Alguém Como Você escrita por Belyhime


Capítulo 4
Capítulo IV - Lay Me Down


Notas iniciais do capítulo

Escritora: Belyhime
Beta Reader: Lalye



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Era tudo muito estranho.

Por mais que apertasse os olhos, não via algo concreto a sua frente. Era como olhar para o céu a noite e nada ver além do negro infinito. Mas diferente do universo, o lugar onde se encontrava era extremamente claro. Não existia uma cor definida; era uma intersecção das cores de um arco-íris, embora o azul, verde e amarelo, em sua opinião, acabavam por ofuscar o brilho das demais tonalidades.

Observando atentamente, era possível notar pontinhos brancos flutuando pelo local, se não possuíssem certo brilho, poderia até compará-los a flocos de neve.

Poderia ser um sonho inverso, talvez.

Olhando para o seu universo paralelo, se deu conta de que não estava sozinha. Havia alguém ao longe, mas ela não sabia quem era, a pessoa estava sentada de costas para ela.

Aproximou-se rapidamente e sorriu ao reconhecê-lo: era Syaoran.

Ela não via sua face, mas reconheceria aquelas madeixas castanhas rebeldes em qualquer lugar, situação e posição corporal.

Franziu o cenho. A túnica chinesa que o marido vestia era inteiramente negra, não havia um bordado ou brilho sequer. Não era nada espalhafatoso, na verdade era uma vestimenta tradicional bem simples e sem graça. De qualquer forma achou estranho, o rapaz não costumava se vestir daquele jeito.

Reparou que Syaoran balançava o corpo para frente e para trás de forma contínua e nervosa. Aproximou-se agora lentamente, observando os movimentos ritmados do rapaz.

Parecia até que estava ninando um bebê...

Nadeshiko.

Sentiu o ar lhe faltar por alguns segundos, levou as mãos até o peito e apertou o vestido fino que vestia. Seu coração ficou apertadinho de repente. Algo definitivamente não estava certo. Tudo estava muito estranho.

— Syaoran...

Chamou baixinho, sabendo que o marido a escutaria. Observou-o girar parte de seu corpo lentamente para ela.

Arregalou os olhos e gritou. Sentiu todas as células do seu corpo explodirem ao encarar aqueles olhos, a cor vermelha prevalecia naquelas órbitas que outrora foram ambares.

Syaoran chorava sangue.

A tonalidade âmbar por qual se apaixonou dera lugar a duas esferas negras repletas do líquido vermelho-vivo. A seiva viscosa escorria por sua face bronzeada enquanto sua boca tremulava em uma fina linha semicerrada, dando um aspecto sobre humano para o semblante que antes lhe transmitia paz.  

Sentiu o corpo inteiro tremer de forma louca. Seu coração batia descompensado, o ar por um momento lhe faltou aos pulmões. Sua mente gritava para se afastar o mais depressa possível. Mas ela não conseguia. Seu corpo estava estático, em total estado de transe. Ela estava estupidamente paralisada.

O máximo que conseguiu foi dar um passo para trás sem tirar os olhos dele, ou daquilo... aquela coisa não era normal, não podia ser normal, não era sequer humano.

O medo e o desespero tomaram conta do seu ser. Sentia a adrenalina surtir efeito em seus tecidos e sistemas. Ela tinha apenas duas opções: fugir ou lutar.

Assustou-se quando Syaoran girou o corpo por inteiro. Ela tinha que estar alerta a qualquer movimento dele, pois qualquer passo em falso poderia custar a sua vida.

Fechou os olhos tentando raciocinar. Quando os abriu, visualizou um embrulho branco bem preso nos braços daquela criatura. Sentiu o tempo parar.

Arfou, sentindo seus joelhos falharem. Nos braços daquele ser havia uma manta branca, e nesta manta sua pequena princesa estava enrolada, as lágrimas de sangue que caíam manchavam o tecido que cobria a sua filha. A cada gota derramada, o pano de tonalidade amena contrastava exorbitantemente com o sangue arterial.

Olhou aquele cenário por alguns segundos. Seu corpo estava ali, mas seus pensamentos não estavam. Então, em um lapso de lucidez encarou o rostinho de boneca da filha mais pálido que o normal. Seus pequeninos olhos estavam abertos, estáticos, olhando para os braços do nada.  

— O que... o que você fez com ela... o que...

Pronunciou em uma voz quase inaudível. Não. Aquilo não podia estar acontecendo...

— Perdão, Sakura.

Ouviu Syaoran proclamar em um sussurro. Seus olhos mostraram horror quando o marido estendeu o embrulho ensanguentado em sua direção.

Deu mais um passo para trás, não queria pegá-la, não queria confirmar o óbvio, e o óbvio era que a luz da vida já não habitava aquele pequeno ser que tanto amava. Sentiu a alma desintegrar-se em mil pedaços.

Quase que imediatamente após aquela conclusão, uma dor fina surgiu em seu peito. Ficou sem ar, sem chão, sem motivos para querer continuar. Caiu finalmente de joelhos e olhou para o chão. Logo percebeu a visão embaçar e os seus soluços ficarem cada vez mais audíveis. Sentiu que iria sufocar.

— Não! – Gritou em plenos pulmões.

 

 

Sakura acordou sobressaltada. Levou a mão até peito e apertou sua pele alva, enquanto tentava a todo custo recuperar o ar que lhe faltou nos pulmões. Passou a mão pelo rosto e o sentiu molhado devido ao suor e as lágrimas que derramou durante o sono.

Dobrou os joelhos e apoiou a cabeça entre eles, enquanto tentava normalizar sua respiração. Sentia o coração acelerado dentro do peito, mas o que mais a incomodava era a dor em suas entranhas. Sabia que aquilo se devia ao seu sonho, pois era desta forma quase todas as noites.

Abafou um soluço. Aquele pesadelo a atormentava por quase dois longos anos. Syaoran sempre chorava sangue, e a manta de Nadeshiko era sempre manchada pelo líquido arterial, os olhinhos estavam sempre estáticos e ela estava sempre morta.

Desde que saiu do seu coma, não teve um sonho bom e feliz. Não tinha paz acordada, e também não tinha paz dormindo. Agradecia aos céus pelas poucas noites que a Deusa dos Sonhos não a visitava. Havia dias em que ela se sentia tão exausta mentalmente que tomava remédios para dormir e não sonhar, mas nem sempre isso funcionava, prova disso era que naquele mesmo dia Tomoyo lhe dera relaxantes para pegar no sono, sabendo que dormir seria uma difícil tarefa ao levar em consideração o local onde se encontravam: a fazenda.

Sim... aquele fora o lugar que Sakura morou com a sua família há muitos anos.

 

Yes I do, I believe
That one day I will be, where I was
Right there, right next to you
And it's hard, the days just seem so dark
The moon, the stars, are nothing without you
Your touch, your skin, where do I begin?
No words can explain
The way I'm missing you

 

Levantou o tronco e encarou o lustre do quarto simples. Fechou os olhos e inspirou profundamente.

Sua cabeça parecia um campo minado desde que acordara no hospital. As informações lhe foram jogadas de forma tão inesperada que ainda custava acreditar que fossem verdade. Perguntava-se se aquilo não era apenas mais um de seus pesadelos. Desejava profundamente que fosse, desejava acordar, desejava ouvir os passarinhos cantar enquanto Syaoran tomava banho depois de seu treino, desejava se levantar preguiçosamente e ir até a cozinha preparar a mamadeira da filha que não demorava a despertar. Desejava que nada do que estava passando fosse verdade, desejava que tudo não passasse de um devaneio.

Sentiu os olhos marejarem, mas logo os secou com o dorso da mão. Estava novamente sonhando acordada, estava novamente alimentando esperanças que não podiam existir. Irritou-se consigo mesma por ser tão idiota. Nadeshiko estava morta, Syaoran casado e com uma nova família e ela, vinte e seis anos mais velha. Repetia isso todos os dias para si mesma.

Quando aceitaria que a sua vida mudou de uma vez por todas? Quando admitiria que nada voltaria a ser como antes? Quando entenderia que a sua família não existia e não existiria mais?

Sua mente lhe respondeu quase que imediatamente: nunca.

Nunca compreenderia o golpe que a vida lhe deu. Jamais aceitaria a morte de Nadeshiko, jamais aceitaria o motivo de seu pequeno anjo lhe ser tirado de forma tão cruel. Por mais que perguntasse aos Deuses, jamais compreenderia a finalidade da morte de sua filha. O que Nadeshiko, tão pequena e inocente, fizera para merecer um destino tão ínfimo?

