Contos da Montanha Shiroyama escrita por Makimoto


Capítulo 6
Capítulo 5 — “Eu conheço você.”


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente, tudo bem? ヾ(^∇^) É com orgulho que digo que dessa vez não demorei, hahah, então tô bem feliz. Eu particularmente gostei muito desse capítulo (não sei se vocês vão gostar) e acho que é um dos melhores que eu já escrevi. Aceito, no entanto, críticas e sugestões, pls, pois isso significa muito pra mim~! Chegamos à metade de YnM, aeeee! ~dança~ Em meu planejamento inicial, imaginei que a história seria composta por dez (10) capítulos corridos somados a um (1) prólogo e um (1) epílogo, totalizando doze (12) partes, e eu finalmente atingi essa marca. Eu me sinto muito orgulhosa de mim mesma, que sempre tive problemas para continuar coisas que eu começava, e eu tô me esforçando muito com essa história. Espero que gostem do capítulo e já adianto que os fãs da Suzu vão poder matar um pouco da saudade dela! ♥ Vamos ao glossário?

Itsumade :: Yōkai com corpo de cobra, bico, asas e rosto humano;
Yokai :: Como comumente se chama as criaturas sobrenaturais do folclore japonês;
Shisha :: Palavra que significa "mensageiro" em japonês;
Hashi :: Palitinhos de comer;
Yunomi :: Xícara, em forma de copo, onde se costuma tomar chá;
Samurai :: Guerreiro feudal japonês;
Katana :: Tipo de espada japonesa usada pelos Samurai;
Sepukku :: Ritual de suicídio que um Samurai pode cometer afim de "lavar sua honra";
Bakeneko :: Yōkai em forma de gato;
Jubokko :: Árvore Yōkai;

Boa leitura! ♥



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20 de junho, sexta-feira;

Exceto pelas chuvas rápidas que vez ou outra caíram sobre o vilarejo, simbolizando que estávamos prestes a atravessar o período mais úmido do mês, a semana anterior passara tranquila e sem nenhum acontecimento memorável. Eu acompanhei, à distância, mas com prontidão, a recuperação de Nakamura-san depois de seu acidente na horta, bem como o atrito mudo, e ao mesmo tempo gritante, entre ele e seu amigo traído; realizei, inclusive, breves atendimentos rotineiros para alguns aldeões, o que auxiliou-me, ainda que parcialmente, a conquistar a simpatia da comunidade local.

Quanto mais os dias discorriam, mais eu me sentia em casa. Havia uma estranha sensação de familiaridade me envolvendo toda vez que eu realizava tarefas domésticas ou simplesmente saía para caminhar. Não havia nem um mês desde minha chegada, e eu já experimentava um sentimento de pertencimento aprazível que se tornava mais profundo conforme eu dialogava com as pessoas, de modo a acentuar uma percepção que eu nunca tinha desenvolvido mesmo em meus vários anos habitando a capital do país.

Reflexões labirínticas vagueavam em minha mente e canalizavam, em uma débil tentativa de organização automática, tudo o que havia acontecido comigo desde o primeiro dia em Yamakura. Além dos eventuais problemas que exigiram de mim pensamento e resposta rápidos, foi apenas naquele momento que eu me dei conta de que muita coisa havia ficado solta no ar, ignoradas momentaneamente em prol da resolução dos casos, e que, juntas, pareciam fazer algum sentido.

De todas aquelas informações, entretanto, a que mais latejava dentro de mim era a que me havia sido entregue pelo Itsumade: no fatídico dia em que exumamos o corpo de um samurai falecido, afim de lutarmos contra seu espírito vingativo que havia se transformado em um Yōkai concreto, ele me chamou de Shisha poucos segundos antes de ter sido repreendido com o olhar por Aomaru. A dúvida quanto à acepção da palavra havia permanecido enraizada em mim. Não era um vocábulo comumente usado, pois já haviam outros mais modernos que substituíam sua função. Talvez fosse essa a razão de meu estranhamento, pensava eu.

Foi quando eu estava estendendo os cobertores nos varais do quintal, que sacudiam ao mínimo toque do vento, dispersa em minhas próprias fantasias, que eu notei uma silhueta diminuta atrás dos panos brancos. Pus-me na ponta dos pés para olhar por sobre a corda e deparei-me com o semblante inocente de Suzu.

― Makoto-chan, bom dia. ― Ela me cumprimentou com delicadeza.

―Bom dia, Suzu-chan. ― Repliquei no mesmo tom. ― Como está o seu pai?

― Ele está bem.

― Fico feliz em ouvir isso. ― Ela veio para perto de mim. ― Você veio se consultar?

― Não, na verdade, eu... ― Ela hesitou, ostentando feições apreensivas.

