Impulsiva escrita por Maíra Viana


Capítulo 11
Capítulo 11


Notas iniciais do capítulo

Ué, você ainda está acompanhando essa história? Que surpresa! Obrigada por ler Impulsiva até chegar ao PENÚLTIMO capítulo! Então... vamos lá?



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Capítulo 11

Se eu fosse boa com desenhos e, por um acaso soubesse como passar minhas ideias para traços, eu me desenharia de cabelos médios, pretos e desgrenhados, com os lábios cortados, sobrancelhas grossas e um sorriso largo. Talvez grande o suficiente para justificar os apelidos de “coringa”, quando eu era menor. O irônico é que nos outros eles encontram inúmeros defeitos, mas são incapazes de detectar a podridão que existe neles mesmos.

Nessa época, eu vivia observando os galhos das árvores emoldurarem o céu, e adorava colocar a mão do lado de fora da janela do carro em movimento. O vento me fazia sentir viva. Hoje, resolvi entrar em uma antiga rede social que eu até havia esquecido que existia, e lá estava meu perfil repleto de rostos conhecidos que diziam serem meus amigos. Queria que todos soubessem que sinto falta das brincadeiras na escola e de quando passávamos cola nas provas e depois saíamos rindo e nos achando os mais rebeldes. Não é vergonha admitir ter saudades de um tempo que não voltará. Vergonha é não ter nada para sentir falta. Cadê vocês, meus amigos, que colocavam apelidos nos professores? Cadê vocês, que colavam adesivos nas costas dos outros e pediam para que ninguém contasse? Cadê vocês? O vento levou para algum lugar distante.

Pelas duas horas da tarde, eu me lembrei do meu compromisso e tive que pegar minha bolsa, apressadamente, colocar o vestido dentro de uma caixa e ir para a casa de Amanda. Dentro do táxi, eu fiquei observando as ruas desertas de um modo diferente do que costumo fazer. Apenas conseguia escutar dentro de minha cabeça uma voz que dizia para eu apreciar as calçadas com ipês amarelos, rosas crescendo no canteiro da Dona Cida e até mesmo o João, um senhor fofoqueiro que adorava regar seu jardim, enquanto conversava sozinho. E foi isso que fiz, apreciei. Cada pétala foi gravada por mim, cada aroma das plantas e cada ruga no rosto do João. Eu sabia que aquelas ruas um dia, não iriam ouvir o som dos meus passos e que, talvez, aquela seria a última vez que eu fosse poder enxergar a natureza tão de perto. O som do galo sendo trocado pelos cantos misturados dos pássaros na minha janela que insistem em me acordar todas as manhãs; minha vizinha gritando o cachorro “Brutus, volta aqui!” todo fim de tarde e as crianças brincando de futebol na rua sem saída, aqui perto... Eu sabia que um dia tudo isso iria acabar de vez. A morte está se aproximando e consigo sentir suas mãos tentando me puxar para seu colo, como se ninasse sua filha. O carro está chegando à casa de Amanda e eu temo quando a morte me dará o beijo final. Tenho tanto medo. Será que ela irá me deixar terminar meus textos ou me surpreenderá no meio do gole de café?

Na frente de sua casa, Amanda já estava olhando os caminhões descarregarem grandes caixas, e as levarem para dentro. Com certeza, deveriam fazer parte da decoração.

– Lisa, você veio! – Amanda disse, correndo até mim, e me dando um abraço. – Eu sabia que você não me deixaria na mão!

– E você quer minha ajuda exatamente com o quê? – perguntei retribuindo o abraço.

Karl, Laura e Track apareceram na porta me olhando com um sorriso disfarçado, como se um “obrigado por comparecer” ou “obrigado por não deixar tudo por nossa conta” e independente do que realmente significassem aqueles sorrisos, eu queria que eles fossem eternos. Cumprimentei Track e Laura com um abraço apertado e quando chegou a vez de Karl, minha vontade era de beijar seus lábios até não poder mais... Só que tive que me conter. Ele me deu um sorriso e retribui. Não pense que fiquei chateada por ele ter me dado só isso, menina, porque eu sabia que se eu lhe desse um abraço ou beijo na bochecha, nossas vontades impulsivas falariam mais alto e não haveria mundo para nos segurar.

– É que estou cheia de coisas para verificar ainda e não posso perder tempo, já que a festa é daqui a algumas horas! Queria que você fosse ao centro e comprasse os discos para tocar, porque se eu deixasse a música por conta de Laura, seria um desastre! – ela dizia, rápido e rindo. Ela estava contente... Todos estavam. Parecia que, finalmente, a vida estava sorrindo para nós.

– Em quê eles estão te ajudando? – estava me referindo a Laura, Karl e Track, obviamente.

– Eles estavam verificando se as encomendas chegaram corretamente.

– Então já que terminaram, eles podiam vir junto comigo. – e os olhei como se estivesse confirmando meu pedido. Todos concordaram.

– Tudo bem, vá depressa! – larguei meu vestido no canto do sofá e saímos da casa de Amanda, sem carro, porque não era tão longe e não seria necessário gastar gasolina.

O trânsito na avenida estava bem movimentado e andávamos na calçada com prédios nos cercando. Track passou numa sorveteria e comprou um sorvete para Laura, que não parava de se lambuzar com a cobertura de creme, enquanto eu me contentei em pegar uma garrafa d’água, por causa do calor.

– Você devia experimentar isso, Lisa. – Laura se referia ao sorvete. – Está uma maravilha!

– Pensando bem, vou pegar um picolé. – me levantei e fui até o balcão pedir à moça um picolé de milho verde e pegar outro para Karl.

– Dois? Caramba, depois reclama quando digo que você só sabe comer. – Karl disse rindo e lhe mostrei a língua.

– Esse outro é pra você.

– Eu prefiro o de morango...

– Você já comeu esse, por acaso? – perguntei e ele revirou os olhos. Tirou o papel que envolvia o picolé e deu uma mordida. – Então, o que achou?

– Lisa, pode pegar uma caixa desse picolé! – e todos riram. – Muito bom.

– Quando eu comi, pela primeira vez, também fiquei desse jeito. – Track completou, rindo. – Mas, meu preferido ainda continua sendo o de abacaxi.

– Ah, Track, quase ia dizer que você tem um gosto incrível... Mas, abacaxi? É horrível – e fiz uma careta estranha que arrancou o riso de Karl e Track.

– Nós temos que comprar logo esses discos, caso contrário, é perigoso Amanda dar um chilique. – Laura completou e nos levantamos da mesa da sorveteria quando vi uma mulher sentada no banco da rua, chorando. – O que será que aconteceu?

– Eu vou falar com ela. – e não esperei para ouvir se eles concordavam com minha atitude ou não; simplesmente fui. Ela estava de cabeça baixa e abraçada com sua bolsa, olhando para o chão e deixando as lágrimas rolarem.

– Acho que isto é seu. – peguei uma caneta que estava no meu bolso e me sentei ao seu lado.