Aliás, o que ela mesma fizera, para merecer tudo que lhe aconteceu? Como as coisas puderam mudar de uma hora para a outra sem mais nem menos? Perdera vinte e quatro anos de sua vida, mas em suas lembranças, tudo se passou de um dia para o outro. Dormiu com uma família linda e uma vida estável, acordou e tudo o que conhecia não existia mais. Naturalmente, sua sanidade caiu por terra, e dia após dia ela vinha tentando se reestruturar psicologicamente.

A verdade é que mesmo diante de tudo o que houve, ela não queria acreditar que tudo estava de fato perdido. Seu subconsciente teria que penar muito para aceitar que sua vida mudou. Pediu mentalmente para que os Deuses lhe dessem forças para continuar, e que lhe dessem sabedoria principalmente naquele dia, pois não seria fácil reencontrar uma das pessoas que mais amou na vida e não desmoronar diante dele, de Syaoran Lee.

 

The night, this emptiness, this hole that I'm inside
These tears, they tell their own story

 

Apertou as têmporas. Ela o encontraria em algumas horas. Depois de quase dois anos para ela, e mais de vinte para ele, finalmente conversariam. Só não sabia ao certo como seria essa conversa. Nem sequer sabia o que falar para ele, sua cabeça doía toda vez que tentava planejar um diálogo.

Oi, tudo bem? Como tem passado? Sua vida está boa sem mim? Como foram esses vinte anos? Você é feliz em seu casamento? Aliás, lembra-se da sua filha? E da vida que tínhamos juntos?  

Não, nada disso lhe parecia bom e sensato. Não fazia ideia do que dizer ou fazer quando o encarasse. Não fazia ideia nem do que sentiria quando o olhasse nos olhos. Será que seria raiva? Ressentimento? Amor? Saudade? Não sabia, pois em seu coração havia um emaranhado de sentimentos e emoções que só decifraria quando o encontrasse.

Mas uma coisa decerto ela sabia: não podia, em hipótese alguma, alimentar esperanças de tê-lo de volta, pois isso já não era possível, visto que o homem que amou a mais de vinte anos, com toda a certeza já não era o mesmo depois de tanto tempo. Nem sabia se ainda pensava nela, afinal ele seguiu em frente. E ela... bem... ela fazia parte de seu passado, não do seu presente e futuro.

Suspirou, se sentindo cansada da vida.

 

You told me not to cry when you were gone
But the feeling's overwhelming, it's much too strong
Can I lay by your side
Next to you, you
And make sure you're alright
I'll take care of you
And I don't want to be here
If I can't be with you tonight

 

Olhou para o lado, Tomoyo continuava a dormir tranquilamente em uma cama ao lado da sua. Encarou o relógio, que badalava 02h17am. Levantou os olhos e observou a parede a sua frente.  

Estava cansada de se enganar. Cansada de tentar acreditar que tudo não passava de uma mentira, de uma brincadeira de muito mal gosto dos Deuses. Estava cansada de achar que de alguma forma as coisas melhorariam para ela, estava cansada de acreditar que a sua vida voltaria a ser pelo menos um pouco como antes. Estava cansada sim, porque junto com seu otimismo vinha o balde de água fria denominado realidade.  

Sorriu melancólica, mesmo que houvesse esperanças de voltar a viver com Syaoran, nada voltaria a ser como era, pois Nadeshiko não estaria com eles. E sem ela, qualquer tentativa de ser feliz não faria sentido.

Enxugou mais uma vez o rosto e se levantou, colocou seu hobbie e caminhou até a varanda do quarto. Saiu para a noite e encarou a lua minguante no céu pouco estrelado da Ilha de Hong Kong. Adorava aquele corpo celeste, mas preferia lua nova ou a cheia. Superstições bobas.

Baixou os olhos e encarou o jardim que dava para a entrada da casa. Inclinou o corpo a fim de medir melhor a altura. Sentiu uma leve vertigem.

— Uhh... é alto.

Sua vontade era de inclinar o corpo até que não tivesse mais controle sobre ele. Ela despencaria e morreria rápido, sem muita dor. Sorriu com este pensamento, isso a libertaria de toda a angústia e confusão que sentia.

Mas ela não faria isso. Não podia morrer antes de falar com ele, não podia morrer antes de ter a certeza de os anos realmente passaram, não podia morrer antes que o último vestígio de esperança se esvaísse, não podia morrer antes de ver como o grisalho dos cabelos exaltou a beleza do seu amadurecimento, não podia morrer antes de olhá-lo uma última vez, não podia morrer antes o ouvir contar como foram os últimos vinte anos para ele, não podia morrer sem antes saber se ele era feliz com a sua atual família, não podia morrer antes de saber como os anos o tocaram e mudaram como pessoa, e não podia se dar ao luxo de morrer antes de ter a certeza que tudo estava definitivamente perdido para ela.

 

I'm reaching out to you
Can you hear my call?
This hurt that I've been through
I'm missing you
Missing you like crazy

 

Levantou os olhos com pesar e encarou a vasta fazenda a sua frente. Aquele lugar não era o mesmo do qual se lembrava, os cavalos de Syaoran já não estavam nos estábulos, as plantações que adorava já não eram cultivadas. Aquela boa terra agora estava seca, os currais limpos e sem a palha costumeira. A fazenda a qual fora tão feliz já não existia. Sentia que aquele lugar já não era o seu lugar, era apenas mais um lugar.

Tentou sorrir e não conseguiu, pois aquele local remetia a lembranças que ela tentava a todo custo esquecer.

Sakura olhava atenta para o caminho de terra que levaria para sua nova casa. As árvores farfalhavam com o vento suave. Fechou os olhos, sentindo o aroma ameno de terra e mato. Sorriu feliz, rumo a nova vida ao lado da pessoa que queria tão bem.

Ela e Syaoran se casariam em algumas semanas e seu coração se enchia de alegria ao constatar que finalmente ficaria ao lado dele, sem medos e inseguranças. Virou-se e encarou o rosto tão amado. Ele estava atento à estrada, não percebeu que ela o contemplava.

O rapaz vestia uma camisa simples e bermuda. Sorriu, pensando que gostava dele assim, aliás, preferia vê-lo assim. Desde que chegou a China, na maior parte do tempo ele se vestia formalmente. Na verdade, a família inteira se vestia formalmente mesmo em situações e ambientes que não exigiam formalidade.

Fechou o sorriso. Aquela família era muito estranha, pois a grande parte dos integrantes – e eram realmente muitos - agiam como se seguissem protocolos e regras o tempo todo. Ninguém conversava, ninguém ria, ninguém relaxava, nem mesmo Syaoran. Todos, absolutamente todos pareciam soldadinhos andando em marcha enquanto seguiam mandos e desmandos de superiores.

O Syaoran que ela conheceu na faculdade era completamente diferente do Syaoran que ela conhecera ali na China. Quando estava próximo a algum familiar seu semblante e atitudes mudavam completamente. A jovialidade e sagacidade deixavam de habitar o seu ser. Parecia tão velho e entediado quanto os anciões.

Desde que o encontrou na biblioteca da faculdade nunca o viu tão sério, nunca viu seus olhos transmitirem demasiada frieza e indiferença por tanto tempo como vira durante sua estadia na China. Tudo bem que o rapaz nunca foi muito social, mas não era normal ser tão antissocial com a própria família. O assunto que ele tinha com os primos e tios eram basicamente investimentos, bolsa de valores, variâncias do dólar, dívidas, riscos e negócios em geral. Parecia que vivia sob tensão e estresse em tempo integral, isso preocupava a jovem japonesa. Até Touya tentou lhe convencer a alguns dias atrás que era roubada se meter com Syaoran e aquela família de loucos. Mas ela não deu ouvidos, mesmo sabendo que não era bem-vinda àquela família. Ingênua? Talvez. Assumiria o risco...

Syaoran estava a maior parte do tempo fora da mansão, segundo ele, estava preparando a sua “posse“ como líder do Clã. Só não entendia o por que dele precisar ficar tanto tempo fora, afinal uma simples posse da presidência de uma rede de corporações estava longe de ser uma cerimônia de um imperador chinês, ou a coroação de um rei ocidental, não é?

O fato é que não tinha muito com quem conversar, a maior parte dos integrantes do Clã a olhava de forma estranha, como se tivessem aversão a ela. Tirando Touya, a única pessoa com a qual conversava por um longo período de tempo e de forma descontraída era com Meiling Lee, prima de Syaoran.

Sakura percebeu que a moça de olhos rubis era a única que realmente se empenhava em agradá-la e mantê-la confortável em um ambiente tão hostil. Até mesmo com a mãe de Syaoran ela tivera poucas oportunidades para se aproximar e, quando as teve, precisou pisar em ovos ao trocar palavras.

