Contos da Montanha Shiroyama escrita por Makimoto


Capítulo 7
Capítulo 6 — “Vamos brincar de esconde-esconde?”


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, tudo bem? Eu sei que eu demorei _muito_ dessa vez, para atualizar a história, e eu peço perdão por isso. Eu não quis decepcionar ninguém. Passei por uma crise de ansiedade que me fez ficar sem escrever nada por semanas (quem me acompanha no Facebook sabe como foi complicado). Isso aconteceu tanto porque eu passei por uma situação que mexeu muito com meu psicológico tanto porque, ao mesmo tempo, eu costumo cobrar muito de mim mesma e 'tava me sentindo muito inseguro com o andamento dessa fic. Ela é muito importante pra mim, tanto que quero tentar publicá-la um dia, e eu sofro de um perfeccionismo tão fodido que me impede de gostar de qualquer coisa que eu escrevo. Mas o apoio de vocês, leitores lindos, sempre me animou muito e sempre me colocou pra cima. Muito obrigada mesmo! Significa muito pra mim! Não sei se gostei desse capítulo, se ficou bom como deveria, mas tentei de verdade. Bom, vamos ao que interessa?

Futon :: Tipo de colchão usado na tradicional cama japonesa;
Shirogohan :: Arroz japonês;
Misoshiru :: Prato da culinária japonesa, uma espécie de sopa, consumido com frequência pelos japoneses;
Zabuton :: Almofadas onde as pessoas sentam ao redor da mesa baixa;
Bakeneko :: Yōkai cuja forma assemelha-se a um gato (retratado no capítulo anterior);
Hashi :: Palitinhos de comer;
Jubokko :: Árvore Yōkai;
Asagohan :: Café-da-manhã;
Yōkai :: Como comumente se chama as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
Kimono :: Vestimenta tradicional japonesa utilizada por mulheres, homens e crianças;
Jurōgumo :: Aranha Yōkai;
Makai :: Literalmente significa “O Mundo dos Espíritos Ruins”;
Chawan :: Tigela utilizada no Chanoyu (Cerimônia do Chá japonesa) para servir e beber o chá verde;

Boa leitura! ♡



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20 de junho, segunda-feira;

Abri os olhos e retomei gradualmente minha consciência quando senti algo cutucando meu pé direito. Relutei em me mover, uma vez que a temperatura no interior do meu Futon era bem mais aconchegante que a de fora, e tentei voltar a dormir. Minha mente, entretanto, não conseguia emergir novamente no mundo dos sonhos porque alguma coisa felpuda alternava entre se remexer contra a parte inferior das minhas pernas, puxar meu cabelo e tentar a todo custo empurrar-me para fora do leito.

Quando finalmente me dei por vencida, mesmo que ainda mantivesse a cabeça apoiada no travesseiro, olhei para cima e percebi Aomaru me encarando diretamente e de cabeça para baixo. Exibia nos lábios um sorriso de triunfo, demonstrando estar genuinamente feliz ao presenciar a batalha que acontecia dentro de mim, sobre permanecer na cama ou despertar para mais um dia, e eu senti vontade de ignorá-lo. Lembrei-me, no entanto, que eu não conseguiria fazê-lo mesmo se quisesse, pois a presença dele era indiscutivelmente perceptível.

— E depois eu é quem sou o preguiçoso. — Balbuciou a criatura, enquanto lambia as próprias patas e as raspava nas orelhas. — É isso o que acontece quando se fica acordado até tão tarde da noite.

— Você está me vigiando? — Franzi o cenho, apoiando o braço sobre a cama. — Para o seu bem, eu espero que não.

— Não estou vigiando você. — Fingiu estar ofendido. — Eu apenas, por acaso, estava olhando para cá quando a luz se apagou e deduzi, por pura lógica, que você tinha ido dormir bem depois do habitual.

Eu não tinha forças para participar daquele dissimulado jogo de farpas e limitei-me a esfregar os olhos com sonolência. Levantei-me minutos depois, desfrutando do silêncio que reinava na casa, e, após limpar-me e prender meus cabelos negros em um coque desajeitado, dirigi-me à cozinha para fazer o café da manhã.

Preparei primeiro o Shirogohan, dedicando-me, em sequência, a picar os legumes e demais ingredientes que comporiam o Misoshiru, e por último grelhei uma porção razoável de peixe. Preparei também o chá verde que acompanharia a refeição e depositei tudo sobre a mesa da sala de estar. Minha mente, que estivera vazia até o presente momento, passou a despertar lentamente e os pensamentos que outrora a povoaram, sobre todas as informações curiosas que eu havia reunido nos últimos dias, começaram a se organizar.

Ajoelhei-me em uma das almofadas e sentei-me à mesa. O cheiro da comida penetrava as minhas narinas e lembrava ao meu estômago — que emitiu um ronco grave em resposta — que eu já não me alimentava decentemente há muitas horas. Não havia nada especial, entretanto, ainda assim, talvez pela fome, aquele café da manhã parecia-me excepcional.

O Bakeneko esgueirou-se até onde eu estava, espreguiçando-se sobre uma Zabuton desocupada, e largou o corpo pesado no chão do espaço ao meu lado. Ergui a sobrancelha, enquanto apanhava um punhado de arroz com os Hashi e o enfiava na boca, e ele me encarou como se fosse um absurdo eu não ter entendido nada.

— Ouvi rumores interessantes no vilarejo hoje. — Ele iniciou. — E, quando digo interessantes, quero dizer para mim; talvez não tanto para você.

— Eu estou tentada a perguntar sobre estes tais rumores. — Fingi descaso. — Mas estou mais interessada é no que você disse sobre bisbilhotar a vida dos outros.