– Não é meu. – ela disse, tentando evitar os soluços.

– Por que está chorando?

– Ah, minha querida... Não vale a pena perder tempo comigo.

– Quem foi que disse essa mentira pra você?

– Meu marido – e desabou a chorar novamente. Era uma mulher mais velha por volta de 48 anos, sentada num banco qualquer e sem ninguém para dizer algo motivador. Preste atenção, menina, é com você que estou falando agora. Isso mesmo. Você. Vou te dizer uma coisa que não se deve esquecer jamais, entendeu? Quando encontrar alguém com dificuldades, vá ajudar. Seja sua mãe, seu primo, a garota tímida que nunca falou com ninguém ou até mesmo seu inimigo. Ajude-o. Faça o bem. Ensine para os outros o que é o amor. Se a vida colocou essa pessoa no seu caminho, não foi por acaso.

– É por isso que você está chorando?

– Ele também disse que sente nojo de mim e que não quer me ver nunca mais, porque encontrou alguém mais jovem e mais bonita do que eu. Tinha que ser logo a empregada da minha própria casa? – ela ia falando, falando e falando, como se estivesse esperando, há séculos, para contar isso para alguém. E talvez estivesse. O pior é que as pessoas não fazem ideia do quanto as palavras podem ferir. Eu abracei aquela mulher que eu nem sabia o nome, e deixei que chorasse no meu ombro.

Quando eu tinha oito anos, eu apostei uma corrida com meu primo. Ele iria de bicicleta – por ser mais novo eu achei justo – e eu, a pé. Quando eu estava chegando no ponto marcado, ele passou as rodas da bicicleta por cima do meu chinelo e eu caí com tudo no chão. Não doeu, apenas me levantei com os dois joelhos sangrando e sem a pele, e entrei para a casa da minha avó, onde nossos familiares estavam reunidos. Olhei pra ela e depois para meu joelho, então ela entendeu. Descemos o corredor até chegarmos em seu quarto e me deitei na cama para que ela fizesse algum curativo provisório, – Quando mais nova, ela era enfermeira – e meu primo apareceu todo afobado me pedindo mil desculpas, tentando me distrair com algum jogo. O namorado da minha prima foi me ver e eu estava começando a sentir o efeito daquela brincadeira. “Não chora, Lisa...” ele dizia. Minha avó olhou para ele e depois balançou a cabeça, dizendo: “Chora sim, pode chorar. Isso alivia o corpo, limpa a alma” Então eu chorei. Nunca gostei de chorar perto de outras pessoas, parecia que eu estava fazendo algo errado porque ou elas me olhavam estranho ou tentavam fingir que se importavam, mas naquele dia eu chorei e ninguém fingiu e nem disse nada. E foi a melhor coisa que eu podia fazer. Chorar. A dor só vem depois, e chorar, às vezes, é a única solução.

– Você não merece ser casada com alguém assim. – disse, afagando seus cabelos como se ela fosse meu bebê, alguém frágil que precisa da maior atenção do mundo. O bebê que eu jamais iria ter e o afago que eu jamais iria fazer. O relógio estava batendo e eu conseguia escutar o tic-tac cada vez mais alto.

– Não fale bobagem, garota. – limpou rispidamente as lágrimas no canto dos olhos e colocou uma carapuça de durona. Mulher, eu sei o que é ser fraca, não se envergonhe por causa disso. – Eu é que não mereço ser casada com ele. A vida inteira não fiz nada que chamasse sua atenção, sempre fui resmungona e perfeccionista. Fui a mesma e ele se cansou, é simples.

– Com todo respeito, você está errada – eu sei que com aquele comentário ela poderia ficar com raiva e sair de perto sem ao menos me escutar, mas eu não iria ficar calada. – Você não precisa mudar quem você é pra fazer algo durar. Ele era seu marido e devia te amar com cada defeito e qualidade, porque foi isso que o levou para o altar. Sinto muito, do fundo do meu coração, se ele não foi homem o suficiente e teve que procurar amor barato em outro canto.

– Eu sei, menina. – e aquilo me paralisou como se fosse uma fotografia. Ela me chamou de menina, assim como chamo você, menina. E minha ficha finalmente caiu, assim como a máscara que, às vezes, uso. Somos uma só. Estamos no mesmo barco, menina, e mesmo que as águas nos levem para destinos irreversíveis, eu sei que o sol nascerá dentro de nós. O futuro é incerto e não cabe a nós decidir por quais caminhos percorrer.

– Não acredite se alguém disser que será fácil, porque não vai ser. Mas, o mundo abriga milhões de sorrisos diferentes e olhares encantadores. Um dia você se apaixonará por um que, realmente, valha a pena. E, se isso não acontecer, é porque a vida tem outros planos pra você.

– Quem é você? – ela perguntou, de uma forma esquisita.

– Ah, senhora, eu sou muitas o tempo inteiro.

Ela se levantou arrumando a bolsa no ombro e me olhou, intrigada, mas foi de uma forma boa, pelo menos para mim.

– Eu tenho que ir. Obrigada. – me deu um sorriso e saiu da sorveteria. Foi só isso que ela disse, obrigada. Talvez eu tivesse mudado o seu dia e ela não quisesse ou não sabia dizer muito... Mas, independentemente se eu fiz alguma mudança ou não, eu estava feliz.

– Pelo menos ela parou de chorar. Acho que você fez um bom trabalho. – Laura disse.

– Espero que eu a tenha ajudado de alguma forma.

– Então, vamos comprar os discos? – e senti as mãos de Karl me envolverem pela cintura. Um arrepio estranho me subiu.

– É-É melhor mesmo. – tinha que gaguejar, Lisa? Karl riu e pisei em seu pé, disfarçadamente, já que ele estava por trás. Track e Laura foram os primeiros a saírem da sorveteria e nós os seguimos.

– Você sabe que música Amanda vai querer? – Track perguntou.

– Vou pegar as de que eu gosto porque, se ela mandou que eu comprasse, é sinal de que ela confia no meu bom gosto – e todos riram.

– Amiga, não se iluda desse jeito.

– Laura, por que não faz um favor à humanidade e fica quieta? – ela mostrou o dedo do meio e, finalmente, chegamos na loja de discos. Era grande e espaçosa, com violões, guitarras, flautas e saxofones na entrada, nos fazendo um convite gracioso de ver o que mais a loja tinha para oferecer. Nos fundos, havia uma prateleira gigantesca de discos, CDs e DVDs de música, o que me fez ficar com o olhar perdido.

– Eu vou até me sentar porque isso vai demorar. – Laura disse bufando e se acomodou numa poltrona vermelha que estava no canto. Track foi fazer-lhe companhia.

– Caramba, são muitos!

– Moço, tem Brian Crain? – perguntei, virada para o vendedor que foi direto para o computador verificar. Karl me olhou estranhando.

– Não se preocupe, ele toca piano e dará certo com a festa.