Meiling lhe explicou que quando ela e Syaoran se casassem, ele assumiria totalmente os negócios da família e se tornaria o Líder interino do Clã Lee, e com este título as responsabilidades lhe chamariam e provavelmente ela ficaria menos tempo com ele do que gostaria. Meiling também lhe disse que por ser uma estrangeira, a família não a enxergava com bons olhos. Contou-lhe também que Syaoran precisou mover mundos e fundos para que os anciões aceitassem sua união com uma japonesa. Não sabia qual acordo fora feito entre o primo e os tios, mas lhe confidenciou que ela teria que os conquistar aos poucos, teria que mostrar que era digna de ser uma Lee, teria que mudar vários hábitos, aprender mandarim e se comportar como uma “mulher Lee”, abrindo mão inclusive de trabalhar.  

Ao escutar tais absurdos Sakura replicou dizendo não seria submissa as vontades da família, disse também que não se importava com o que achassem dela, pois por ela não ser bem-vinda, seu suposto esforço não adiantaria em nada, tradições e pré-conceitos eram fatores que estavam impregnados em qualquer grande clã chinês. Ela era o que era, e ponto final.

Entendia que a família Lee tinha várias tradições e algumas delas estavam sendo quebradas, mas não podia deixar de ser quem era para agradar pessoas que já tinham seus princípios e valores bem construídos e estruturados. E além disso, se Syaoran lutou para que a aceitassem, era porque a conheceu e amava daquele jeito.

Aprenderia sim o mandarim, poderia até mesmo manter as aparências e tentar se ajustar em festas e mídias sociais, mas não aceitaria que sua vida fosse controlada por ninguém senão ela mesma. Assim que ela se estabelecesse bem na China, abriria sua clínica de Fisioterapia Desportiva e ai de quem a proibisse.

Meiling apenas sorriu e não insistiu mais naquela conversa sem pé nem cabeça. Mas lhe perguntou se estava realmente preparada para ser a esposa de um dos homens mais importantes economicamente da China. Sakura não era burra, sabia que Syaoran trabalharia muito e faria várias viagens para o exterior, sabia que ele seria extremamente requisitado e que não teria todo o tempo do mundo para ela, sabia que ele ficaria ausente em vários momentos de sua trajetória.

Mas ela não conseguia e não queria imaginar a sua vida sem ele, então respondeu a Meiling que sua única preocupação era se Syaoran aguentaria toda a pressão e todas as responsabilidades como líder, pois ele parecia cada vez mais infeliz com o rumo que a sua vida estava tomando. Meiling lhe disse que se ela o apoiasse e se mantivesse ao seu lado, ele com certeza daria conta do recado. E era exatamente isso que ela faria, apoiaria Syaoran no que precisasse.

— Tudo bem?

Ouviu-o chamar e riu sem graça, ao ver que despertou a atenção do rapaz. Ela afirmou positivamente com a cabeça e sorriu para ele, que retribuiu e voltou à atenção para a estrada.

— Sabe Sakura... eu nem acredito que isso está acontecendo, nós aqui...

Sakura riu.

— Nem eu. Desde que começamos a namorar eu tentava me convencer de que assim que nos formássemos, você voltaria para a China e eu nunca mais te veria.

Sakura observou o sorriso de Syaoran diminuir, entendeu que mexer naquele assunto incomodou namorado. Sabia que na verdade, as coisas deveriam ter sido assim, pois sempre teve consciência das regras rigorosas do Clã Lee. Syaoran era o filho homem do ramo principal, e como a própria Meiling lhe contou, um Lee casar com uma estrangeira era uma grande quebra nas tradições e afronta para com os familiares. Ela não soube como ele conseguiu convencer o Clã, mas sabia que provavelmente não fora fácil, e que se todos a olhavam com certo ódio, se devia ao fato dela ser uma estrangeira, como Meiling também confirmou.

— Por que nós não moramos na mansão? A família inteira está lá.

— Prefiro me manter longe de todos.

— Mas por que, Syaoran? Não é a tradição?

Silêncio.

— Syaoran?

Escutou o namorado falar impaciente.

— Eu já quebrei a tradição em vários aspectos Sakura. Isso não fará diferença.

Sakura abaixou a cabeça e apertou as mãos. Sabia que ele se referia ao casamento deles. Voltou a encarar a estrada em silêncio. Não sabia ao certo a dimensão de tudo aquilo, mas não queria ter causado qualquer problema para ele.

Não demorou e sentiu as mãos do namorado apertarem as suas, desviou os olhos das árvores e encarou os mares ambares.

— Isso não importa, certo? Você está aqui, nós estamos aqui – A moça observou os olhos caramelizados que tanto amava suavizarem – Juntos.  

Sakura sorriu em o ouvir frisar a última palavra. Juntos, eles estavam juntos…  

— Eu adoro o seu sorriso, sabia disso?

Sakura alargou ainda mais o sorriso ao ouvir as palavras sendo ditas com tanto carinho.

Syaoran abriu a porta do carro para a moça, que não demorou a sair. Olhava boquiaberta para a grande propriedade a sua frente, tudo era tão enorme, tão verde, tão lindo. Nunca em sua vida viu uma fazenda mais bonita.

Girou o corpo em trezentos e oitenta graus. Parou e apertou os olhos tentando enxergar até onde as plantações iam, mas não conseguiu, pois tinham quilômetros de cultivo.

Sentiu Syaoran enlaçar a sua mão. Virou-se para trás e olhou para ele.

— Isso tem fim?

Perguntou, apontando para os cultivos. Ouviu a risada gostosa de Syaoran invadir seus ouvidos.

— Tem, mas precisamos seguir a cavalo. Já montou, minha flor?

— Hmm, eu não sei... na casa do meu avô tinha cavalos, mas eu não me lembro se já montei.

— Tudo bem, eu te ensino.

Sorriu e logo sentiu a mão de Syaoran enlaçar a sua. Foram em direção a uma grande casa. Ficou vislumbrada ao encarar a construção, pois a arquitetura majestosa lembrava muito aquelas casas antigas dos seus livros de história.

— É linda...

— Vamos entrar?

Concordou e seguiu para o hall de entrada.

Cada detalhe de dentro daquela casa a deixou com o queixo no chão. Era tudo muito requintado, os cômodos e os móveis de mogno faziam jus ao lado externo da casa, pois tinham um designer digno da morada de um imperador. Conheceu todo o andar de baixo e o lugar que mais lhe agradou foi a sala de visitas, pois era um ambiente amplo e arejado, e muitos dos quadros e artefatos presentes naquele local contrastavam com a construção antiga. Sentia como se estivesse dentro de um daqueles filmes de época.  

Syaoran lhe contou que aquele pedaço de terra pertencia ao Clã há mais de dois mil anos, que fora o lar de vários imperadores e líderes saídos dos Lee. Também recebera reis ocidentais e importantes figuras governamentais de vários lugares do mundo. Mas que hoje, devido a globalização e modernização do país, aquele local já não era prático para o clã.

Subiram para o andar de cima e Syaoran lhe mostrou o quarto principal, o quarto que seria deles. Sakura sorriu, observando cada detalhe daquele lugar. Seus olhos pararam na cama, seria ali que se uniria com a pessoa que amava pelo resto de sua vida, seria ali que conceberia seus filhos, seria ali que ela e Syaoran se tornariam um por várias e várias vezes.

Sentiu os braços do namorado enlaçar sua cintura e encostar o corpo quente no seu. Fechou os olhos ao sentir a respiração suave de Syaoran em seu pescoço.

— Tudo isso é seu, Sakura – Sorriu ao ouvir a voz doce do namorado enquanto aspereza da barba por fazer se arrastava em um caminho de beijos até o seu ombro direito – Quero que saiba que se algo não estiver do seu agrado, pode mudar como e quando quiser, está bem?

Sakura fechou os olhos e abriu um sorriso tímido. Syaoran era tão amoroso, tão carinhoso e tão cuidadoso que as vezes se perguntava se tudo aquilo não passava de um sonho bom.

— Esse será o nosso lugar, o nosso santuário minha flor  – Sentiu Syaoran apertar levemente seus ombros. Sentiu os pelos eriçaram ao ouvir a respiração baixa e ritmada do rapaz, mas o que fez suas pernas realmente amolecerem foi o ouvir em uma voz rouca bem próxima ao seu ouvido - Será aqui que eu entregarei a minha vida a você.

Sakura virou-se e encarou as esferas ambares, encostou seu nariz no de Syaoran e segurou seu rosto contra o dela. Se pudesse paralisaria o tempo apenas para fitar aquelas fortalezas caramelizadas para sempre.