— Sou todo ouvidos. — Ele devolveu confiante.

— Esqueça. — Resolvi mudar de assunto. — Só quero lembrá-lo de que nós subiremos a montanha logo mais.

— Você não me deixa esquecer.

— Precisamos pensar no que fazer com aquela Jubokko antes que ela machuque mais alguém.

— Sorte a sua que não tenho nada melhor pra fazer. — Ele encerrou a discussão temporariamente.

Virei-me, dando-lhe as costas, e voltei-me para a comida. Ingeri cada parte do Asagohan, disciplinadamente imersa em silêncio mesmo sob os balbucios intermináveis do Yōkai, e troquei de roupa após guardar os utensílios de cozinha e assear-me minimamente.

Em certo momento, notei que Aomaru estava agindo de forma estranha. Ele se aproximava de mim e caminhava despretensiosamente na minha frente, e, quando eu fazia nada além de franzir o cenho e seguir com meus afazeres, ele me seguia. Ficava deslizando ao meu redor, todavia, quando eu olhava para ele, simulava indiferença. Eu não entendia se ele queria falar comigo ou, talvez, mostrar que estava me ignorando. Mesmo que não estivesse.

— Você está bem? — Perguntei finalmente.

O Yōkai — que não exibia suas esferas flamejantes como de costume — bufou antes de sentar-se ao meu lado.

— Está bem. — Ele revirou os olhos. — Ouvi boatos e queria compartilhar com alguém.

— Podia ter dito antes. — Sorri com suave ironia. — O que você ouviu?

— Alguns aldeões desapareceram ontem. — Confidenciou-me em um tom animado. — Ao que parece, um durante o dia e o outro à noite.

— O quê? — Afastei as mãos em sinal de espanto. — Duas pessoas estão desaparecidas e você fala como se fosse uma coisa boa?

— É bom pra mim. — Ele deu de ombros. — Observar os humanos, e seus problemas mundanos, sempre foi meu passatempo predileto.

Deixei-o falando sozinho e retornei para meus aposentos particulares. Apanhei uma bolsa de couro, que pus à tiracolo, e dentro dela coloquei água, um isqueiro velho e um pouco de álcool para ajudar a queimar. Eu planejava incinerá-la. Como ela estava localizada no centro da clareira na floresta, muito afastada das demais, eu acreditava que poderíamos nos livrar dela sem colocarmos fogo no lugar inteiro.

Saímos de casa pouco depois, dispostos a subir a montanha até o lugar onde eu e Suzu-chan havíamos encontrado a Jubokko. Ainda que tenhamos conseguido sair de lá com vida, não fazer nada a respeito seria compactuar com suas ações no futuro e eu, como médica e àquela altura, não conseguiria ignorar o fato.

Ouvi, simultânea à minha travessia pelo centro do vilarejo, pessoas comentando sobre o estranho ocorrido dos últimos dias. Era o assunto corrente. Algumas insistiam que não era nada demais, que era provável que os supostos aldeões perdidos só estivessem fora da vila a negócios, mas outras afirmavam com veemência que estavam em apuros e que precisavam de ajuda. Uma criança chorava desesperadamente enquanto segurava a barra do Kimono da mãe. Eu pretendia passar despercebida por entre eles, pois tinha uma tarefa importante e precisava cumpri-la, mas fui interceptada por Yamada-san que, com um cumprimento amigável, obrigou-me a parar.

— Bom dia, Makoto-chan. — Ela disse. — Vejo que você está dando uma volta com seu mascote.

O gato me olhou com suave irritação, e eu me curvei-me educadamente para dar continuidade à conversa:

— Sim, nós vamos caminhar um pouco. — Apertei a alça da bolsa com firmeza. — Está um dia lindo e eu gostaria de desfrutar disso.

— Sei que não é minha conta, mas, como tenho apreço por você, sinto-me na obrigação de falar. — A idosa se aproximou de mim. — Eu não sei se você já ouviu os boatos, mas algumas pessoas estão desaparecidas.

— Eu pensei que ninguém tinha certeza ainda.

— É verdade, mas eu tenho um mau pressentimento sobre tudo isso. — Ela falou em um tom sinistro. — Alguma coisa me diz que algo de ruim aconteceu com eles. Ryōtarō-san nunca sai sem...

— Você disse “Ryōtarō-san”?

— Sim. Ele é um dos desaparecidos. Ninguém o vê desde ontem à noite. Encontraram coisas reviradas na casa dele e... — Fez uma pausa e continuou em seguida: — Teias de aranha.

— Teias de aranha?

— Oh, sim, teias de aranha. — Ela repetiu. — Disseram que não era nada, que provavelmente se acumularam com o tempo, mas eu conheço Ryōtarō-san desde que ele era criança. Ele sempre foi muito limpo e organizado. Tem alguma coisa estranha em tudo isso.

Por alguma razão, um sentimento de preocupação irracional tomou conta de mim. Embora o primeiro contato que tive com o “rapaz das cenouras” não tivesse sido o melhor, eu não desejava que ele sofresse qualquer tipo de infortúnio. Talvez muito menos do que eu previa.

Despedi-me de Yamada-san com um aceno desanimado, incapaz de ocultar a súbita aflição em meu olhar, e permaneci longos minutos em quietude antes de ser capaz de retomar a conversação novamente.

Penetramos a trilha, embrenhando-nos cada vez mais fundo na floresta que constituía o monte, cercados por uma familiaridade natural. Eu sabia a quem estávamos indo confrontar — lembranças das palavras ditas pela árvore, através de uma telepatia que eu mal entendia, ainda povoavam meus pensamentos —, contudo eu me sentia muito mais segura quando estava ao lado do meu companheiro felino. Fosse porque ele era um Yōkai, e, de certa forma, saberia me situar naquele mundo que eu aos poucos estava aprendendo a compreender, fosse porque eu já havia visto demonstrações de seu poder. Era inegável o fato de que nós dois, aos poucos, estávamos estreitando nossos laços.