– Se formos pegar só isso, a festa ficará chata! – ele disse, reclamando e revirando os olhos. – Podemos misturar um pouco?

– Óbvio que iremos fazer isso!

– Você é demais! Quero um disco do Big Joe Turner. – falou quando o vendedor apareceu com o disco do Brian Crain e me entregou.

– E pegue também da Etta James, por favor. – e foi procurar o que havíamos pedido.

– Cara... Etta James vai ser a atração principal da festa, até imagino. – ele dizia mexendo as mãos e com os olhos arregalados, com um sorriso enorme no rosto.

– Eu vou ficar completamente pirada quando começar a tocar! – fechei os punhos e dei um gritinho agudo. – Mas, precisamos de algo um pouco mais atual também porque Amanda levará alguns sobrinhos e primos.

– Ed Sheeran é uma boa pedida, não acha?

– Gosto dele, acho que a criançada vai se divertir com as músicas. O que acha de tocar um pouco de Jack Johnson?

–– Boa pedida! – ele dizia, procurando algum outro disco na prateleira. – E não pode faltar Arctic Monkeys, por favor.

– Qual seria a graça de ir a uma festa e não tocar Arctic Monkeys? – e peguei os três discos na prateleira. O vendedor apareceu e trouxe o disco da Etta James. Eu estava me sentindo num parque de diversões com aqueles discos nas minhas mãos. Sei que muitos não gostam desses cantores. Meu pai até brincava comigo quando eu era menor “Lisa, coloque alguma música.” E aí eu dizia “Pai, já está tocando música” e ele retrucava, rindo, “Isso não pode ser chamado de música”. Na época eu virava pro lado e fechava a cara. Hoje, encaro numa naturalidade sem igual... Não gosta das mesmas músicas que eu? Tudo bem, não se pode ter a mesma opinião, sempre.

Colocamos os discos numa sacola, fomos para a casa de Amanda e, quando chegamos, levei um susto tremendo. O jardim estava todo iluminado e bem arrumado e ao entrarmos, só conseguia focar naqueles lustres gigantes, no teto. Parecia que eu estava dentro de um palácio real, com longas cortinas e sofás brancos por toda parte.

Quando pisei no enorme tapete vermelho que estava na entrada, quase me joguei e o abracei. Era macio demais. Havia grandes mesas na sala sendo ocupadas por doces em caixinhas douradas e salgados confeitados. Quando olhei no relógio, eu havia entendido o porquê de tudo estar arrumado: estava quase dando 19:00!

Amanda apareceu com um vestido imenso, cheio de frufru na saia e rosa claro do início até o fim. Usava um colar e pulseira de pérolas, enquanto seus cabelos estavam presos para trás. Quem visse Amanda, logo a acharia a menina mais doce de toda a terra, mas quem a conhecesse... Teria certeza. Ela estava fantástica.

– Vocês não vão se trocar? – ela perguntou, afobada, se olhando num pequeno espelho que carregava na mão.

– Onde vamos tomar banho? – perguntei, mas Amanda continuava mexendo em seus cabelos e indicou com a cabeça duas portas no fundo do corredor. Peguei as toalhas e entreguei para Laura, Track, Karl e outra para mim.

Primeiro, fomos Laura e eu tomar um banho rápido, apenas para nos refrescar e nos deixar com um bem-estar para as próximas horas. Depois, os meninos foram pro banho. Fui ao lavabo perto da cozinha, fazer minha maquiagem já que o restante da casa estava movimentado demais. Me encarei diante do espelho, por alguns minutos, tentando pensar no que eu iria fazer para ficar bonita naquela noite. Passei sombras claras bem iluminadas e optei por um batom coral. Coloquei o vestido e suas mangas caíram perfeitamente sobre meus ombros, me deixando clássica como a ocasião exigia.

Quando saí do banheiro, todos olhavam pra mim com aqueles olhos enormes, como se estivessem vendo duendes ou qualquer outra coisa estranha. Mas eles me olhavam e eu não sabia dizer se gostava disso. Laura usava um vestido azul mais claro, rodado também e um pouco mais simples do que imaginei que seria. Karl e Track usavam um smoking parecido, com enormes botões dourados nas longas mangas.

– Você está bonita, Laura. – disse sorrindo.

– Obrigada, você também. Apesar de achar que está muito básica. – fez uma careta brincalhona e comecei a rir. Mas eu me sentia bonita, pelo simples fato de que eu estava sendo eu mesma. E não existe beleza maior do que essa.

– Já tem pessoas no jardim, então tratem de se misturar. – Amanda disse e foi correndo para seu quarto, no andar de cima. O céu já estava escuro e o pessoal chegava numa rapidez impressionante, todos bem vestidos e glamurosos.

Laura foi conversar com um grupo de pessoas que eu nunca tinha visto na minha vida e Track foi pegar alguma bebida.

Depois de uns trinta minutos, a casa estava tão cheia que era uma ideia quase patética tentar andar sem esbarrar em alguém. Até que ouvimos uma música e nossos olhares se voltaram para a grande escada pela qual descia Amanda. Tocava Mozart – Requiem e fiquei super feliz que o DJ havia compreendido minha letra e seguido a ordem das músicas.

Todos olhavam para Amanda, uns sorrindo e outros tirando fotos. Então apareceu Felipe, segurando sua mão e a conduzindo para o jardim, enquanto ela cumprimentava com leves acenos a todos.

Logo o pessoal começou a se espalhar pela enorme casa e desfrutar dos doces que estavam sendo servidos. Eu não conhecia muita gente que ela havia convidado, apenas aqueles que estudaram conosco, antes que eu abandonasse a escola.

Já ouvi muitas lamentações como “coitada, nem terminou o 3° grau...” e não entendo porque eles resmungam tanto em relação aos meus estudos. Sempre recebi incentivos para permanecer, mas foi minha escolha sair da escola. Será que eles não entendem? Estou feliz ganhando meus méritos nas fotografias e não sinto remorso pela minha vida ter tomado esse rumo. Apenas gostaria que os outros parassem de fazer especulações a meu respeito. Eles não me conhecem e a vida é minha.

Eu e Karl fomos para o jardim dos fundos nos sentarmos já que, embora ele nunca tivesse me dito nada, eu sabia que muito movimento ao seu redor lhe causava desconforto.

– Obrigada pelo vestido. – disse, me acomodando no banco verde escuro e de ferro, que estava frio por causa da queda brusca de temperatura.

– Você está linda. – sorriu e olhou para o céu que cobria nossas cabeças. Ele estava maravilhoso com a barba crescendo e vestido, daquele jeito.

– Estou me sentindo imensa de gorda com esses babados. – falei e olhei para o vestido que ocupava metade do banco.

– Mas você não está – e me encarou. Ele tinha mania de olhar dentro dos meus olhos sempre que ia falar algo que, provavelmente, fosse importante pra ele. – E mesmo se estivesse, ficaria linda de qualquer jeito.

– Karl, o que está acontecendo?