— Eu te amo.  

Antes de receber qualquer resposta, puxou-o pela nuca e o beijou de forma profunda. Sentiu o mel daqueles lábios invadir a sua boca e sentidos. Queria mais, e queria mais agora. Não era atoa que estava morrendo de saudades de senti-lo na ponta dos dedos, pois desde que desembarcou na China Touya não largou do seu pé, e as poucas oportunidades que tivera sozinha com Syaoran, sempre acontecia algo para atrapalhá-los.

Empurrou o corpo adorado em direção a cama e logo sentou em suas coxas, mobilizando o rapaz. Voltou a beijá-lo com sagacidade. Não demorou para sentir a virilidade de Syaoran pulsar em sua feminilidade. Levantou-se brevemente e encarou-o nos olhos.

— A nossa vida juntos só está começando.

Sem mais delongas, inclinou o corpo e beijou o nódulo de sua orelha enquanto dedilhava o tórax de Syaoran por debaixo da roupa, sentindo a textura dos músculos torneados. Arrancou-lhe a camisa depressa e desceu os lábios em um caminho de beijos até os quadradinhos bem definidos de seu abdome. Estava prestes a desabotoar a calça, mas ouviu-o proclamar em uma voz falhada.

— Sério? Quer estrear a cama agora? Sabe como são as tradições: só depois do casamento.

Sakura teve vontade de socar a cara daquele chinês impertinente. Onde já se viu atrapalhá-la quando estava inflamada de desejo? Por fim, jogou a cabeça para trás e riu do trocadilho.

Syaoran girou o corpo ficando por cima dela. Ajeitou-se entre suas pernas beijando-lhe os os cabelos, os olhos, a bochecha e finalmente a boca.

Sakura fechou novamente os olhos e sentiu o namorado tirar com facilidade a roupa que ela vestia. Sorriu por puro prazer ao sentir os lábios de mel trilhar lentamente o caminho do pescoço até o colo e seios.

Logo os corpos estavam rolando na cama, com o entardecer os assistindo na linha do horizonte.

Sorriu fracamente com aquela lembrança. Foi a primeira vez que se amaram naquele quarto. E ela acertara em tudo, menos em achar que a vida deles juntos só estaria começando, pois analisando agora depois de todas as controvérsias do destino, pôde concluir que na verdade estava terminando.

Sorriu melancólica, sua relação com Syaoran tivera começo, meio e fim.

Voltou-se para trás, encarando o quarto que ela e sua prima dividiam. Não era o mesmo que dividiu com Syaoran, pediu ao rapazinho que dizia ser neto de Wei – E que os Deuses o tenham -  para ficar em um dos quartos de hóspedes, pois já seria difícil o suficiente dormir naquele lugar e se ficasse em seu antigo quarto é que não conseguiria mesmo.

Desde que chegou a algumas horas atrás, não quis andar pela casa, se enfurnou no quarto que foi arranjado para elas e não saiu mais. Na verdade, não queria ficar ali naquela noite, não queria ser obrigada a lembrar de tantas coisas que doíam em seu ser. Mas não fazia sentido conversar com Syaoran em um restaurante ou em uma praça, precisavam de privacidade para se sentirem o mais confortável possível, achou que a fazenda seria um bom lugar e pediu para Tomoyo marcar ali com o marido – sim, ele ainda era o seu marido, ela ainda carregava o sobrenome Lee, e este seria mais um ponto a discutir na conversa que teriam, já que ser bígamo era ilegal -, mas agora se arrependia amargamente de sua decisão, pois não poderia haver lugar pior que aquele no qual viveu tão plenamente em um passado tão distante.

 

Can I lay by your side
Next to you, you
And make sure you're alright
I'll take care of you
And I don't want to be here
If I can't be with you tonight

 

Caminhou até a porta, não conseguiria dormir mais mesmo. Ficaria na sala, observando a lareira. Recolheu um dos cobertores de sua cama e girou a maçaneta.

Tentou andar em linha reta até o andar de baixo, mas não conseguiu. Parou e girou os calcanhares, encarou o corredor escuro a sua frente, apertou os olhos e pôde ver o contorno de uma certa porta. A porta do quarto de Nadeshiko.

Sentiu os olhos arderem ao encarar aquela madeira lilás com flores estampadas manualmente. Lá havia uma peça de plástico pendurada com uma boneca de pano acoplada com os dizeres “Aqui Dorme uma Princesa”.

Levou as mãos até a boca, evitando fazer barulho com o choro entalado em sua garganta.

— Sakura! Olhe o que Eriol enviou da Inglaterra.

Ouviu a voz estridente de Tomoyo invadir o quarto, sorriu para a prima tomando cuidado para não incomodar seu anjo que mamava tranquilamente em seu colo.

Tomoyo ajudou-a a abrir o embrulho, tirou a peça de plástico de dentro do saquinho de presente. Era uma bonequinha de pano acoplada a uma estrutura de plástico com a frase “Aqui Dorme uma Princesa” em uma letra colorida.

— Podemos colocar na porta do quarto dela, ficaria tão lindo.

Sakura teve a impressão de que havia estrelinhas nos olhos da prima, tamanho era a sua empolgação. Não podia discordar dela, realmente ficaria bonito.

— É mesmo, ficaria lindo.

Pegou a bonequinha e mostrou para a filha em seu colo, sabia que era muito pequena para compreender, mas manter diálogos com bebês os ajudavam no desenvolvimento da comunicação, além de aumentar a proximidade de mãe e filha.

— Olha meu amor, olha o que o tio Eriol mandou para você. Não é linda? Eu e a madrinha vamos colocar na sua portinha, gosta da ideia?

Chacoalhou a peça a frente da criança, mas logo encarou a prima e sorriu para ela.

— Agradeça a ele por mim.

Disse por fim, rindo da empolgação de Tomoyo.

 

Encostou-se na parede e olhou para o chão, sentindo-se fraca. Tentou inspirar todo oxigênio do mundo para controlar sua respiração. Seu coração doía incessantemente ao se deparar pela milésima vez com a verdade jogada em sua cara: sua pequena princesa jamais retornaria. Ela nunca mais a seguraria entre os braços, nunca mais cantaria para ela dormir, nunca mais a ouviria balbuciar sons incompreensíveis, nunca mais correria pela casa evitando que ela se machucasse enquanto engatinhava ou que engolisse objetos estranhos, nunca mais veria aqueles pequenos olhos âmbares novamente. Nadeshiko jamais retornaria para ela.

Desviou os olhos do chão e encarou o teto, enquanto normalizava sua respiração aos poucos. Girou novamente os calcanhares, evitando olhar para a porta do quarto de sua filha.

Andou em linha reta, sentindo uma angústia tão grande que achou que sufocaria, como no dia em que tudo deixou de haver sentido para ela.

Lay me down tonight
Lay me by your side
Lay me down tonight
Lay me by your side
Can I lay by your side?
Next to you, you

 

Abriu os olhos.

A luz forte machucou suas retinas, de modo que apertasse as pálpebras tentando se acostumar com a claridade repentina.

Agora, abriu lentamente os olhos.

Sua visão estava turva. Demorou um bom tempo para que pudesse definir melhor cores e formas.

O teto era branco, e ela o fitou por vários minutos. Virou lentamente os olhos, a claridade vinha de uma grande janela do que parecia ser um quarto. Ouvia um barulho contínuo e irritante, então olhou para cima e observou diversas luzes em vários aparelhos e telas.

Não conseguia identificar onde estava, sentia-se desnorteada demais para raciocinar.

Tentou se movimentar, mas por algum motivo seu corpo não obedecia aos estímulos do seu sistema nervoso. Estava paralisada. Fechou novamente os olhos, tentando pensar em algo.

Ouvia alguns barulhos, barulhos de passos ao longe, e parecia ser de muitas pessoas ao mesmo tempo. Virou os olhos para o lado direito e pôde ver uma porta de madeira branca. Ela estava sozinha, em um lugar desconhecido.

Depois de um longo período de tempo, várias tentativas e muita dificuldade, sentou-se na cama de forma desajeitada. Seu corpo parecia adormecido. Olhou para os lados, ainda confusa com o que se passava.  Ao seu redor havia aparelhos de UTI, e em seus braços haviam diversas agulhas fixadas com esparadrapos. Definitivamente, aquele não era o seu quarto e sim um ambiente hospitalar.