Percorremos o mesmo caminho feito no dia anterior e avistamos a Jubokko. À distância, parecia realmente uma árvore comum, e assim ficou ainda mais claro o motivo de eu não ter descoberto sua verdadeira natureza em tempo suficiente. Eu nunca imaginaria que uma árvore também pudesse ser um Yōkai, uma vez que estava habituada a lidar com criaturas animadas, vivas e que se moviam, e muito menos que, de todas, seria ela a única com quem eu conseguiria conversar decentemente.

Eu tinha noção de que cautela era imprescindível e por isso nos aproximamos do salgueiro sem movimentos bruscos. Reparei, quando já estava quase alcançando o tronco, nos pedaços de ossos espalhados pelo solo, semienterrados, e na carcaça de um animal de porte pequeno que, acreditava eu, era o que restava do cachorro de Suzu-chan.

Sentimos alguma coisa mover-se sob nós, debaixo do chão, e eu lancei um olhar ao Bakeneko avisando-o mudamente de que havíamos sido descobertos. Prontamente remexi na bolsa, em busca dos itens que eu havia trazido, quando notei, através da minha visão periférica, uma raiz sorrateira serpenteando pelas minhas costas. Respirei fundo, a fim de manter a calma, e fixei os olhos em meu companheiro que examinava a árvore curiosamente.

Quando minha mão alcançou o isqueiro, virei-me de repente para o galho tentaculoso que se preparava para me atacar e impus a chama já acesa para afastá-lo. Daquela vez eu já não estava mais tão assustada quanto no primeiro momento em que me deparei com a criatura exótica. Aomaru juntou-se à mim e se posicionou na minha frente de uma maneira protetora.

— Eu sei o que você pretende. — A voz da árvore novamente irrompeu os meus pensamentos. — E temo que terei que impedi-la.

— Se sabe disso, sabe também que não posso deixá-la aqui para ferir outras pessoas do vilarejo que por ventura acabem chegando a esse lugar. — Respondi mentalmente.

— Compreendo seu posicionamento, mas você deve compreender o meu também. — Percebi algumas folhas sacudirem de leve. — Vivo aqui há muito mais tempo do que você existe neste mundo. Porque a minha vida vale menos que a sua?

Fiquei quieta instantaneamente porque eu não soube responder a pergunta. Cuidar dos meus semelhantes era um conceito tão natural para mim que, mesmo descobrindo a existência de seres místicos como os Yōkai, eu não tinha feito nada, de modo consciente, além de questionar e comparar a natureza de ambas as espécies.

Embora eu tenha começado a enxergá-los ainda na infância, e que sufocar essa habilidade para não parecer louca diante das pessoas comuns tivesse sido a única saída que eu, com cinco anos, consegui visualizar, nunca havia tido nenhum contato direto com as criaturas até chegar àquela vila. Eu não conseguia entender porque as visões haviam parado durante minha adolescência e início da fase adulta e só agora voltavam para pôr à prova minha sanidade.

Estar em perigo por diversas vezes nos últimos dias não me fizeram desejar o mal de nenhum dos seres que cruzou o meu caminho. Na verdade, eu sequer pensei em qualquer coisa além de solucionar o problema e manter as pessoas alheias ao que acontecia ao seu redor, pois eu não acreditava que elas me dariam ouvidos, e, se dessem, que seriam capazes de compreender uma coisa que fugia tanto da crença comum. Proteger a existência dos Yōkai foi, para mim, um instinto irracional. E eu não fazia ideia do porque.

— O que você espera que eu faça? — Deixei claro que estava aberta a uma negociação.

— Tenho uma troca a propôr. Você permite que eu fique aqui, existindo, alimentando-me apenas quando se fizer necessário, e eu lhe concedo orientações. Sou os olhos e os ouvidos dessa floresta. Ademais, possuo uma informação que, posso ver em seu coração, muito lhe interessa...

— Informação? — Por instinto, pus a mão no peito.

— A localização do covil de um Yōkai que chegou há pouco tempo na região. Ouvi sussurros de que ele raptou homens do vilarejo.

Meus olhos se abriram de espanto quando fui pega pela coincidência das circunstâncias. Lembrei-me imediatamente de Yamada-san comunicando o desaparecimento de dois aldeões. De Ryōtarō-san. Senti um arrepio percorrer o meu corpo e um impulso de agir tomou conta de mim.

— Nós nos ajudaremos, é o que você diz?

— Sim.

— Temos um acordo. — Pronunciei-me finalmente.

O galho da árvore que antes estivera apontado para mim foi, lentamente, penetrando no solo mais uma vez. Meu companheiro tremelicava os bigodes, mantendo os olhos fixos em mim, esperando por um parecer. Guardei o isqueiro na bolsa, depois de apagá-lo, e suspirei aliviada ao notar a atmosfera tensa desaparecer de maneira gradual.

— Notou algo estranho sobre os desaparecimentos? — A Jubokko falou comigo mais uma vez.

— Ouvi dizer que encontraram resquícios de teia de aranha na casa de uma das vítimas... — Relatei, depois de pensar com calma.

— Essa é a marca da Jurōgumo. Trata-se de uma criatura cuja forma original é uma aranha. Ela vive em cavernas isoladas na floresta e assume, muitas vezes, a forma de uma jovem sedutora para atrair suas presas. Alimenta-se de homens jovens, sugando seus fluidos e vitalidade para se fortalecer e rejuvenescer, pois ela envelhece muito mais rápido que os outros, e o intervalo entre uma alimentação e outra costuma ser de meses.