– Falei algo de errado? – ele perguntou, preocupado, e simplesmente neguei com a cabeça, dando um beijo no seu rosto, em seguida. Era estranho quando Karl me dizia aquelas coisas, como se nada estivesse certo. A ideia de ter um homem ao meu lado dizendo o quanto sou linda, me parece um pouco idiota. Nunca imaginei que fosse ouvir aquilo, ou pior, que eu fosse gostar de ouvir aquilo. Muito menos vindo de Karl, alguém que já desejei nunca ter conhecido.

– Lisa! – Track me gritou em meio à música alta que tocava. – Tem uma mulher querendo falar com você. – me levantei confusa e segui Track, que andava por entre o jardim me guiando até a entrada da casa de Amanda. Em meio às luzes fortes e empurrões sem más intenções, eu encontrei Mirela com um vestido cinza escuro cintilante que me olhou, sorrindo.

– Mirela? – perguntei, estranhando sua presença e ao mesmo tempo, admirada. – O que faz aqui?

– Que saudades, Lisa! – ela me deu um abraço apertado. – Karl me convidou para que eu me juntasse a vocês.

– Você não sabe o quanto fico feliz por você estar aqui! – alisei suas bochechas sentindo sua pele macia contra meus dedos. Mirela era uma pessoa do bem e merecia todo carinho que o mundo pudesse oferecer.

– Gostou da surpresa? – uma voz grave perguntou ao pé do meu ouvido, me fazendo assustar. Me virei e coloquei as mãos em volta do pescoço de Karl.

– Obrigada. – falei baixo e sabia que ele não tinha escutado nada por causa do barulho, mas ele olhava para meus lábios como se tentasse lê-los. – Estou te devendo uma. – falei, lhe arrancando um riso. Eu queria chorar. Karl provocou o maior sofrimento da minha vida, mas também era o culpado da minha felicidade. Tudo aquilo era uma loucura, desde o início.

– Aceitam alguma bebida? – o garçom chegou, perguntando, me desprendendo desses pensamentos inúteis e que não me levariam a lugar nenhum. Karl e Mirela pegaram whisky e eu peguei um ponche.

– Nossa, – Mirela tossiu em meio aos risos. – isso é realmente forte.

– Se eu fosse você, não tomaria muito não. – Karl disse, balançando a cabeça e tomando um enorme gole do seu whisky.

– Por quê?

– Mulher é fraca pra whisky. Primeiro, acha forte, mas depois que começam a gostar... Não param mais.

– Você está me desafiando, rapazinho? – Mirela perguntou brincando, e comecei a rir dos dois. Eles se davam bem.

– Nada disso, senhora. – Karl disse imitando um intelectual. Mas, logo desmanchou aquela pose. – Só um último aviso: sempre tenho que levar mulheres carregadas para suas casas, por causa do álcool. – Mirela deu um tapa fraco no braço de Karl e sorri de leve.

– Não sou mulher de sair carregada de festas.

– Acredito que não seja mesmo. – eles sorriram e brindaram, como se nada daquela conversa tivesse valido a pena.

Começou a tocar Don’t – Ed Sheeran e Karl me olhou com um sorriso enorme e começou a sacudir a cabeça no ritmo da música. Não queria comemorar nada com Karl, minha vontade era de sair dali.

– Lisa? – ele perguntou com uma expressão confusa e me olhando com a testa franzida. Era como se tudo tivesse ficado em câmera lenta, e preto e branco. A música parecia ter aumentado e cada movimento que faziam ao meu redor, deixava minha visão mais turva.

– Eu preciso tomar um ar – falei, sentindo Karl pegar no meu braço, mas logo me desprendi. Minha cabeça rodava e meu coração batia forte. Seria efeito do álcool? Fui para a esquina, tentando me afastar um pouco daquele barulho, mesmo que desse para ouvir os ruídos enquanto eu estava sentada na calçada.

– Você está bem? – Karl se sentou ao meu lado, com as mãos nos joelhos e olhando para o chão.

– Deve ter sido o álcool.

– O ponche era para as crianças, não tinha álcool. – e engoli seco. O que então estava acontecendo comigo? Eu havia ficado daquele jeito depois do que Karl disse e... Ah, não! Eu não podia estar com ciúmes de Karl!

– Droga, você me pegou dessa vez. – eu comecei a rir e coçar o nariz nervosamente. Sinceramente, seria difícil convencer Karl que eu havia escapado da festa por outro motivo.

– No que você está pensando? – senti meus olhos arderem e o tempo voltar. A última coisa que eu gostaria de parecer na frente de Karl era fraca, mas nem sempre dá pra evitar.

– No meu pai.

– Eu gostava daquele velho.

– Sei o quanto. – estava sendo um recorde ficar aquele tempo sem ser irônica com Karl, mas, definitivamente, eu precisava dizer aquilo. Estava me sugando por dentro.

– Realmente, quer falar sobre isso? – ele perguntou, um pouco irritado. – Estávamos numa festa, curtindo, e agora você quer estragar tudo?

– Eu não estou estragando nada.

– Está sim! – falou, entre dentes, e me lançou um olhar estranho. – Você não é a única que pode sentir culpa nessa história, querida.

– Do que você me chamou? – arqueei as sobrancelhas e devolvi seu olhar nojento. – É assim que você chama as mulheres que você leva para casa, também, Karl? – dei um sorriso cínico e mordi o lábio inferior, adorando o meu teatro. – É assim que você as chama quando terminam de se esfregarem?

– Então é por isso que está emburrada comigo? – ele perguntou, rindo, e desfazendo aquela máscara que muitas vezes, eu não sabia se ele realmente a colocava ou deixava de lado.

– Estou brava por causa de tudo! – alterei meu tom. – Pelo meu pai, por essas mulheres, por você transformar meus sentimentos em uma completa confusão! Sabe o quanto odeio isso?

– Lisa, me escute... Eu sei que é egoísmo da minha parte, mas se eu não mandasse matar o seu pai, eu morreria. Os outros iriam vir atrás de mim e peço sinceras desculpas por ter feito uma enorme merda na sua vida, mas o maior culpado de tudo foi seu pai, que não me pagou.

– Você ainda tem coragem de acusar alguém que está morto?

– Ele se levantará do caixão por um acaso, para se defender?

– Cala a boca, cretino. – me levantei, rapidamente, cheia de raiva e voltei para a casa de Amanda. Karl corria atrás de mim e, quando tentei me fechar no banheiro, ele colocou o pé. Soltei um grito de raiva quando ele entrou no banheiro, trancou a porta e guardou a chave no bolso.

– Você não sai daqui enquanto não conversar direito comigo. – revirei os olhos e me sentei na tampa do vaso sanitário.

– Não quero conversar com você. – falei, emburrada e olhando para o chão, enquanto Karl mexia os pés num ritmo acelerado.

– Eu também tenho o direito de me arrepender, sabia?