Olhou para o seu corpo, reparou que estava vestida com um tecido leve, típico de pacientes pré ou pós-operatório. Olhou para as mãos e viu que seus braços estavam mais magros do que o considerado normal, e pelos contornos do lençol suas pernas também estavam mais finas. Concluiu que já deveria estar a um bom tempo sem se mover. Suas aulas no curso de Fisioterapia serviram para algo, no fim das contas. Só restava saber se todo o seu sistema nervoso periférico estaria intacto, então levou os dedos até a coxa e massageou. Demorou alguns segundos, mas logo suas terminações nervosas responderam ao seu estímulo e o tão desejado sentido do tato fora ativado. Ufa!

Suspirou e com certa dificuldade e levou os dedos ao seu rosto, dando-se conta de que estava entubada, então de forma lenta retirou a peça de acrílico. Fizera estágio em UTI por três meses, alguma prática havia adquirido com os pacientes de estado grave.

Apertou as têmporas de forma demorada, em busca de um vestígio de lembrança. Nada. Era tudo muito confuso.

Olhou para os lados. Estava sozinha em um quarto de hospital e não sabia o porque. Uma angústia louca tomou conta de si.

Olhou novamente para os seus braços, e de forma descoordenada arrancou as agulhas e sensores do seu corpo. O som do marca passo ficou ainda mais estridente, e a mulher apenas abraçou os próprios cotovelos, tentando entender o que se passava com ela.

Fechou os olhos.

Então, o barulho da porta abrindo a surpreendeu. Olhou para o lado e observou algumas pessoas estáticas encarando-a com espanto. Todos vestiam branco, eram profissionais da área da saúde e com eles havia um carrinho de parada cardiorrespiratória. Conforme os segundos passavam ela se sentia ainda mais confusa e desnorteada. O olhar que tinham sobre ela a incomodava muito. Era como se vissem um monstro com uma doença contagiosa ou algo assim. Desviou o olhar novamente para algum ponto inespecífico do quarto. O que diabos aconteceu para estar em um hospital? Aparentemente não tinha ferimento algum, não tinha porque estar lá.

Encarou novamente as pessoas, e então disse em uma voz rouca, quase falha.

— Eu... acho que... aconteceu alguma coisa...

Pela janela Sakura observava o entardecer de Londres sentada em seu leito do grande quarto. Ao longe via faróis de carros e pessoas caminhando apressadas para suas casas, aquele lugar lembrava um pouco a Ilha de Hong Kong, pois o vai e vem de pessoas e carros era constante.

Pensando bem, imaginou que quase todos os lugares do mundo deviam ser daquela forma, as pessoas  sempre estão com pressa, indo e vindo de algum lugar, seja de casa para o trabalho ou do trabalho para casa, como fantoches daquele mundo capitalista e superficial.

Suspirou e olhou para o céu, a lua começava a ficar visível no crepúsculo ocidental.

Passou por uma bateria de exames durante o dia inteiro. As enfermeiras e os médicos ainda a olhavam com certo espanto, ouviu burburinhos sobre ela em todos os lugares que passou. Alguns funcionários até vieram ao seu quarto para saber se era “verdade”. Só não sabia qual verdade se referiam. Ninguém lhe falou muita coisa, ninguém respondeu as suas perguntas. Apenas a informaram que ela estava na Inglaterra e que em breve sua família estaria ali.

Sua família... Sim, se lembrou de algumas coisas.

Seus pais morreram em uma escavação arqueológica quando tinha apenas dezessete anos, viveu com seu irmão Touya até conseguir uma bolsa na Universidade Tomoeda-Tóquio onde cursou Fisioterapia por cinco anos. Foi nesta mesma faculdade que conhecera Syaoran Lee, seu marido e pai de sua filha, Nadeshiko Lee.

Por mais que não estivesse tão desnorteada quanto antes, ainda não se lembrava de nada muito específico. Por mais que tentasse, o que quer que tenha acontecido para estar ali ainda era um grande borrão em sua memória.

Sabia que algo havia acontecido a ela, e que havia sido grave ao levar em conta a reação dos funcionários do hospital. Constatou que devia ter passado um bom tempo dormindo e se recuperando do que aconteceu. Na verdade, com certeza passou tempo demais desacordada, pois ainda tinha muita dificuldade em se movimentar, e levando em conta as aulas de anatomia que tivera, seu tônus estava extremamente diminuído, contraído e inflexível, resultado do desuso. Provavelmente teria que passar por várias sessões de reabilitação para voltar a executar movimentos rotineiros, como a marcha.

Suspirou impaciente, suas ideias fervilhavam, as suposições não paravam de pipocar em sua cabeça. Sentia-se confusa, insegura e com medo, e por mais que tentasse se lembrar do que aconteceu, nada lhe vinha a memória. Isto definitivamente a estava preocupando. Era tudo um grande mistério.

Olhou para algum ponto fixo no quarto ao pensar em Syaoran com certo ressentimento. Onde ele estaria? Por que não estava ali quando ela acordou? Independente do que acontecera, ele deveria estar lá para apoiá-la e acalmá-la, não deveria?

Será que... não! Syaoran estava bem, ele tinha que estar bem...

Sacudiu a cabeça, tentando inutilmente dissipar os pensamentos ruins. Precisava acreditar que Syaoran estava intacto, físico e psicologicamente.  

Assustou-se ao ver e ouvir a porta de seu quarto ser escancarada, então a figura de uma bela mulher apareceu a sua frente.

Ela não lhe parecia estranha.

— To...Tomoyo?

Sim, era Tomoyo, sua prima. Ela estava estática na porta, apenas a encarando com os olhos arregalados. Observou a prima levar as mãos até o rosto, tentando inutilmente conter o choro. Franziu o cenho. Tomoyo estava muito diferente, seus cabelos antes longos e escuros agora estavam pouco abaixo dos ombros e já apresentavam alguns fios claros. O semblante da prima também mudara, não era mais a Tomoyo jovial da qual se lembrava.

Seus pensamentos foram interrompidos ao ver uma segunda pessoa parar perto da porta. Era um homem. Algo nele também lhe era familiar, mas não teve tempo para pensar, logo um furacão chamado Tomoyo cortou a distância entre a porta e a maca e a envolveu em um forte abraço, enquanto chorava descontroladamente contra os cabelos da ruiva.

— Sakura... snif...eu... nem acredito... snif...  Você acordou ... snif... Eu rezei tanto... tanto.... Os Deuses finalmente me atenderam...

Sakura retribuía o abraço da prima da forma que podia, mas a mulher de olhos violetas a abraçava tão fortemente que sentiu o ar lhe faltar nos pulmões.

— Não consigo respirar...

Sentiu a morena lhe soltar de imediato. Observou as duas violetas repletas de lágrimas ao fitá-la com um misto de surpresa, ansiedade, emoção, carinho e saudade.

— Eu nem acredito – Sentiu as mãos de Tomoyo envolver sua face, a morena beijou levemente a bochecha de Sakura e sorriu – Você está aqui... comigo... Ai Sakura!

Novamente Sakura sentiu os braços de Tomoyo em torno dela, agora de forma mais contida. Não entendeu bem o porquê de tudo aquilo, então olhou para a porta onde o homem de sorriso enigmático ajeitava os óculos. Reconheceu-o, era Eriol, o amigo de Syaoran. Ele também estava muito diferente. Apesar de algumas suspeitas do que aconteceu e por quanto tempo aconteceu já surgirem em sua mente, resolveu que pensaria nisto tudo mais tarde. Queria apenas abraçar Tomoyo e se sentir segura por ter alguém querido com ela. Por fim, sorriu para Eriol, enquanto afagava os cabelos da prima, tentando acalmá-la com seus carinhos.

Sakura terminava de comer a refeição que trouxeram para ela. Não estava com fome, a preocupação e ansiedade que sentia era tanta que se esquecera das necessidades básicas da vida, mas Tomoyo fez questão de que ela comesse absolutamente tudo, para ficar “forte e totalmente recuperada”.

Encarou a prima que a observava sentada ao seu lado, e logo após encarou Eriol que estava sentado em uma das poltronas do quarto. Ambos a olhavam com admiração. Já estava cansada de ser olhada de forma estranha, queria logo saber o que estava acontecendo, mas Tomoyo estava em um estado de graça tão grande que temia que o tipo de conversa que estava por vir entristecesse e chateasse a prima.

Terminou de comer e entregou a bandeja para Tomoyo, que colocou em cima de um criado mudo. Observou a prima se voltar para ela e apertar suas mãos de forma calorosa. Tomoyo tagarelava sobre coisas banais animadamente, e toda vez que ela tentava extrair alguma informação da morena, a mesma cortava e mudava de assunto. Aquilo já estava irritando-a, ela tinha o direito de saber o que tinha acontecido, tinha o direito de saber o porquê da sua família não estar ali. Aquela enrolação toda a estava deixando por deveras intrigada. Arregalou os olhos ao ouvir a prima deixar escapar sobre seu casamento com Eriol.