― Mas dois homens sumiram entre uma noite e outra. ― Contra-argumentei.

— Pode ser um indício de que ela atingiu uma idade avançada onde a deterioração é ainda mais veloz. E isso pode tê-la levado a caçar com um intervalo tão pequeno. — A Jubokko me explicou. — É um Yōkai perigoso, jovem humana, e que mata sem qualquer remorso.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, absorvendo as palavras telepáticas da Jubokko, enquanto tentava assimilar a visão de uma criatura aracnídea se infiltrando no vilarejo no meio a noite.

— Onde a Jurōgumo está?

O gato-monstro me fitava e aguardava enquanto o outro Yōkai me revelava a localização da caverna onde o inimigo se abrigava. Eu me concentrava em memorizar as direções que me conduziriam e, quando a conversa finalmente se findou, eu voltei-me para meu companheiro e murmurei:

— Acompanha-me em um passeio na floresta?

Nós tornamos a nos embrenhar na mata, com um novo objetivo em mente, e munidos de ainda mais cautela, pois eu não fazia ideia de como lidaria com a iminente situação. Diferente da Jubokko, que eu já conhecia, e tinha certeza que, apesar do perigo que representava, estava limitada a permanecer imóvel como a árvore que essencialmente era, a natureza de minha atual adversária ainda era totalmente desconhecida para mim.

Meus pés ziguezaguearam pela trilha, emitindo sons consistentes ao pisotearem as folhas secas pelo caminho, ao passo que eu me atentava para a diversidade da fauna e flora daquela parte da montanha. Era uma área inóspita, que poucos se arriscavam a visitar, e por isso tinha um aspecto intocado. O canto dos pássaros podia ser ouvido ao longe. Eu me sentia dividida entre permanecer resoluta, observando a paisagem que me cercava, e iniciar um diálogo com Aomaru.

— Você conhece essa tal de Jurōgumo? — Finalmente perguntei a ele.

— Já tive o desprazer de encontrar com uma certa vez. — Ele respondeu enquanto nós caminhávamos. — Tinha uma forma humana bonitinha, mas era muito nojenta. Comia como uma besta.

Eu não perguntei sobre a natureza da refeição porque já imaginava a resposta e sabia que não ia gostar dela.

— A maioria delas é traiçoeira e mente muito bem e é por isso que elas passam anos se alimentando sem que ninguém perceba. A maioria gosta de viver na floresta, em cavernas, mas a necessidade obrigou algumas delas a se infiltrarem em lugares maiores e mais cheias de gente. Elas migram depois de algum tempo, quando as pessoas começam a desconfiar que pode não ser obra de nenhum animal selvagem ou infortúnios aleatórios, como pode ser o caso dessa aqui.

Nunca tive problemas severos com insetos, sempre tive o tipo de aversão que as pessoas em geral normalmente possuem, mas eu me arrepiei ao imaginar uma aranha do tamanho de uma pessoa e com feições humanoides. Eu não sabia como ela realmente se parecia, não obstante, baseado nas informações que recebi, foi a única coisa em que consegui pensar.

Paramos em determinado ponto na floresta ao comando do Bakeneko. Ele fez sinal para que nos escondêssemos atrás de uma árvore enquanto apontava com o focinho uma caverna discreta logo a frente. Eu entendi, sem a necessidade de explicações, que se tratava do lugar que a Jubokko nos tinha indicado e acentuei ainda mais meu olhar na direção da clareira à nossa frente.

Permanecemos ali por quase uma hora, esperando ver a criatura entrar ou sair, mas nada aconteceu. Eu já estava começando a achar que tínhamos errado o caminho ou simplesmente sido enganados pela árvore em uma tentativa desesperada de adiar a hora da morte. Meus olhos, no entanto, não desgrudaram da entrada do suposto covil mesmo enquanto eu pensava em desistir.

Um ruído baixo, porém incômodo e constante, de arranhões foi captado pelos meus ouvidos vindo de algum lugar acima. Eu ergui a cabeça, no intuito de identificar a origem do som, mas fui surpreendida por uma coisa, de aparência negra e impossível de identificar de relance, saltando do meio das folhas com inegável voracidade em minha direção. Escutei o felino gritar meu nome mas, logo em seguida, eu fui golpeada na cabeça.

Minha visão ficou turva e eu perdi o equilíbrio, tombando no chão, ao mesmo tempo em que imagens do que acontecia à minha frente se misturavam em um turbilhão borrado. A figura negra, que parecia ter muitos pequenos braços, se movia em direção à Aomaru, que se posicionava de modo ofensivo, e a última coisa que eu consegui ver, antes de perder completamente os sentidos, foi meu companheiro ser atingido pelo que quer que fosse que tinha nos atacado.

Despertei, sem saber quanto tempo havia se passado, graças ao som incômodo de um gotejo. Minha cabeça doía e minha vista demorou a adquirir foco. Precisei piscar várias vezes para ser capaz de enxergar o ambiente ao meu redor, que, eu logo percebi, era desconhecido para mim. A última coisa de que eu me lembrava era de estar na floresta, observando o suposto covil da Jurōgumo, e me dei conta de que me encontrava em um lugar escuro, úmido e com um forte odor de carne podre.

Tentei mexer os braços, mas estavam amarrados nas costas por algum tipo de substância pegajosa e resistente, e eu fiz força para me pôr sentada. Girei a cabeça, no intuito de descobrir onde eu estava, mas tudo o que encontrei foram pedras e sinal nenhum de minha raptora. Haviam pequenos furos no teto por onde filetes de luz entravam, se insinuando sobre os meus olhos, levando-me a descobrir que estava dentro de uma caverna.