– Será que dá pra você calar a porcaria da sua boca e me deixar em paz? – seria impossível descrever o quanto eu estava com vontade de ir pra minha casa e esquecer tudo isso. Quando notei, Karl havia me pegado pela cintura e me colocado em cima da pia, me prendendo ali com os braços.

– Eu nunca vou te deixar em paz, Lisa. – e começou a distribuir beijos no meu pescoço, enquanto eu permanecia sem reação. – E pare de agir como uma imbecil comigo, por favor. – e subiu os beijos para minha orelha até que nossos olhares se encontraram e enfim eu percebi a grande besteira que estávamos fazendo.

– Não faça mais isso, Karl. – peguei suas mãos que estavam na minha cintura e as tirei de lá, descendo da pia e ficando quase do seu tamanho. – Me dá nojo só de pensar no que você fez ao levar essas mulheres para casa.

– Acha que sou tão baixo a ponto de transar com mulheres bêbadas?

– Ah, por que com as sóbrias você não vê problema algum, não é mesmo? – ele soltou uma gargalhada alta, levantando a cabeça para o teto.

– Você é a pessoa mais difícil que já conheci.

– E você o mais babaca.

– Vai continuar me ofendendo? O que eu tenho que fazer pra você acreditar que não sou tão canalha?

– Você não tem que me provar nada. – falei, brava, e ele puxou meus cabelos da nuca com força, fazendo com que eu soltasse um breve murmúrio. Voltou a beijar meu pescoço e dar mordidas no meu queixo, enquanto eu tentava me mover.

– Há muito tempo, eu não tenho olhos para outra garota que não seja você, Lisa. – ele brincava com meu lóbulo e, aos poucos comecei a me perguntar se eu realmente deveria permitir que ele levasse aquilo adiante.

– Karl, eu estou com sede. – ele parou de me acariciar e me olhou. Eu não podia, simplesmente, deixar que ele continuasse o que estava fazendo. Caso contrário, eu não teria forças para pedir que parasse. Ele tirou a chave do bolso e abriu a porta, fazendo que o barulho da música logo invadisse meus ouvidos.

Tentamos andar um pouco mais rápido, mas Amanda realmente havia convidado muitas pessoas e não sei como ela estava conseguindo dar atenção a todos. Achamos uma mesa vazia perto das comidas quando começou a tocar Flip, Flop and Fly do fantástico Big Joe Turner e todos começaram a bater palmas e se remexerem nas cadeiras, até que alguns se levantaram e foram para a pista.

Havia um rapaz alto e magro, com cabelos pretos, que ficava encarando de longe, uma menina com unhas decoradas e vestido rosa. Ela olhava admirada, vendo todos dançando e rindo dos passos esquisitos que uns faziam, até levar um susto quando o rapaz pediu que ela dançasse com ele. Tímida e com um sorriso angelical, ela aceitou o convite e a chance de fazer um amigo, ou até mesmo... um novo amor. Tudo que ele precisou foi de um pouco de atitude e a noite dos dois, não seria mais a mesma. E você, por que espera tanto para fazer com que algo aconteça?

Quando a música do Charles Chaplin começou a tocar, abri minha boca num susto misturado com um riso e puxei a mão, bruscamente de Karl. Como Smile é uma música mais lenta, ele colocou as mãos ao redor da minha cintura e posicionei as minhas em seu ombro, nos balançando em uma perfeita sincronia. Todos se juntaram no meio da pista e também apreciavam a música, até que o DJ trocou-a para Do I Wanna Know da nossa banda preferida, Arctic Monkeys.

Apenas soltei um sorriso, que Karl retribuiu de bom agrado e deitei minha cabeça em seu ombro. Entrelacei meus dedos ao redor de sua nuca, abraçando-o com a desculpa de que era pra dançarmos. Mas a verdade é que eu queria abraçá-lo, beijá-lo, poder sentir Karl me fazendo carinhos e dizendo coisas que me deixariam sem fala.

– Nossa música. – ele disse, no meu ouvido, fazendo seus lábios se esbarrarem na minha orelha. Não respondi com palavras, só o puxei mais forte contra meu peito como se quisesse que ultrapassasse meu corpo. Era nossa música. E continuaria sendo por toda a eternidade.

As luzes foram apagadas fazendo com que levássemos um susto repentino, e logo alguém disse no microfone “é hora de cantar parabéns”. E Amanda foi para trás da enorme mesa com o bolo de três andares. Câmeras e filmadoras focando em seu rosto para capturar todas as expressões e brilho no olhar, enquanto Amanda soprava as velas e todos a aplaudiam.

Karl estava ao meu lado quando os “parabéns” terminaram e pegou na minha mão, me fazendo olhá-lo. Ele estava diferente. Saiu me puxando pela festa, devagar, e resolvi acompanhá-lo seja lá para onde estivesse me levando.

– Eu tenho um presente pra você. – ele disse, quando paramos na entrada da casa de Amanda.

– Tem?

– Sim – respondeu com um sorriso. – Só que tem um problema.

– E qual é?

– Nós teríamos que ir para a boate. – e olhou para o chão, molhando os lábios com a língua, mas não estava tentando ficar bonito ou me impressionar. Ele estava envergonhado por dizer aquilo e nunca o havia visto tão intenso.

– É por causa desse presente que você queria que eu viesse? – e usei um tom de acusação, de brincadeira, e ele riu balançando, a cabeça. Soltei um riso e lhe dei um empurrãozinho, indicando que eu estava pronta para ir.

Ele andava com as mãos nos bolsos e chutando uma pedrinha pelo caminho enquanto eu segurava seu braço, como se fosse meu ponto de apoio. Não havia barulho na boate – Karl não gostava de abri-la quando não estava por perto – e entramos como sempre, pelos fundos.

Estava realmente se parecendo com uma casa de verdade. Sofás, mesa, cadeiras em seus devidos lugares e até umas flores de enfeite na bancada. Talvez fosse difícil para Karl viver ali, como se ninguém se importasse com ele ou com sua segurança.

– Bom, onde está o presente?

– Eu vou procurá-lo no quarto e chamo você. – concordei com a cabeça e ele saiu por um longo corredor e entrou num quarto. Ouvi coisas caindo e ele resmungando porque bateu o pé na quina do guarda-roupa, o que me causou uma crise de risos.

– Posso ir? – gritei e não houve resposta. Então, fui andando devagarzinho até chegar à porta de madeira do quarto. Quando abri, as luzes estavam completamente apagadas e havia velas no chão fazendo o contorno da cama. Não estava maravilhoso, porque Karl nunca foi muito bom em decorar nada, mas se estivesse perfeito não combinaria conosco. – Karl, cadê você? – espreitei meus olhos para tentar enxergá-lo, mas logo senti suas mãos roçarem minha cintura e me virarem para si.

– Estou aqui. – ele disse, sorrindo, e encostando nossos narizes, igual um beijo de esquimó. Estávamos sozinhos e isso me causava um pouco de medo.

– O que está fazendo? – perguntei, sussurrando, e quando olhei nos seus olhos, senti vontade de fechar os meus. Meu corpo estava amolecendo e aquilo não estava nos meus planos.