— Então... vocês estão casados agora...

Aquilo não foi uma pergunta, e Tomoyo entendeu isso. Percebeu que sem querer dera com a língua nos dentes. Sakura não era burra, agora teria de responder as perguntas que procurou evitar as respostas durante todo o tempo que esteve com a ela. Sabia que a prima recém acordada estava achando tudo muito estranho, provavelmente devia ter vários questionamentos para ela. Mas não queria ter que responder nada naquele dia, pois sabia que assim que a amiga soubesse de tudo que aconteceu, tudo que conhecia e sentia iria por água a baixo, e seus dias se tornariam escuros.

— Estamos, Sakura.

Franziu o cenho, lembrando-se de que Eriol era casado com uma professora Universidade Tomoeda-Tóquio. Será que eles haviam se divorciado? Tudo bem que sempre achou que Eriol e Tomoyo formavam um casal lindo, mas depois que soube do amor do rapaz pela professora de ciências exatas, deixou de pensar em um possível romance entre os dois amigos. Isso tudo a fazia refletir por quanto tempo esteve desacordada. Em quantas coisas perdeu neste período.

A ruiva intercalou o olhar entre Eriol e Tomoyo. Manteve-se em silêncio, apenas reparando nos detalhes dos rostos de ambos. Eriol em nada lembrava o rapaz sagaz que conheceu na faculdade. Aquele a sua frente era um homem maduro, assim como Tomoyo também era. Focalizou na prima, que tinha o olhar apreensivo. Disse em uma voz firme.

— O que aconteceu, Tomoyo?

A mulher de olhos esmeraldinos percebeu que tanto Eriol como Tomoyo ficaram tensos com a sua pergunta. Tomoyo baixou os olhos, enquanto Eriol arrumava o óculos em seu nariz. Eles estavam indiscutivelmente nervosos.

Não era burra, sabia que algo grande aconteceu com ela, a melhor das hipóteses é que ela ficou em coma por um longo período de tempo, a julgar pelas mudanças físicas de Tomoyo e Eriol. Restava apenas saber quanto tempo se passou e o motivo.

Pensando nessa possibilidade eminente, talvez fosse por isso que Syaoran não estava ao seu lado...

Balançou levemente a cabeça e encarou Tomoyo. Suspirou ao ver que a prima estava evitando tocar naquele assunto, sabia que estava tentando protegê-la, mas não podia continuar com aquele joguinho, precisava saber o que afinal aconteceu com a sua vida.

— Eu vou facilitar para vocês: sei que aconteceu algo grave comigo, percebi que se passou algum tempo, a julgar pela aparência de vocês. Não conseguirão adiar essa conversa por muito tempo, é melhor que a tenhamos aqui, com todos os amparos médicos que eu possa vir a precisar – Observou a prima arregalar os olhos com a possibilidade de perdê-la novamente. Não queria assustar Tomoyo, mas não via outra alternativa senão esta.

Sakura reparou que lágrimas se formaram nos olhos da prima. Ouviu a voz serena e apaziguadora de Eriol proclamar para ela.

— Talvez esse não seja o melhor momento, Sakura. Você ainda está se recuperando. Vamos esperar Touya chegar.

— Me recuperando do quê, Eriol? O que aconteceu comigo? E cadê o Syaoran? Eu não quero saber do Touya! Eu quero o meu marido e a minha filha! Eu sei que ambiente hospitalar não é o melhor para crianças, entendo que Nadeshiko não possa estar aqui. Mas e o Syaoran? Disseram-me que a minha família estaria aqui, e ela não está.

Explodiu. Sabia que não devia ter sido ríspida, sabia que eles só queriam ajudar, mas aquele jogo de fala-ou-não-fala a irritava profundamente. Eles não tinham o direito de esconder o que aconteceu com ela.

Respirou fundo e apertou as mãos de Tomoyo, obrigando a morena a encará-la. Então disse em um tom doce.

— Eu estou bem, fiz uma bateria de exames, não terei uma parada cardíaca ou algo do tipo. Por favor, me contem o que aconteceu.

Sakura observou Tomoyo arfar e abaixar o rosto.

Tomoyo por sua vez não queria contar para Sakura tudo que aconteceu, não naquele momento. Por mais que ela dissesse que estava bem e que nada aconteceria, duvidava disso, pois as notícias certamente a deixariam abalada. Temia pela vida de Sakura, o abalo emocional podia afetar a saúde dela. Esperou por tantos anos o momento que ela retornaria que contar o que aconteceu fazia com que a morena tivesse medo do que estava por vir. Mas Sakura estava certa, não tinha como adiar aquela conversa por muito tempo.

Suspirou, lembrando-se da conversa que tivera com Syaoran no dia em que ele as procurou na fazenda e lhe pediu satisfações, era sempre ela que tinha que ter conversas complicadas com quem amava. Olhou para o relógio, queria esperar Touya chegar à Inglaterra para contar sobre a morte de Nadehiko junto com ele, mas teria que se contentar em ter apenas Eriol em sua companhia. Por fim, encarou os olhos verdes que a tanto não contemplava, tentando encontrar as palavras certas para lhe contar a sucessão de fatos que poderiam custar sua sanidade.

— Quanto tempo faz, Tomoyo?

Sakura observou Tomoyo abrir e fechar a boca umas quatro ou cinco vezes. Entendeu que a prima não estava em condições de lhe dizer nada, então desviou os olhos para Eriol, pedindo silenciosamente que ele a respondesse. Antes de falar algo, Eriol novamente ajeitou o óculos.

— Vinte e quatro anos, Sakura.

Sentiu o tempo parar.

Olhou para os seus joelhos, alheia aos chamados de Tomoyo. Vinte e quatro anos...

Imaginou que havia se passado algum tempo, mas vinte e quatro anos? Não... Era muito tempo! Não podia ser verdade.

— Não pode... Vinte e quatro anos é muito...

Sentiu as lágrimas virem aos olhos. Sentiu a cabeça latejar com o que lhe foi jogado na cara. Deuses! Vinte e quatro anos é muito tempo... Ela perdeu mais de vinte anos de sua vida...  

— Isso... isso...

Não conseguiu continuar. As palavras ficaram presas na garganta. Sentiu a primeira lágrima rolar em sua face ao imaginar tudo o que ela não viveu, todas as oportunidades que ela não pôde aproveitar, a jovialidade que perdera, a vida que lhe foi arrancada e negada pelos Deuses... por... sabia-se lá o que... nem ela sabia mais...

Pegou as mãos de Tomoyo e apertou. Olhou-a suplicante.

— Isso é verdade, Tomoyo?

Silêncio.

Sakura arfou, sentindo o ar lhe faltar nos pulmões. Era verdade. Era tudo verdade. Desejou do fundo do coração que eles estivessem brincando com ela, mas logo sua mente gritou alertando que Tomoyo e Eriol não brincariam com um assunto tão sério como aquele. Eles não brincariam com a sua vida. Não era como se ela fosse descobrir que na verdade estava participando de um tipo de pegadinha idiota. A levar em consideração a aparência deles, era completamente possível e óbvio que vinte e quatro anos se passou.

— Eu sinto muito, Sakura. Você sofreu um acidente de carro, ficou em coma por vinte e quatro anos e...

— Pare.

Sakura gritou, fechando os olhos e envolvendo as orelhas com as palmas de suas mãos, enquanto balançava o corpo para frente e para trás. Sentia uma dor insuportável nas entranhas, sentia vontade de gritar e de chorar. Vinte e quatro anos era tempo demais.

Já não controlava as lágrimas.

Então, deu-se conta de algo e finalmente encarou Tomoyo.

— Nadeshiko...

Sua voz saiu quase inaudível. O horror tomou conta de seus olhos ao constatar que perdera vinte e quatro anos da vida de sua filha. Com quantos anos ela estaria agora? Com quantos anos ela aprendeu a andar? Com quantos anos ela aprendeu a formar frases? Com quantos anos ela comeu sem precisar de ajuda? Será que Syaoran segurou a sua mão no primeiro dia de aula? Será que Syaoran a ajudou com os problemas de matemática? Será que sua menina era tão boa em educação física como ela foi? Será que tivera dificuldade para decifrar os heredogramas de genética no colegial? Syaoran nunca foi bom em ciências da natureza, antes do nascimento da filha haviam combinado que ele a ajudaria em ciências exatas, e ela em ciências humanas e biológicas. E falando em pré-adolescência e adolescência, será que Syaoran a ajudou com seus conflitos internos? Será que ele conversou com ela sobre namoradinhos? Prevenção? Que faculdade ela fizera? Será que ela já havia formado uma família? Será que ela já era avó?