― O que acha de tomarmos chá enquanto você me conta o que aconteceu?

Ofereci a ela um sorriso amigável, para que se sentisse confortável, e apontei a casa com a cabeça. A menina, que trajava vestimentas simples, fitou o chão por alguns instantes. Pressionando os lábios, e esfregando os dedos sujos dos pés um no outro em visível inquietação, aceitou minha oferta e permitiu que eu a conduzisse para o lado de dentro.

Depois que nos acomodamos, perguntei à ela se estava com fome, e recebi um aceno positivo, porém tímido, que confirmou minha indagação. Dei-lhe um pouco de chá com legumes em conserva, pois era o que eu pretendia servir para mim mesma. Notei que a todo momento ela demonstrava estar aflita com alguma coisa, e por vezes parecia que queria falar sobre isso, porém não me atrevi a perguntar e resolvi deixá-la a vontade para que se abrisse naturalmente.

― Nós não nos vemos há algum tempo. ― Comentei, no intuito de puxar conversa. ― O que tem feito?

― Nada demais. ― Ela respondeu prontamente, demonstrando familiaridade com o assunto, ao mesmo tempo em que levava uma rodela de cenoura à boca com os Hashi. ― Tenho brincado com as crianças da vila, você sabe, o verão é divertido.

― Gosto do verão, apesar de preferir o outono. É a sua estação favorita?

― Sim, é sim. ― Suzu sorriu. ― É ensolarado e gostoso. Eu costumo passear com o Shiro e...

De súbito, a expressão no rosto da garotinha se desmanchou. Eu depositei sobre a mesa o Yunomi no qual eu tomava chá ― que havia sido um presente de minha falecida mãe ― e voltei-me inteiramente à observá-la. Seus olhos miúdos fitavam o próprio colo, onde as mãos roçavam uma na outra, e foi só depois de um minuto inteiro, que pacientemente aguardei, que ela decidiu exteriorizar o motivo de sua ansiedade.

― Makoto-chan, existe alguém especial para você? ― Ela me questionou em tom de sussurro. ― Alguém que sempre a deixa feliz só de estar por perto?
Precisei de alguns instantes para responder a pergunta, visto que imagens de minha mãe, acamada, mas com um sorriso radiante no rosto, povoaram a minha cabeça.

― O que aconteceu? ― Insisti.

― Ajude-me... ― Ela rogou enquanto erguia a cabeça sutilmente. ― Ajude-me a achar Shiro-kun, por favor!

Franzi o cenho, espantada com o semblante preenchido de intensidade que acompanhara seu pedido. Então, apoiei minha mão em seu ombro, com o objetivo de reforçar a minha presença, e ela ergueu os olhos para me encarar diretamente quando perguntei-lhe, novamente, o que havia acontecido.

― Meu cachorro desapareceu. ― Ela começou. ― Ele costuma sair sozinho, sim, e passa horas correndo solto por aí, mas sempre volta para casa no final do dia. Eu o procurei por toda parte, mas nem sinal dele. Meu pai disse que ele só está perdido e que logo voltará, mas... ― Ela calou-se por um instante e então recomeçou: ― Eu tenho um mau pressentimento sobre isso.

Percebi seus olhos marejados, e como ela precisou fazer força para abafar seus soluços. Suspirei, enquanto procurava pelas palavras certas, mas logo a voz aguda da mais nova tornou a preencher o ar.

― Eu estou com medo. ― Balbuciou. ― E se aconteceu alguma coisa com ele?

― Eu tenho certeza que não aconteceu nada.

― Eu quero Shiro-kun. ― Afirmou em um tom choroso. ― Eu quero Shiro-kun aqui comigo!

― Não se preocupe. ― Murmurei com firmeza. ― Eu vou ajudar você a encontrá-lo e você verá que não havia motivo nenhum para ficar tão nervosa.

― Você promete? ― Ela ergueu o rosto angelical, adornado pelos cabelos castanhos, espetados e suavemente bagunçados.

― Eu prometo.

Depois de pegar o meu chapéu ― outro, pois eu ainda não havia descoberto o fim que o que eu tinha quando cheguei teve ―, e certificar-me de que Aomaru não estava em casa, afim de evitar uma interrogação desnecessária, juntei-me à minha jovem acompanhante e pomo-nos a caminhar pela área do vilarejo.

Visitamos, um a um, todos os lugares onde seu cachorro costumava brincar. Atravessamos a grande horta, cuja terra já havia sido esburacada por ele várias vezes, perguntamos às outras crianças e até alcançamos a casa de Ryōtarō-san; que, fiquei sabendo, era o local preferido do animal para urinar. Ninguém tinha boas notícias para nos dar a respeito do seu paradeiro, e eu notei a preocupação de Suzu crescer conforme andávamos sem descanso.