Tentei controlar minha respiração, que se tornava ofegante graças à minha ansiedade, e meu coração retumbava com força dentro do peito. Fechei os olhos, reuni fôlego, e tranquilizei a mim mesma repetindo insistentemente que tudo ia ficar bem. Ainda assim, eu não conseguia parar de piscar. Sentia meus dedos formigando, e aos poucos perdendo a sensibilidade, ao passo que eu forçava a vista para ser capaz de enxergar em meio ao breu que me cercava.

Olhei para trás e percebi que, em um nível mais elevado de pedregulhos, havia uma espécie de ninho, feito com folhas de árvores, e ouvi um gemido, propagado com especial sonoridade através do eco da caverna, vindo de um lugar um pouco mais além. Parecia uma voz masculina. Franzi o cenho, olhando de ambos os lados, e levantei-me com dificuldade utilizando a parede às minhas costas como apoio.

Caminhei, prestando atenção no trajeto para não tropeçar, e me permiti ser guiada pelos ruídos humanos. Era difícil equilibrar-se para alcançar elevações irregulares com as mãos amarradas e por várias vezes eu quase caí. Mantinha a percepção aguçada, alerta para qualquer sinal de perigo, e assim fui me esgueirando, com as costas rente à parede endurecida, caverna adentro.

Escalei a plataforma de nivelamento superior com dificuldade. Os ruídos eram baixos, quase inaudíveis, tornando ainda mais árdua a minha busca.

— Olá? — Chamei. — Tem alguém aí?

O som da minha voz pareceu ter despertado a pessoa oculta e pude ouvi-la com mais clareza. Captei sons de pancadas. Apressei o passo e prossegui, com receio do que poderia encontrar, até que avistei um invólucro branco, preso ao teto, que se remexia freneticamente. Contornei-o e, para a minha surpresa, deparei-me com o rosto de Ryōtarō-san.

— Ki... kui? — Ele indagou com visível exaustão. Parecia tonto. — O que você...

— Você está bem? — Perguntei prontamente. — Está ferido?

— Eu não sei. — Ele gemeu. — Lembro de ter machucado a perna, mas agora não sinto mais nada. O que está acontecendo? Onde eu estou? Onde nós estamos?

— Receio que as explicações terão que ficar para depois. — Retruquei prontamente.

Ele estava preso por amarras irregulares, que pareciam compostas do mesmo material que imobilizava os meus braços, mal amarrado, mas, ainda assim, incapaz de se libertar sem ajuda. Ao lado dele, no chão, percebi restos da mesma substância. Era teia de aranha. Misturada à sangue.

— Ujio-san, ele... Ele estava aqui...

Eu sabia, em algum lugar dentro de mim, o destino que o outro homem desaparecido havia tido. Eram evidências demais a serem ignoradas. Estremecia só de imaginar que ela poderia tê-lo devorado, vivo ou não, até que só restasse algumas gotas de sangue. Respirei fundo para afastar tais pensamentos. Meus instintos me diziam que o importante, naquele momento, era manter Ryōtarō-san a salvo e encontrar uma rota de fuga antes que a Jurōgumo retornasse, no entanto a situação definitivamente não era favorável.

Procurei ao meu redor por qualquer objeto afiado que eu pudesse usar para arrebentar as teias, mas não encontrei nada a princípio. Tentei esfregar meus braços contra a parede pedregosa, mas não surtiu efeito algum. Lembrei do isqueiro que eu tinha trazido na bolsa, todavia, ao examinar meu próprio corpo, reparei que eu já não estava mais com ela.

— Fique aqui, por favor, eu volto logo. — Pedi.

— O que você pensa que vai...

— Shhhh. — Silenciei-o. — Não faça barulho, Ryōtarō-san. Ela pode nos ouvir.

Sequer mencionei o nome da Jurōgumo, mas, ter a imagem dela evocada em nossa curta conversa foi o suficiente para fazer o homem ficar quieto. Lembro de me perguntar o que ele poderia ter visto e se o Yōkai era, assim, tão assustador.

Retornei para o local onde eu estava quando acordei, a alguns metros, e fiquei feliz em avistar minha bolsa. Em meio à confusão do momento eu havia esquecido que ela existia. Sentei-me no chão e tentei manuseá-la mesmo com as mãos imobilizá-las. Remexi lá dentro, sempre olhando para os lados para me certificar de que eu estava sozinha, até achar o objeto retangular.

No instante em que agarrei-o com força, no entanto, ouvi um estrondo vindo do lado oposto da caverna em que Ryōtarō-san estava. Voltei minha cabeça na respectiva direção, mas não vi nada, e isso foi o que me deixou ainda mais apreensiva. Usei o polegar para acender o isqueiro e dissolver a teia que me prendia — embora não sem queimar suavemente a pele próxima — e, quando finalmente me vi livre, voltei para onde o aldeão estava.

O volume do som crescia gradativamente, ecoando com violência na caverna, e isso causou tremulação em minhas mãos. Com o fogo, me pus a dissolver também as que se emaranham em torno do corpo de Ryōtarō-san.

Levou quase um minuto inteiro para que as teias se desfizessem o suficiente para que o homem fosse capaz de se mover mais uma vez. Ajudei-o a remover o excesso que ainda se acumulavam superficialmente. Ele estava pálido — provavelmente por ter permanecido sem comida por muito tempo —, parecia exausto e notei, também, algumas queimaduras ao longos dos braços e na região do pescoço. Perguntei do que se tratava e ele me informou que alguma coisa no invólucro branco era ácido e que ele já estava sentindo os efeitos há algum tempo.