E Syaoran... Deuses! Perdera vinte e quatro anos dos planos que tinham feito. Como ele estaria? Por que ele não a manteve na China? Lá havia bons hospitais com bons profissionais. Será que ele a enviou para o ocidente por ela ser um peso? Será que ele a esquecera? Será que estava casado? Com outros filhos? Como Nadeshiko reagiu com uma nova mãe? Será que... será que Nadeshiko sabia que ELA era a sua mãe?

Eram tantas dúvidas que surgiam que sentiu como se sua cabeça fosse explodir. Pegou os braços de Tomoyo e apertou.

— Cadê a minha filha? Ela já está bem grande, não é? E o Syaoran?  

Sentiu Tomoyo grunhir com a pressão que fazia em seus braços. Mas não soltou. Ela precisava responder todas as suas perguntas ou enlouqueceria.

— Ela não resistiu...

Sakura soltou Tomoyo sentindo seus próprios músculos fraquejarem. Nadeshiko, sua querida Nadeshiko não resistiu. Não resistiu a quê? Tudo era tão surreal para ela que sentia vontade de socar a cara de Tomoyo por ser tão inespecífica. Ela precisa ouvir com todas as palavras o que diabos aconteceu.

— Co-como assim? – Sentiu que o coração sairia pela boca, temendo a resposta que estava prestes a receber.

— Ela estava no carro junto com você e... bem... não resistiu ao acidente.

Ao acidente... aquela frase se repetia em looping em sua mente. Nadeshiko não resistiu ao acidente, isso significava que...

— Não, não, não...

Sentiu o sangue escorrer do seu corpo. Não, não podia ser. Fechou os olhos com força, envolvendo o rosto com as mãos e finalmente deixando as lágrimas rolarem livremente. Aquilo não podia estar acontecendo, nada daquilo podia estar acontecendo. Era contra a ordem natural do mundo. Pediu aos Deuses para pararem de sacaneá-la, o que ela tinha feito para merecer isso?

Sentiu os braços de Tomoyo lhe envolver em um abraço fraterno.

— Cadê o Syaoran, Tomoyo?

A única coisa que queria era que seu marido estivesse lhe dando aquela notícia. Queria apenas que ele a envolvesse nos braços e dissesse em uma voz tranquilizadora que tudo ficaria bem, que a sua bebê estava bem e saudável. Ela só queria se aconchegar em seu peito enquanto ele lhe acarinhava os cabelos e a face. Ela  só queria sentir seu cheiro e todo o conforto que seu colo proporcionava. Ela só queria segurar a filha nos braços e cantar Dango Daikazoku até ela pegar no sono.  Ela só queria que tudo aquilo não passasse de um devaneio. Ela só queria ter Syaoran e Nadeshiko ao seu lado.  

— O que aconteceu com ele? Está morto? Eu perdi os dois? – Perguntou entre soluços. Sentiu Tomoyo lhe abraçar ainda mais forte.

— Na China… ele está na China, minha querida...

Sakura não pôde deixar de sorrir fracamente em um doce alívio. Ele estava vivo, pelo menos ele estava vivo...

Naquele momento, soluçando veementemente nos braços de Tomoyo, se deu conta de que tudo o que ela pensou que sentia e conhecia, se perdera nas margens colossais do tempo.

As labaredas dançavam de forma graciosa na lareira, ora tomavam tonalidades alaranjadas e ora azuladas. Sakura sorriu timidamente. O combustível, comburente e calor combinados entre si desencadeavam uma reação em cadeia chamada combustão, que era o lume propriamente dito. Esta era a tríade do fogo, sem um destes elementos, a reação em cadeia não aconteceria e consequentemente o fogo não se formaria.  

Syaoran costumava comparar a sua existência com a do fogo. Ele lhe dizia que ela e Nadeshiko eram essenciais para a sua vida, ou seja, essenciais para a sua existência como ser humano. Sem uma das duas, a vida não faria sentido para ele. Ela e Nadeshiko eram para Syaoran os elementos – ou seja, a tríade, apesar de serem duas – que formavam a combustão – o fogo, a sua vida, sua essência e existência – que era Syaoran.

Sempre achou aquele pensamento meio louco e sem nexo, nunca entendeu a real metáfora por trás daquilo. Mas gostava de ouvi-lo dizer que ela e Nadeshiko eram como a tríade do fogo, o produto de uma equação, ou simplesmente as razões da sua vida. Que sem elas não haveria reação em cadeia, que sem elas a vida não faria sentido.

Mas aparentemente, as coisas não foram bem assim. Houve reação em cadeia sim. Syaoran se virou bem sem elas. Bem demais sem elas. Se casou novamente, teve um filho e reconstruiu a sua vida.

Será que isso era egoísmo de sua parte? Desejar que Syaoran necessitasse dela e de Nadeshiko? Tecnicamente, ninguém nasce grudado. Ninguém necessita de outra pessoa para viver ou apenas sobreviver. Os componentes necessários para a vida se fazem presentes na natureza; como a água, os minerais, macro nutrientes – Carboidratos, lipídios, proteínas -, e o próprio ácido nucleico.  

Conclusão: uma pessoa não morre se não tiver a outra ao seu lado, pois ter ou não alguém que se ama não é um componente essencial para a vida.

Então sim, isso com toda a certeza era egoísmo. Ela era egoísta, ela pensava de forma egoísta, no fundo ela queria que Syaoran não tivesse reconstruído sua vida. Também não queria que ele tivesse se casado com Meiling – Deuses, com Meiling! -, não queria principalmente que ele tivesse tido um filho com ela, nem que tivesse passado vinte anos ao lado de quem quer que seja. Ela queria que Syaoran cumprisse com o que prometera: sem elas, não haveria tríade de existência e nem reação em cadeia.

Mas houve, e isso tudo lhe parecia tão injusto. Enquanto ela vegetava em uma cama de hospital do outro lado do mundo, ele transava com Meiling e levava o filho para brincar no parque. Nada disso parecia certo. Enquanto ela estava sofrendo o diabo com a morte da filha e a falta que sentia dele, ele provavelmente vivia plenamente com a “nova” família.

E quanto a Meiling... bem, não queria julgá-la, não queria nutrir ressentimentos, mas era difícil se manter isenta de tantos sentimentos e emoções negativas quando a prima de seu marido – ou melhor, sua amiga -, estaria vivendo a vida que deveria ter sido dela, realizando os planos que ela havia feito com Syaoran, ter concebido o filho que deveria ter vindo do seu ventre, e vivendo dia após dia a dor e a delícia de um casamento com o homem que pertencia a ela.

Tudo isso era dela, e não de Meiling.  

Sakura chacoalhou a cabeça, dando-se conta de que estava novamente praguejando contra a amiga chinesa. Tentou pôr a cabeça no lugar, e lembrar de quando Tomoyo lhe contou a sucessão de fatos após o acidente.

Soube que os anciões do Clã pretendiam dar cabo da vida dela caso Syaoran não se casasse por bem – até então, ele resistia a um novo casamento -, então Tomoyo percebendo o perigo iminente, para protegê-la juntou-se com os Lee e planejaram um sequestro que serviria de “estímulo” para fazer com que Syaoran finalmente seguisse as ordens dos anciões e se casasse conforme as tradições regiam.  

Então, bem... Syaoran não tivera culpa. E muito menos Meiling. Ambos eram tão vítimas quanto ela naquele circo. Ou será que... havia alguma outra opção? Alguma outra saída? Deuses! Como custava engolir tudo aquilo...

Não duvidava que a família Lee fosse capaz de matá-la, pois sabia que “escrúpulos” e “limites” eram palavras que não existiam no vocabulário daquele clã mesquinho e baixo. Syaoran não era um Lee qualquer, era o filho “homem” do ramo principal. Sim, até entre parentes havia a merda de uma hierarquia e ao que sabia, o marido estava no topo daquela árvore genealógica idiota.

Bem, o fato é que a união de um Lee, ou melhor dizendo, a união do Líder do Clã Lee com uma estrangeira era um tapa na cara daquela família, que tanto prezava por tradições preconceituosas, machistas e retrógradas. Então sim, não havia a menor sombra de dúvidas que aqueles velhos a matariam mais cedo ou mais tarde caso Syaoran continuasse se rebelando.