― Nós já procuramos por toda parte. ― Eu disse a ela quando paramos à sombra de uma árvore. ― Tem certeza que são apenas esses os lugares onde ele tende a ir?

― Sim. ― Ela suspirou com melancolia.

Ergui os olhos para o céu azul, permitindo que passassem por sobre as copas das árvores, e por fim repousassem sobre a montanha.

― Será que ele não foi para a montanha? ― Ela me perguntou de repente.
― É possível. ― Admiti. ― Quer ir dar uma olhada?

Suzu balançou a cabeça positivamente e, em passos apressados, então, nós nos colocamos na trilha principal cujo objetivo era ligar a montanha ao vilarejo.

A medida que nos locomovíamos, as árvores ao nosso redor ― que apareceram cedo em nosso caminho ― pareciam se aproximar mais e mais umas das outras. O solo era irregular, repleto de pequenas inclinações, e muitas vezes eu precisei auxiliar Suzu a subir e a descer delas. Não havia nenhum som senão os emitidos pela própria natureza, em uma orquestra quase mística constituída de cricrilos e zumbidos harmoniosos, e quanto mais nos embrenhávamos para dentro da floresta, mais a escalada se tornava árdua.

Berramos o nome do cachorro a todo momento, na esperança de ouvir um latido em resposta, porém nossa voz se perdia no silêncio profundo que envolvia o lugar. Repetimos o processo por cerca de uma hora, sem realmente perceber o tempo passar, e quando a fadiga começou a nos abater, mesmo sob os protestos e insistências da menina para que continuássemos procurando, eu propus que parássemos por um momento para descansar.

Sentamos sobre uma pedra ― eu em uma maior e Suzu em uma menor, ao meu lado ― e retomamos aos poucos nosso fôlego. Notei que a menina estava imersa em uma quietude preocupante, e que haviam nítidos traços de preocupação em seu semblante.

― Não se preocupe, Suzu-chan, nós vamos encontrá-lo. ― Reforcei, oferecendo a ela um sorriso amigável. ― Não vamos desistir até que isso aconteça.

― Certo... ― Ela suspirou.

Senti uma brisa fresca soprar por entre as árvores e balouçar os meus cabelos negros, concedendo-me uma sensação refrescante, ao mesmo tempo em que minha audição fora preenchida pelo chilro esganiçado de corvos que notei sobrevoarem a área. Acompanhei com os olhos o bater das asas negras dos respectivos pássaros, que se cruzavam no céu acima de nós, e me distraí por um instante.

Foi quando eu ouvi uma voz.

“Querida, eu já disse, é apenas a sua imaginação.”

O tom era macio e doce, quase sobrenatural, e eu imediatamente voltei a minha cabeça para a direção aleatória de onde o som estava vindo ― algum lugar entre as árvores ―. O que me assustou, entretanto, não foi a forma abrupta com que ocorreu, ou o fato de aparentemente só eu a ter ouvido, mas sim a familiaridade que eu detectei na voz logo no primeiro instante.

Era a voz da minha mãe.

“Você deve ser a única criança que tem medo de brincar no mar.”

Quando a ouvi novamente, os resquícios de dúvida que ainda restavam dentro de mim se esvaíram. Ergui-me, apertando os olhos afim de enxergar através da densidade da floresta, e dei passos inconscientes em uma determinada direção. Eu não sabia explicar o motivo, e nem tinha certeza se acreditariam em mim caso eu tentasse, mas era como se alguma força invisível me dissesse, e me impelisse, a ir naquela direção. Havia um cheiro agradável de cravo também.

Eu já não ouvia a voz da minha mãe há muito tempo, e foi só naquele instante que me dei conta de que já havia quase esquecido como soava. Ela costumava falar com altivez, embora seu tom fosse bondoso e amável, o que sempre me deu a impressão de que ela devia ter sido alguém a frente do tempo. Em nossa casa nunca houve muitas regras, nem tínhamos o hábito de fazer certas coisas que pareciam simplesmente naturais para todo mundo, e eu me recordava de algumas ocasiões em que meus colegas da escola insinuaram que ela tinha um caráter duvidoso pelo simples fato de não existir uma figura paterna dentro de casa.

Eu amava o sorriso dela ― mesmo o que envergava quando eu fazia alguma coisa desajeitada ― e era incapaz de entender, com a idade que eu tinha quando ela faleceu, porque sempre parecia feliz. Ela me contara que meu pai havia morrido há muito tempo, mas eu nunca a vi triste ou deprimida por não tê-lo por perto. Isso me confundia porque por vezes eu pensava que ele devia ter feito alguma coisa muito ruim para que ela não parecesse sentir falta dele.