Eu não sabia o quanto as queimaduras eram graves, mas tinha em mente que eram preocupações para o futuro. Apoiei o braço de Ryōtarō-san em torno do meu pescoço, pois ele mal se sustentava em pé, e nós continuamos a andar pelo caminho obscuro que se estendia à nossa frente.

— Com você veio parar aqui? — Ele indagou com visível dificuldade.

— É uma longa história. — Eu pretendia completar com “que eu não sei se seria apropriado você saber”, mas decidi ficar quieta. — Todos estão preocupados com você.

— Eu não sei como vim parar aqui. — Apertou os olhos duas ou três vezes. — Lembro de estar na vila, limpando e fechando a parte frontal da minha casa, quando de repente...

Eu olhei para ele esperando pela resposta.

— Tudo ficou negro. — Completou.

Chegamos a uma bifurcação onde ambos os caminhos eram praticamente idênticos. Mal podíamos enxergar além deles porque a única fonte de luz natural era a que entrava por falhas entre as pedras. Eu acendi o isqueiro pela terceira vez naquele dia, afim de ser capaz de obter orientação, mas, quase de imediato após a minha ação, ouvimos um grito estridente que, de tão animalesco, mais parecia o ressoar dos portões do Makai.

— O que foi isso? — Ryōtarō-san perguntou assustado.

— A coisa da qual temos que fugir. — Eu disse, enquanto um arrepio poderoso percorria a minha espinha.

Chegou até mim, como um lampejo mental, as palavras pronunciadas em um programa de tevê que eu costumava ver com a minha mãe. Falava de sobrevivência em ambientes hostis, desabitados, e, em dado momento, foi dito que, para achar a saída dentro de uma caverna profunda, o ideal é sentir a direção para onde o vento sopra. Nunca achei que um passatempo como aquele me ajudaria verdadeiramente na vida, contudo eu não tinha nada a perder. Ergui o isqueiro o máximo que eu pude e me pus a observar o tremeluzir da chama.

Prosseguimos pelo caminho da direita, enquanto sons de passos e arranhões nos seguiam de cada vez mais perto. Ryōtarō-san era pesado, e embora ele usasse a outra perna para andar, carregá-lo começou a se tornar muito difícil. Minha respiração estava entrecortada, ofegante, e os meus músculos se enrijeciam para que eu fosse capaz de praticar tal exercício.

— Vamos brincar de esconde-esconde? — Uma voz feminina e esguia ecoou atrás de nós, à distância, seguida de ruídos ritmados.

Um calafrio profundo percorreu o meu corpo, meu coração acelerou e eu, por instinto, passei a andar mais depressa. O som dos nossos passos se mesclava aos da nossa perseguidora e eu me sentia como uma presa encurralada minutos antes da morte pelas mãos de um predador voraz.

Peguei-me desejando, com a pouca esperança que ainda me restava, que Aomaru estivesse lá.

Avistamos, por fim, uma luz distante. Meu coração se encheu de esperança quando percebi que era uma saída da caverna. Olhei para o homem ao meu lado, que retribuiu com um sorriso confiante, e nós concentramos todo o nosso vigor em prosseguir. A escuridão se tornava mais esparsa conforme nós nos aproximávamos da luz, proporcional à felicidade que se apoderava de mim, mas a força com que a luz do sol atingiu os nossos olhos foi o suficiente para nos cegar por um instante.

O som dos pássaros cantando e das folhas das árvores sacudindo foi como uma canção pitoresca e agradável que eu ouvia na infância. A adrenalina esmaecia, ao mesmo tempo em que o vento resvalava sobre o suor impregnado na minha pele, refrescando-me, e a sensação que eu tinha era que de estivera aprisionado por muitos anos.

— Conseguimos. — Ele riu. — Nós conseguimos.

— Sim. — Suspirei.

Era a primeira vez que eu via o sorriso de Ryōtarō-san.

— O que estava nos caçando? — Ele me perguntou. — Não era humano; não, eu tenho certeza que não era humano.

Ponderava eu se devia falar ou não, quando, de súbito, notei uma figura negra, se movendo em uma velocidade assustadora, se aproximando de nós.

— Ryōtarō-san!

Por reflexo, empurrei-o para longe com toda a força que consegui reunir no momento e senti o baque da criatura se jogando sobre mim. Fechei os olhos, colocando as mãos nos braços para proteger o rosto, enquanto batia contra a terra dura do bosque. Quando abri os olhos, não acreditei no que eu enxergava. Pisquei diversas vezes, mas nada do que eu fizesse, ou dissesse a mim mesma internamente, fê-la desaparecer.

Era uma mulher, com o cabelo arrumado em um Shimada desajeitado — com fios escapando aqui e ali —, trajando um quimono vermelho que por pouco não deslizava pelos ombros. Sua pele era tão branca que brilhava em contato com o sol. O que mais se destacava nela, no entanto, eram as enormes patas de aranha que brotavam de suas costas, os dois olhos extras, menores, logo acima dos principais, e as presas protuberantes que surgiam de seus lábios finos.

— Está tentando escapar? Hihihi... — Eu quase podia sentir a crueldade e o cinismo escorrendo de sua risada como veneno. — Ora, vamos, você não pode ir embora; o jantar já está quase pronto.

Eu fiquei paralisada. Queria me mover, mas era como se meus músculos tivessem morrido. Senti o fôlego faltar enquanto fitava aterrorizada os quatro olhos da criatura me examinando com desejo animalesco. Ela se mantinha suspensa do chão através das patas e eu pude sentir cheiro de carne podre emanando de sua boca. E toda a esperança que eu tive, por um momento, de voltar em segurança para a minha casa, esvaiu-se completamente quando senti, em minha bochecha direita, minha pele arder em contato com a saliva ácida da mulher.