– Eu sei que não é o presente que você estava esperando, – deu um sorriso de canto – mas eu quero que você seja minha, Lisa. Apenas minha. – fechou os olhos e começou a beijar minha bochecha e descer para o meu pescoço, me causando arrepios.

– Eu sou sua.

– Então prove isso. – Seu hálito quente batia no meu pescoço e nunca imaginei que aquela sensação fosse ser tão boa.

– Pare com isso, Karl! Não preciso te provar nada. – ele só deu uma gargalhada, fazendo que a minha fala anterior se desmanchasse completamente. Eu não queria que ele parasse.

– Não sabe quanto tempo esperei para fazer isso, Lisa. – ele tentava controlar sua voz e estremeci.

– Nós já fizemos isso, Karl. – eu não queria deixar claro o quanto eu estava magoada, mas era algo notável na minha expressão.

– Não. – negou com a cabeça e pegou na minha nuca, me fazendo olhá-lo. – Eu fiz. E você sabe que me arrependo, mas eu quero fazer isso hoje com você.

– Você disse que não se lembrava.

– No começo eu não me lembrava, mesmo, mas depois de uns dias tudo foi ficando mais claro... Mas eu também disse que você não me deixava nervoso, – ele riu e fomos caminhando até nos sentarmos na beirada da cama. – e nunca tremi tanto na minha vida. – e foi a minha vez de gargalhar.

– Você é a pessoa mais linda que já conheci – ele disse, com um brilho nos olhos e dei um sorriso franco, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Pegou na minha cintura e me fez deitar, enquanto sua respiração se transformava na música mais bonita que já escutei. – Você confia em mim?

– Você já sabe a resposta, Karl.

– Eu preciso ouvir você dizendo que sim, Lisa. – abaixou o olhar e depois voltou a me encarar. Aproximei meus lábios de seu ouvido para que apenas Karl ouvisse o que eu iria dizer.

– Eu amo você, panaca. – na minha cabeça eu iria dar um risinho depois de me expressar, mas travei. O que eu disse era sério demais para rir. – Isso te responde? – Meus olhos transbordavam lágrimas que não estavam inclusas no meu plano e me senti a pessoa mais idiota do mundo.

– Lisa, não chora. – ele afagou meus cabelos e me puxou para um longo selinho que eu até acharia romântico, mas ele fez aquilo só para que eu não percebesse quando a dor me invadiu. – Eu daria minha vida por você.

– Seu segredo está guardado comigo. – disse, tentando brincar com o que ele havia dito, mas pra ser sincera, era como se ele estivesse me rasgando ao meio.

– O seu também – dei um sorriso de canto e o beijei sem pressa. Afinal, Karl me pertencia também e não importava quem dissesse o contrário, eu conseguia sentir. E me fazer sentir esse amor tão incompreendido e estranho, sem dúvida alguma foi o melhor presente que ele poderia ter me dado. Amar não é pra quem diz estar pronto, mas sim para quem se arrisca. É pra quebrar a cara, chorar igual a uma criança, falar coisas bregas e fazer brincadeiras clichês. Amar, por fim, é um ciclo onde existe sim, o tão falado, ponto final. Mas, você é o autor dessa história e tem o lápis em suas mãos. Escreva com sabedoria.

Acordei de madrugada com o barulho de um forte trovão e me sentei na cama enrolada no lençol, enquanto Karl dormia de bruços. E foi assim que minha ficha caiu. Eu dormi com o mandante do assassinato do meu pai. Isso não soa ridículo pra você, menina?

– Lisa? – ele perguntou, com uma voz sonolenta, e se sentou na cama, esfregando os olhos. – Está tudo bem?

– Eu... – eu não sabia o que pensar, sentir ou fazer. Não sabia! Eu estava errada por ter seguido meus sentimentos ou eu apenas agi por impulso? Eu não deveria nem ter continuado a conversar com aquele idiota, quanto mais ter transado com ele! Ah, menina, sempre soube que eu estava errada nessa história, mas nunca imaginei que isso fosse me machucar tanto, por dentro. Também não imaginei que fosse amá-lo de tal forma.

– Aconteceu alguma coisa? – ele parecia preocupado comigo e o sono já não estava mais ali. Tentou pegar no meu braço e me virar, mas era como se tivessem colocado meu corpo dentro de um frízer. Outro trovão me despertou desse transe e me levantei da cama, indo até o banheiro do quarto de Karl enrolada no lençol. Joguei água no rosto e fiquei me encarando no espelho, toda borrada por causa da maquiagem.

– Eu preciso ir.

Saí do banheiro e fui pegar minhas roupas no chão, quando Karl se sentou no colchão e ficou me olhando enquanto eu me vestia.

– Por que está fazendo isso? – a última coisa que eu precisava naquele momento era alguém fazendo cara triste por eu estar partindo. Desde quando sentem minha falta? Desde quando se importam? De volta para onde sempre estive. No meio do caos e do nada. Sozinha.

– Será que você pode esquecer o que aconteceu? – fiquei impressionada com minha capacidade de manter o equilíbrio naquela situação. Se fosse antigamente, eu estaria berrando coisas absurdas e dizendo tudo que viesse na minha mente. Karl vestiu uma calça de moletom cinza e fui procurar meus sapatos, quando ele me prensou contra a parede, de repente.

– Acha que consigo esquecer o que acabamos de fazer, Lisa?

– Por favor... – fechei meus olhos na esperança de ser levada pra outro lugar, mudar de planeta ou até mesmo fazer com que conseguisse parar de pensar, mas o que eu fiz mesmo foi chorar... Chorar... Chorar. A culpa me consumia aos pouquinhos, acabando comigo, gradativamente.

– Você está arrependida, eu entendi. – ele riu e mordeu os lábios com força, por causa da raiva. Balançou a cabeça, pegou meus sapatos embaixo da cama e os jogou em mim. – Era isso que você estava procurando? – eu estava sentindo vergonha. Só isso. Vergonha de mim mesma. Ah, Lisa, por que teve que se tornar isso?

– Você sabe onde está minha bolsa também? – eu estava rindo por dentro por causa daquela minha pergunta atrevida. Sempre fazendo besteira.

– Você quer sua bolsa? Então vou procurar pra você. – e jogou uma mesinha pequena no chão, fazendo que os copos de café se espatifassem. – Aqui não está. – Agora foi à vez de pegar sua coleção de Pokémon que estava numa prateleira perto do guarda-roupa e jogar no chão, peça por peça. – Aqui também não está.

– Quer fazer seu teatro? Vá em frente, faça! Mas lembre-se que essas são suas coisas. Não há nada aí que vai me atingir, seu idiota! – e minhas palavras foram saindo e saindo como um carro sem freio pelas ruas. O problema é que Karl nunca conseguia ficar quieto quando eu o ofendia e isso não era bom.

