia divido entre desprezo, raiva, divertimento e pena. Vai entender.

 

            - Abaixem as armas. – ordenou ela, se virando para as meninas. Todas abaixaram os arcos obedientemente. – Elena, você fez como sempre um ótimo trabalho, sabia que podia confiar em você. – então cravou os olhos em mim e voltou a ficar séria. – Quanto a você, virá comigo. Caçadoras, retornem ao acampamento.

 

            Sem que ela repetisse a ordem, elas nos deram as costas e correram de volta para a rala floresta que ficava a frente da escola. Artemis não se virou para elas, mas manteve-se fixa no meu rosto, como se estivesse esperando alguma coisa. Desconfortável, coloquei as mãos nos bolsos (outra fisgada de dor nas costas) e desviei os olhos.

 

            - Venha. – disse ela, antes que eu abrisse a boca. Caminhou resoluta até a rua quase coberta de neve e parou na beirada, e eu a segui, parando um pouco atrás. Não estava gostando nada daquela situação.

 

            Artemis olhou para cima e disse alguma coisa em um tom muito baixo para que eu escutasse. Olhei para cima e resisti ao impulso de piscar para garantir que aquilo era só uma ilusão. Mas eu sabia, no fundo, que não era. Um trenó (deus, um trenó) decorado em prata parou levemente na rua, sem danificar a neve (desafiava até as leis da física agora!), os cervos brancos e imaculados parando quase com respeito à deusa. Ela afagou o focinho de alguns, antes de subir e me olhar impaciente.

 

            - Vamos, o que está esperando?

            - Foi mal, tia Artemis, - eu comecei. – mas minha mãe diz que eu não devo entrar em carro ou trenó de estranhos.

 

            Foi uma coisa muito, muito errada para se dizer. Por favor, se encontrarem uma deusa, não faça isso, vai acabar com um par de cervos furiosos pulando para cima de você, batendo os cascos no seu peito (seria uma espécie de coité invertido, sabe?). Caí pela segunda vez sem conseguir respirar, sentindo que meus rins tinham trocado de lugar com meus pulmões. Quando consegui levantar, Artemis ainda me olhava dura, só que irritada agora.

 

            - Não estou com paciência para lidar com suas gracinhas. Já causa problema demais só de boca calada. Agora venha, agora.

 

            Temendo outro ataque dos cervos assassinos, me forcei a ir até lá, embora cada fibra do meu corpo gritasse “Caia fora!”. Subi no trenó e me deixei cair num canto, sem saco para fazer mais nada. Com um solavanco, o trenó deixou o chão (e meu estômago) antes que eu percebesse.

            Eu só queria jogar baseball!

 


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