— Kikui!

Ryōtarō-san gritou e tentou se aproximar, mas, sem demonstrar incômodo algum ou desviar o olhar de mim, a Jurōgumo o apanhou com duas patas livres, ergueu-o no ar e arremessou-o a alguns metros. Ele bateu contra o chão, e por já estar ferido e fraco, desmaiou.

— Lido com você mais tarde, jovenzinho... — Ela sibilou virando o rosto para ele. — Não é como se você fosse conseguir andar nesse estado.

E riu, visivelmente se divertindo com a situação, cheia de si devido à atmosfera de medo e desespero que imperava no local.

“Mexa-se, Makoto. Mexa-se agora.”

Uma voz, em algum lugar no fundo de mim, disse para eu me mover. Eu senti meus músculos retornando ao meu controle. Eu não fazia ideia de quem era aquela voz — se era apenas um delírio meu, perante uma situação traumática, ou se eu realmente havia ouvido alguma coisa —, mas, o que quer que tenha sido, fez eu retornar ao mundo real e ser capaz de me mexer de novo.

Olhei para o lado e reparei que o isqueiro ainda estava na minha mão; preso entre os dedos como um tesouro precioso. Em um movimento rápido, acendi-o e empurrei-o na direção da face do monstro que estava, naquele exato momento, voltando a atenção para mim.

A Jurōgumo urrou como uma besta ao ter uma bochecha queimada e recuou o suficiente para que eu pudesse me arrastar para longe dela. Corri, em direção ao grupo de árvores onde outrora eu estivera escondida vigiando o covil da criatura, e olhei para trás para ver onde ela estava.

— Eu vou rasgar você, sua menininha atrevida! — Berrou.

Vi-a apoiar todas as patas no chão e se pôr a correr para mim. Estávamos indo para o lado oposto ao que Ryōtarō-san estava, propositalmente, e eu fiquei feliz em ser capaz de mantê-lo longe do foco do problema. Continuei em disparada, me esgueirando por entre as árvores da floresta, com toda a força que meu corpo ainda tinha. Eu podia ouvi-la atrás de mim, saltando de um lado para o outro, de árvore em árvore, emitindo insultos e berros que me faziam lembrar que, apesar do disfarce que comumente usava, ela nada tinha de humana.

Olhei para trás, bem a tempo de vê-la a poucos metros de distância, no exato instante em que lançou um jato de teia de aranha que por pouco não me acertou. Eu ziguezagueava em direções aleatórias, raspando as vestes nas árvores enquanto respirava ofegante, tentando despistá-la. A aranha não desistiu, continuou me perseguindo incansavelmente, e lançou, por fim, um novo jato branco que, graças à matemática selvagem utilizada por ela, eu não seria capaz de desviar.

Fiquei observando a substância se aproximar de mim como se acontecesse em câmera lenta, enquanto o cansaço se abatia sobre o meu corpo novamente, mas o impacto de alguma coisa grande batendo contra mim interferiu — e muito — na minha trajetória retilínea e me arremessou para o lado.

— Você é idiota? — Meus olhos se arregalaram com a voz familiar. — Não fique aí parada, olhando para o tempo, mova-se!

Meu rosto se iluminou, e eu senti meu coração de encher se alegria, quando vi as feições felinas de Aomaru. É impossível descrever a sensação de conforto que me tomou. Suas esferas de fogo azul o circundavam e brilhavam como estrelas à noite, crepitando com hostilidade e sutileza ao mesmo tempo. Reparei que ele tinha um ferimento na pata esquerda, pois ela sangrava.

E foi ali, quando eu finalmente parei, que me senti sendo empurrada violentamente em direção ao chão.

— Oy! — Ele veio até mim e me apoiou com seu corpo peludo. — Agora não é hora de dormir; depois, você vai ter todo o tempo do mundo.

Fiquei zonza por um momento, apesar da visão embaçada, eu consegui perceber a Jurōgumo se aproximando de nós, todavia, logo em seguida, senti meu corpo ser erguido e apoiado sobre o do gato de tamanho anormal.

— Segura firme. — Avisou-me.

Agarrei nos pêlos dele, assaltada pelo cheiro de cedro que tinha, enquanto o gato passava a correr. Minha cabeça sacudia, ao que o vento batia no meu rosto, e eu me permitia descansar por alguns ínfimos segundo sobre o corpo do meu companheiro que, com a determinação de seguir em frente, passou a resvalar sobre o solo do bosque.

Em pouco tempo, chegamos a uma clareira. Eu já estava mais desperta àquela altura e notei que estávamos de volta ao local onde tudo começara. O céu azul brilhava sobre nossas cabeças, o sol se escondia entre as nuvens e o cheiro da terra era ainda mais forte. Minhas vestes estavam sujas, um pouco rasgadas, mas eu estava viva.

— Despistamos ela? — Murmurei.

Antes que o Bakeneko me respondesse, no entanto, um jato espesso de teia voou de dentro da floresta em nossa direção e o atingiu. Devido à Lei da Inércia, fui arremessada logo à frente, perto de um enorme carvalho, enquanto meu companheiro se remexia freneticamente. A substância era pegajosa, fedia, e quanto mais ele tentava se libertar, mais ela se espalhava e se fixava sobre o seu pêlo.

A Jurōgumo surgiu mais uma vez; caminhando, suspensa, sobre suas várias patas de artrópode. Grudou os olhos sobre minha pessoa e ignorou sumariamente o gato que gritava com ela, mandando-a ficar longe. Deslocou-se vagarosamente em minha direção. Ostentava um sorriso vitorioso nos lábios, embora seus cabelos estivessem ainda mais desgrenhados que antes, e eu já não tinha mais forças para revidar.