– Quer que eu te atinja, Lisa? – perguntou rindo largamente e se aproximando de mim cada vez mais. Me puxou pela cintura e, por um momento, pensei que ele fosse ser tão baixo a ponto de me beijar, mas ele rasgou as mangas do meu vestido e começou a rasgar o resto.

– Para! – tentei fugir, mas ele me deu um tapa estalado no rosto e levei minha mão na bochecha, que ardia como brasa. Tive que me sentar no chão, encolhida como quando Karl me forçou a fazer coisas que eu não estava pronta e nem com vontade... E aquele pesadelo pareceu voltar. – Você é igual a Daniel. – eu podia não ser muito corajosa, mas tive que reunir todas as minhas forças restantes para dizer aquilo, e Karl pegou forte no meu rosto para que eu o olhasse.

– Nunca mais me compare com esse desgraçado!

– E por que não? – perguntei rindo de sua cara. – Vocês me bateram, então são iguais.

– Foi só um tapa. – revirou os olhos e bufou como se fosse normal receber um tapa todos os dias. Eu estava fervendo de raiva, de ódio, de mágoa. Estávamos cara a cara, mas eu estava com saudades do Karl que me enchia de beijos e dizia pra eu parar de chorar... Não aquele que me fazia chorar.

Ele se sentou na cama, pegou minha bolsa e me entregou.

– Eu posso tomar café aqui? – perguntei, tentando arrancar alguma palavra de arrependimento de sua boca, mas não ouvi “desculpas”, mas sim, algo mais significativo.

– Eu amo você tanto, – mexeu os dedos, soltou um sorriso e continuou olhando para o chão. – que fico maluco só de pensar em te perder.

– Acha que me terá com esses tapas e grosseria?

– Lisa, você se meteu numa enrascada. – ele deu uma gargalhada forte e verdadeira. – Não importa o que você diga ou faça, nunca me afastarei de você. Em hipótese alguma. Entendeu?

– E quem disse que eu quero que você se afaste? – ele virou a cabeça pra mim e depois de muito tempo, me olhou.

– Você pediu pra que eu esquecesse.

No tom de sua voz, era perceptível a mágoa. Será que era difícil olhar o meu lado também?

– E sou incapaz de atender seu pedido. – ele me deixou sem chão e toda apaixonada quando me disse isso.

– Eu estava com medo.

– Do quê?

– Karl, eu não sei se você acredita no que vou dizer, mas nós dois fizemos coisas muito ruins e não tivemos o troco na mesma moeda. – Eu sentia pavor ao me referir daquele jeito sobre mim mesma, mas o que eu podia fazer? Aquela era eu.

– Talvez seja a culpa nossa maior punição.

– Estou com fome. – Prolongar esse assunto só iria me fazer mal, então tratei logo de desviá-lo. Karl se levantou e foi até sua gaveta para me entregar uma blusa e uma calça jeans. Coloquei um cinto para que a calça ficasse parada no meu corpo e fomos para a cozinha.

– Então, senhorita, o que deseja?

– Gostaria apenas de um café com torradas – respondi rindo da nossa formalidade e ele foi preparar as torradas e fazer o café. Eu ainda estava com um peso dentro do coração e tinha certeza absoluta de que não sabia o motivo de estar me sentindo daquele jeito. Entregou-me a xícara com o café e depois colocou num prato as torradas bem quentinhas.

– E o senhor comerá o quê?

– Depois da nossa noite, eu preciso de uma vitamina bem forte. – e tive que soltar uma gargalhada seguida de um tapa – dessa vez de brincadeira – em Karl. Ele deu uma piscadinha e pegou o liquidificador e as frutas, para preparar a vitamina.

Eu o abracei por trás, sentindo suas costas, e entrelacei meus dedos em volta de sua barriga, fazendo com que ele parasse de descascar a maçã que havia pegado na geladeira e largasse as mãos na lateral de seu corpo. Dei beijos no seu ombro e ele tombou a cabeça para trás, com os olhos fechados, fazendo com que eu desse um sorriso.

Não queria nunca mais soltá-lo e talvez, esse fosse algo impossível de se realizar. O problema é que para muitos, existem décadas para ir construindo o amor, aos pouquinhos, só que o meu tempo e o de Karl estão sendo contados nos dedos. Então, resolvemos nos amar intensamente e do nosso jeito complicado e impulsivo.

Karl se virou para mim, rapidamente, e deslizou as mãos pelas minhas pernas e me colocou em cima da pia enquanto olhava, atenciosamente para meus olhos.

– Eu te amo tanto, morena. – um sorriso frouxo saiu dos meus lábios quando ele pronunciou aquele apelido que eu até havia esquecido. Eu não conseguia decifrar o que ele estava pensando naquele momento, mas, se eu conseguisse, poderia perder todo o mistério que Karl tinha.

– Você está muito romântico, ultimamente, sabia? – perguntei, rindo, e lhe dei um beijo demorado na tentativa de ficarmos presos no tempo e não saíssemos dali jamais. Nunca mais.

– Está vendo o que você faz comigo?

Dei um último gole no meu café e mordisquei a torrada.

– Obrigada pelo café da manhã.

– Eu te levo em casa. – Pegou seu casaco e a chave da porta para sairmos. A manhã estava nublada e ventando muito. O movimento dos carros ia diminuindo a cada minuto que se passava, como se liberasse espaço para mim e Karl ficarmos a sós. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas, às vezes, não saber significa permanecer feliz.

Ao chegarmos no apartamento, logo encontrei o porteiro mexendo no celular e batucando os pés.

– Bom dia! – ele disse, sorrindo pra mim, e desligando o jogo do celular.

– Bom dia, Fausto. – respondi e Karl mexeu a cabeça, cumprimentando-o.

– Chegou um rapaz querendo falar com a senhorita.

– Com a Lisa? – Karl perguntou, franzindo a testa e me olhando. – Quem é?

– Eu não sei o nome, moço. – Fausto respondeu. – Mas ele disse que você tinha esquecido umas roupas com ele e veio trazer.

– Roupas? – perguntei, sem entender nada. Do que ele estava falando?

– Sim, ele trouxe umas blusas e pediu para deixar no seu apartamento.

– Blusas? – Karl abriu a boca, indignado. – Quem é esse cara, Lisa?

– E você deixou esse rapaz entrar sem saber quem ele era?

– A senhorita já saiu com esse rapaz algumas vezes. Não vi problema algum. – Fausto respondeu devagar como se esperasse com medo a minha resposta, mas eu apenas subi pelo elevador, nervosa. Roupas?

Quando abri a porta do meu apartamento, foi inevitável soltar um “meu Deus” ao ver aquela bagunça. Estava tudo revirado, armário no chão, sofá tombado, mesa quebrada e meu notebook com a tela rachada.

Nós sabíamos quem havia entrado no meu apartamento e Karl não ia descansar enquanto não pegasse Daniel. E não era preciso nem dizer aquilo; estava estampado em seus olhos.