Mas o fato é que o Clã caiu. Sim, o nome Lee não surtia mais o efeito de antes, pois já não era um dos Clãs que influenciavam nos altos e baixos da economia chinesa, muito menos asiática. Ainda eram uma família rica, mas a briga interna que se sucedeu aos fatos acabou desintegrando o Clã, resultado dos negócios indo de mal a pior e a ambição pessoal de cada ramo. O prestígio e o poder que possuíam se perdeu no vento, e o golpe da misericórdia se fez presente naquele clã já quebrado.

Tomoyo lhe disse certa vez que achava que a queda da família fora obra de Syaoran, pois no dia em que ele as enviou para o ocidente, lhe prometera que “acabaria com todos eles”. Por isso achava que o marido da amiga afundara os negócios da família por debaixo dos panos – não sem antes fazer o dele -, e sabendo da ambição que rodeava os membros, deixou que seus tios e primos acabassem com o que sobrara. Ou era isso, ou ele realmente era um administrador muito ruim. O que lhe custava acreditar, já que o rapaz fez a parte que lhe cabia prosperar como presidente.

O que no fundo a incomodava era que, com a queda da família, Syaoran já não devia satisfações para aquele bando de anciões. Por que ele não a procurou? Por que ele não pediu para Tomoyo a levar de volta para a China? Por que ele nem sequer se deu o trabalho de saber onde ela estava? Então era assim? Depositava uma quantia por mês na conta de Tomoyo para manter seus cuidados médicos sem nem ao menos receber informações e feedback pelo pagamento?

Não achava que ele quisesse esquecê-la, pois bem ou mal fora ele quem bancou todo o seu tratamento durante todos aqueles anos. Não tinha como esquecer o motivo de uma dívida, ou tinha? O que ela podia concluir de tudo aquilo? Por que afinal ele quis que ela se mantivesse longe?

Bem... provavelmente ele havia se apaixonado por Meiling, pois não desfez o casamento com ela mesmo depois de deixar de ser chantageado. Ou talvez, na melhor das hipóteses, ele havia mantido o matrimônio pelo filho que eles tiveram juntos. Ou talvez... droga! Era tudo muito surreal para ela digerir e aceitar sem questionamentos e suposições.

A verdade era que por mais que Tomoyo garantisse que Syaoran nunca a esqueceu, que se manteve distante para preservá-la, Sakura ainda sentia muita mágoa por tudo que aconteceu. Syaoran a despachou como uma mercadoria para outro país e não procurou saber de seu paradeiro, ou por qualquer notícia de sua saúde. Sentia-se magoada por ele ter se casado com outra mulher e ter apagado ela e a filha de sua existência.

Também se sentia magoada com Meiling, pois afinal elas foram amigas, nunca imaginou que a chinesinha a qual trocou tantas confidências se tornaria esposa de seu marido, a mãe do filho dele. Jamais imaginou que toda aquela implicância entre primos acabaria em uma lua de mel e um fruto vivo.

Por esses motivos, ela proibiu Tomoyo de contatar Syaoran após o seu despertar. Ele não esteve com ela durante boa parte do seu coma, ele nem sequer quis saber dela. Por que haveria de querer saber quando acordasse?  Ele estava na China, vivendo a sua vidinha totalmente recomposta. Por muitos meses ela não se sentiu pronta para encará-lo nos olhos, não se sentiu à vontade em fazer com que fantasmas há muito adormecidos ressurgirem no presente.

Mas agora, bem... agora seria tudo ou nada. Ela precisava fazer com que seus próprios fantasmas caíssem em sono profundo, ou não conseguiria nem ao menos tentar seguir em frente. E a única forma de conseguir isso, era colocar seu passado e presente em panos limpos.

Pelo menos agora se sentia um pouco melhor que antes. A palavra “mágoa” tinha um significado e efeito diferente da palavra “raiva”. Disso ela sabia, pois sentiu na pele a diferença entre ambas.

Hoje, depois de quase dois anos desde que seu mundo caiu por terra, sentia-se apenas magoada e ressentida com o que a vida lhe impôs, já não nutria a raiva que sentiu nos primeiros meses que se sucederam ao seu despertar. Sentia o coração um pouco mais leve, e isso se devia a uma certa conversa que tivera com um amigo querido: Eriol Hiiragizawa.


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Notas finais do capítulo

*Desviando das pedras e dos tiros*

Sim, eu sei. Demorar mais de sete meses para atualizar uma fanfic é sacanagem, falta de respeito e consideração. Eu sei que há pessoas que pensaram que eu desisti, recebi mensagens no privado com leitores desesperados achando que eu havia abandonado o projeto. Eu não abandonei gente, e não vou abandonar, por mais que as atualizações demorem. E eu peço desculpas a vocês por isso.

Mas não deu gente, eu juro que eu tentei atualizar antes. Venho (tentando) escrever esse capítulo desde fevereiro, deletei o arquivo várias vezes e comecei do zero. Esse foi um capítulo muito difícil de escrever, muito mesmo.

1 - A faculdade sugou minha alma no 1º semestre de 2016;

2 - Esse capítulo não estava nos planos, o meu plano inicial era fazer deste quarto capítulo o último, acontece que precisei reformular várias coisas, e ficou inviável não escrever um capítulo falando unicamente da Sakura. Ou seja, demorei um tanto de tempo para planejar um capítulo a la Sakura!;

3 - Eu pretendia fazer apenas um capítulo tratando da perspectiva da Sakura, acontece que o arquivo estava beirando 35 páginas no word e ainda faltava bastante para terminar, então precisei dividir em duas partes. Já tenho quase dez páginas do próximo escrito;

4 - Confesso que a inspiração me abandonou por vários meses, eu desanimei muito com essa história. Motivo? Bem, eu recebi um retorno estrondoso nesse trabalho, um retorno que eu nunca imaginei que receberia. Comecei a receber muitas mensagens, e-mails e houve até gente que descobriu minha conta pessoal no facebook e passou a me mandar mensagens constantemente. Conclusão? Eu não funciono sob pressão! Acreditem, eu mesma já me cobro bastante.

Bem, aí estão alguns dos motivos pelo qual eu não postei antes. Tive uma folga nessas férias de julho e consegui fechar várias ideias. Devo um muitíssimo obrigada a todos vocês que ainda estão acompanhando a fanfic, saibam que cada comentário foi especial e importante, e apesar de me sentir um pouco pressionada eu continuo essa fanfic por vocês, para vocês. E eu não vou desistir de ACV, não de preocupem.

Não vou prometer uma data de postagem para o próximo capítulo, simplesmente porque já ficou mais que claro que eu não cumpro prazos e regras pré estabelecidas. Eu já tenho parte dele pronto e ainda falta muito, mas eu vou conseguir.

E antes que essa nota enorme termine, eu preciso agradecer uma pessoa em especial: a Lalye. Acreditem, ela foi peça fundamental para sair essa atualização. Muito, muito, muito obrigada por todo o apoio que você me deu e tem me dado, muito obrigada pelos help, por ter me acalmado e me ajudado em tantos momentos, por ouvir e aguentar meus choros enquanto eu não conseguia escrever. Obrigada por ter sido tão paciente e linda comigo. E desculpa por te fazer corrigir 27 páginas no word! hehehe

AGORA VAMOS FALAR DE COISA BOA. Não, não é tekpix.

GENTE, acho que já não é mais novidade que há uma nova serialização de Sakura Card Captors em andamento, então eu e mais dois escritores de CCS (Lalye limda divosa e o Braun) criamos um grupo no facebook com o intuito de reunir o fandom. O grupo se chama “Seita Clandestina de Cardcaptors” e lá nós divulgamos várias fanfics, fanarts, compartilhamos novas informações, discutimos acontecimentos e teorias para CCS, e mais que tudo: transbordamos amor por esse animemangá tão maravilhoso! ENFIM, sintam-se convidados para se juntarem a nós!


Agora, indo direto ao ponto: o que acharam desse capítulo? O que estão achando do andamento da história? Consegui desenvolver bem essa Sakura pós coma? O que vocês acham ou querem que aconteça? Por favor, me contem. E que comecem os jogos!

Obs.: A música presente no capítulo se chama Lay Me Down, e é o lindo do Sam Smith que canta. Deem uma olhada na tradução, é linda!
Obs.: Dango Daikazoku é uma melodia que faz parte da trilha sonora de um outro anime que eu amo de paixão, chamado Clannad After Story. É de chorar, gente! Super indico! Então deixo aqui a minha homenagem e referência!


Beijo enorme e até o próximo capítulo,
Bely.

Ps.: Estou desenvolvendo uma outra long fic chamada Sorriso Quebrado, também de CCS. Gostaria muito de saber a opinião de vocês, pois estou trabalhando com um casal que é pouco explorado. Enfim, conto com vocês!



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