Ela me envolveu novamente com seus braços negros, apertando-me e me levando até bem perto de seu rosto animalesco, enquanto sibilava palavras ameaçadoras e balançava a língua em minha direção:

— Eu costumo me alimentar de homens jovens, pois, além de bonitos, eles têm muito vigor, mas você, mocinha... — Ela esfregou a língua molhada e áspera no meu rosto enquanto eu me debatia debilmente. — Você é muito corajosa. Foi a única que conseguiu escapar de mim mesmo que por um momento. E, para que não ache que sou esse monstro impiedoso, prometo que a devorarei o mais rápido possível.

E então ela riu, desconstruindo completamente a suposta misericórdia que afirmava possuir.

— Afaste-se dela, cortesã demoníaca! — Aomaru gritou.

— Ah, você é o próximo, maldito Yōkai imundo que ajuda humanos. — Vociferou para ele. — Agora fique quieto e não atrapalhe meu almoço.

Com a própria língua, que mais parecia uma lâmina afiada, ela fez um corte em linha reta no meu rosto que arrancou de mim um gemido de dor. Em seguida, raspou-a ali, molhando-a com o sangue que escorreu, lambuzando-se com o líquido escarlate, enquanto seu semblante se montava em uma nova definição de êxtase pleno.

— Ah, esse sangue, quanto tempo esperei para prová-lo novamente...! — Ela urrou, sorrindo, balançando freneticamente de um lado para o outro. — Ainda é dia, a lua se esconde no horizonte negro!

Ela começou a proferir frases sem sentido algum, parecendo ter algum tipo de reação, ao ingerir o meu sangue, que eu não entendia, tremendo em espasmos de prazer. Apertou o enlace que me prendia, lambendo-me sobre o corte recém aberto com ainda mais voracidade.

— Quem é você, criança? — Ela me perguntou enquanto eu voltava a me sentir tonta. — Você é a cria dele? Você é a cria do Guardião da Lua?

— Do que você está falando?

— Ele tem os cabelos brancos como a superfície da lua e a pele pálida como um Chawan imperial. — Ela confabulava sem sequer prestar atenção em mim; parecia estar em um tipo de transe. — Ele me deu de comer quando eu tinha fome, e me deu de beber quando tinha sede, mas ouvi dizer que se apaixonou por uma Peça Corrompida.

Ela esfregou o rosto no meu e me apertou até eu começar a sentir meu ar se esvair. Eu sabia que ela estava falando alguma coisa importante, sobre mim, sobre alguém ligado a mim, mas meu cérebro, que trabalhava em função do meu corpo exausto, simplesmente não processava como deveria.

— Você é o fruto proibido, não é, pequena criança? O fruto da traição... — Ela perguntou e eu tossi em resposta. — O Mensageiro dos Dois Caminhos, que sorte a minha! Se eu devorar você, serei capaz de senti-lo novamente em minhas entranhas.

— Mensageiro? — Falei entrecortada. — Do que você está...

Antes que ela pudesse responder, no entanto, foi atravessada por um tentáculo rígido e marrom. Aomaru usara seu fogo mágico para derreter as teias que o prendiam e, simultânea à queda da Jurōgumo, ele me apanhou com seu corpo e impediu que eu me chocasse violentamente no chão. A criatura hostil tinha uma expressão de aterradora dor na face, e gania como o animal ferido que não deixava de ser, antes de atingir o solo, remexer-se ao engasgar-se no próprio sangue, e então, finalmente, parar de ser mexer.

Só depois eu me dei conta — quando raízes vivas se juntaram à primeira e passaram a envolver, pouco a pouco, a Jurōgumo em um casulo — de que tinha sido obra da Jubokko. Estávamos aos pés dela. Observei o rosto de minha raptora desaparecer entre as ramificações enrijecidas da árvore com a qual, no mesmo dia, eu havia selado um pacto de ajuda mútua.

Vi o casulo se remexer com sutileza, e entendi que a árvore estava se alimentando do corpo da aranha, assim como fizera com o cachorro de Suzu-chan. Enquanto sangue escorria pelo meu rosto e o gato-monstro me ajudava a me encostar no tronco da Jubokko, eu travava uma difícil batalha contra meus sentidos que ameaçavam me trair.

— O que ela quis dizer com... — Tentei perguntar.

— Quieta. — Aomaru me repreendeu. — Obedeça-me, pelo menos uma vez.

Ele se aproximou do meu rosto e se pôs a lamber minha ferida. Eu não compreendia aquele ato, mas, envolvida por uma estranha sensação de alívio, permiti-me fechar os olhos e mergulhar, finalmente, no mundo dos sonhos.
As últimas palavras que vaguearam em minha mente, no entanto, foram proferidas pela voz da Jubokko:

— Ainda é muito cedo.


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Notas finais do capítulo

Sugestões, críticas? Super bem-vindos! Peço desculpas pelo tamanho do capitulo, passou um pouquinho da média, mas não consegui deixar menor. Eu também mudei a capa (eu também amo a antiga, mas é que essa tem mais a ver com a história) e gostaria muito de saber se vocês curtiram. E, a título de curiosidade, o próximo comentário sera o centésimo comentário da fic. Vou dar um prêmio especial! ♡♡♡ Além disso, criei um tumblr voltado pra história (eu tinha criado um blog, mas descobri que o tumblr funciona melhor pq vou poder compartilhar várias informações assim) e, se for do interesse de vocês em seguida, o link é http://komoshi.tumblr.com/ Sigam, pessoas, lá vou eu vou responder peguntas, postar imagens, trechos, novidades e vocês podem poder interagir e perguntar coisas diretamente para os personagens. :o~~ Até a próxima!