– O pen drive. – eu disse, devagar, olhando para a entrada do notebook, sem nada. – Ele pegou. – Karl se sentou no chão, com uma expressão espantada e com as mãos na cabeça.

– A essa hora, já devemos estar falidos – ele dizia, sem piscar. – Lisa, você precisa sair daqui.

– E vou para onde?

– Você vem comigo para a Suíça. – ele disse, como se estivesse perguntando, querendo saber minha opinião a respeito. – Tenho um dinheiro guardado em outro banco, para emergências. Mas nunca pensei que fosse precisar usá-lo um dia.

– Você está ficando maluco? – perguntei, rindo. Ele não podia estar falando sério.

– Tudo bem se você quiser ficar aqui.

– Mesmo?

– É claro que não. Você vai comigo, sim!

– Karl, vou abandonar meu trabalho e meus amigos?

– Um futuro comigo não é o suficiente? – e fiquei um tempo sem responder. Eu me recusava a acreditar naquilo! Ele queria que eu largasse tudo para viver um amor perigoso?

– Meus amigos estão aqui, minha vida está aqui!

– Podemos recomeçar em outro lugar, Lisa! – ele falava, entusiasmado, e mexendo as mãos, como se fosse o futuro que ele queria. Mas não era o meu. – Se você não gostar de lá, nós voltamos.

Eu fiquei por uns segundos pensando no que ele havia me sugerido.

– Você jura que nós voltamos?

– Juro. Nem que eu tenha que contratar seguranças para sua proteção.

– Você já me protege, Karl. – e lhe dei um abraço forte. Era ótimo saber que ele se preocupava comigo, mas seria difícil recomeçar aos 18 anos. Eu devia estar me encontrando. Ao invés disso, eu estava espalhando o que já fora construído, para depois colher novamente. Tudo de novo. Será que valeria a pena?

– Eu vou tentar o máximo te fazer feliz. – me apertou contra seu peito e beijou o topo da minha cabeça. Para tê-lo ao meu lado... Valia sim a pena.

– Eu tenho um dinheiro guardado também.

– Tem?

– Sim. – disse e o levei até meu quarto, onde ele observou tudo, atentamente. Abri a gaveta e peguei o pote com o dinheiro. – Era pra te pagar o apartamento.

– E com isso, nós podemos comprar o nosso apartamento. – ele disse, sorrindo e concordei com a cabeça. Nosso apartamento. Nossa vida. Me parecia justo.

– Quando nós vamos?

– Agora?!

Seus olhos continham um brilho enorme, confirmando que Karl era um maluco. Mas um maluco sonhador. Peguei meu passaporte, que estava na bolsa, e comecei a arrumar minhas roupas, quando ele me repreendeu.

– Pra quê? – o jeito que me olhava me deu um medo que nunca senti antes. Não era como se ele fosse me bater ou xingar, apenas como se soubesse que eu nunca iria chegar a usar aquelas roupas. – Lá, tudo será novo.

– Eu vou me trocar. – Peguei um vestido preto e um chapéu. Eu não usava muito coturno porque me deixava mais alta do que eu já era e isso sempre me desconfortou, mas quando coloquei dessa vez, me senti exatamente do jeito que sempre quis: confiante.

Saí do banheiro, alguns minutos depois. Karl me aplaudiu, rindo e me deu um beijo.

– Você está linda.

– Obrigada.

Essa era a ocasião perfeita para que eu batesse minha cabeça e acordasse dias depois. Havia um nó na minha garganta e a sensação de estar andando em direção a um abismo, só piorava.

– Você está bem?

– Acho que sim. – respondi, sorrindo, e ele me deu um abraço apertado, fazendo com que eu retribuísse, imediatamente.

– Você me ama? – aquela pergunta sempre me causava arrepios. Apesar de já ter dito a Karl que o amava, inexplicavelmente, eu possuía dúvidas a respeito.

– Nós precisamos ir.

Senti um arrependimento ao entrelaçar meus dedos nos seus. A vida não espera você crescer para te bater. E quando bate, não tem dó.

Ah, menina, solte minha mão e desapareça. Ficar ao meu lado nunca foi seguro, e caminhar junto a mim só irá te trazer problemas. O que antes eu achava bonito e correto, hoje, não passa de palavras medíocres rondando na minha cabeça e me fazendo desistir de tudo. A pessoa que sou e a que eu criei, agora estão se separando... E vejo que a da minha imaginação é muito mais interessante e melhor. Triste realidade.

Quando saímos do apartamento e entramos no táxi, foi como estar em uma máquina do tempo que me levou para o dia 06 de dezembro de 2014. Não te contei, menina, que fiz balé por um tempo?

Estávamos em época de espetáculo, muito ansiosos e treinando todos os dias para que não houvesse nenhuma falha. Figurinos pesados e coloridos, passos ágeis e sorrisos grandes.

O espetáculo seria baseado no livro “O menino do dedo verde”, a respeito de um garoto chamado Tistu, que vive na cidade de Mirapólvora e descobre possuir o dom de transformar a dor e a tragédia... Em flores. E essa história me tocou tanto que chorei nos três dias de apresentação, porque ele dizia para a mãe que sonhava com um mundo melhor. Eu tenho um pouco de Tistu dentro de mim, mesmo sendo irônico vir de minha parte esse desejo incontrolável de fazer o bem e de ser melhor. Quando anunciaram a morte do Senhor Bigodes, parecia que tinham surrado meu estômago. Ele era maluco e isso foi o suficiente para fazer torná-lo amigo de Tistu. Afinal, quem, considerado normal, poderia ser amigo de um garoto com tamanha sensibilidade?

No final do espetáculo, Tistu subiu por uma escada verde, rodeada de flores, que o levou ao céu. E os narradores, bem enfeitados e caracterizados da época, ergueram uma faixa, escrito de dourado “Tistu era um anjo.”

Queria ficar perto de pessoas com tanto amor transbordante pela arte. Artista não é quem canta, dança, escreve ou atua. E, sim, aquele que encontra doçura na mais amarga fruta. Artista não é fazer arte e sim, ser arte. E, para minha decepção, estava longe de conhecer alguém desse jeito.

– Lisa? – Karl me desprendeu de meus pensamentos e me fez olhá-lo. – Tudo bem com você?

– Não precisa se preocupar tanto comigo. – sorri, tentando confortá-lo e virei o rosto para olhar as árvores passando rapidamente pela janela, quando Karl apoiou a cabeça no meu ombro e começou a cantar.

“ Oh, baby, baby, it’s a wild world

It’s hard to get by just upon a smile

Oh, baby, baby, it’s a wild world

And I always remember you like a child, girl.”

Como não chorar depois de cantarmos essa parte, juntos? Sou como uma criança de colo que precisa, urgentemente, de cuidados e de carinho.


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Notas finais do capítulo

Adoro DEMAIS a Lisa e o Karl nesse capítulo. Sou apaixonada por eles, sério! É como se outra pessoa tivesse os feito, sabe? E vocês, o que acharam?



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