Quando me dei por mim, havia atravessado o curto trecho da floresta que nos separava de uma enorme clareira. Eu podia ver o céu mais uma vez, bem como os mesmos corvos de antes, e a estreita trilha que nós seguíamos continuava alguns metros à frente. O que me chamou a atenção, no entanto, foi uma enorme árvore exatamente no centro da área aberta.

Assemelhava-se a um salgueiro comum, de tronco seco e galhos retorcidos, porém suas folhas exibiam, ao invés do verde exuberante característico da espécie, uma coloração sutilmente avermelhada. O tamanho e a curvatura sugeriam que era uma árvore velha. Estava isolada, distante de todas as outras, e eu quase era capaz de sentir uma aura mística ao seu redor.

“Você nunca estará sozinha.”

A voz da minha mãe ecoou mais uma vez e eu percebi que vinha da direção da árvore. Eu me sentia inebriada e não tivesse escolha a não ser prosseguir. Meus pés se moveram sozinhos, executando os primeiros passos, mas instantes depois eu senti alguma coisa puxar a minha blusa e, por um efêmero instante, o clima hipnotizante se desfazer.

― Makoto-chan? ― Era Suzu quem me segurava. ― Está tudo bem?

Pisquei os olhos seguidamente, como se tivesse despertado de um transe, e já não havia mais nenhum som. Fitei a menina, que exibia feições de genuíno zelo para comigo, e afaguei carinhosamente seus cabelos castanhos para que ela entendesse que estava tudo bem. Havia em meu peito uma profunda sensação de alívio, mesclado a um desolamento amargo, que eu não sabia de onde vinham.

De repente, percebi uma das aves de outrora sobrevoando a árvore até quase tocar em seus ramos mais altos. Seus rasantes agitavam as folhas do cume e as sacudiam. Instantes depois, para a minha surpresa e a de Suzu, o assistimos desabar e cair endurecido no chão próximo à base do salgueiro.

A menina agarrou-se ao meu braço, demonstrando estar com medo, e eu fui me aproximando devagar, em passos curtos e cautelosos, da árvore em questão. Passamos pelo corpo do corvo ― depois de eu dizer à Suzu para não olhá-lo ― e paramos na sombra. A terra em torno da base parecia ter sido remexida há pouco tempo. A atmosfera lá embaixo era sufocante e rarefeita, como se o oxigênio existente estivesse sendo sugado. Logo, tive a impressão de que o cheiro bom que eu sentira antes, e que me atraíra para lá, havia se transformado em um odor desagradável.

― Shiro-kun? ― Ouvi a voz de Suzu e voltei-me para observá-la.

Encontrei-a fitando o chão, de cócoras, remexendo em alguma coisa no chão. Estiquei-me por cima de seus ombros, tentando ver o que ela tinha encontrado, e arregalei os olhos quando deparei-me com o corpo morto de um cão branco.

― Shiro-kun, o que você tem? ― Ela pressionou os dedos sobre sua barriga rígida e empurrou-o com sutileza. ― Vamos, acorde, estive procurando você por toda parte.

Ele estava deitado sobre a terra, ainda de olhos abertos, com a língua pendurada. Sua pele tinha um aspecto enrugado, endurecido e cadavérico. Eu não tinha dúvida de que estava morto, era possível deduzir com apenas um mirar, mas Suzu continuou chamando por ele como se fosse surtir algum efeito.

― Shiro-kun...

Eu estava prestes a abordá-la, no intuito de explicar a natureza da situação, quando senti alguma coisa pingando no meu ombro. No instante em que foquei os olhos no local, vi que era um líquido vermelho e viscoso.

Olhei para cima e meu semblante encheu-se de espanto quanto vi que havia sangue escorrendo das folhas daquela árvore, que, de perto, tinham uma aparência grotesca. Eram serrilhadas, como os dentes de um animal selvagem, e tremelicavam apesar de não haver vento algum. Meu coração palpitou e um pressentimento ruim tomou o meu corpo em ondas que me impeliam cada vez mais a simplesmente ir embora.

― Suzu-chan, nós temos que sair daqui. ― Eu disse, em baixo tom, enquanto ouvia a folhagem balançar ao som da minha voz. ― E rápido.

― Mas Shiro-kun, ele...

― Agora.

Ela se levantou, esfregando as mãos sujas de terra nas próprias vestes, e olhou para mim como quem esperava orientação. Eu sussurrei para que ela calmamente se afastasse em direção da trilha e, independente de ter compreendido ou não a gravidade da situação, ela me obedeceu. Acompanhei seus pés finos se projetarem suavemente para o lado oposto ao que nós estávamos, porém, abruptamente, o que parecia ser um apêndice serpentinoso e marrom arrebentou o solo e agarrou a menina bem diante dos meus olhos.

Precisei de algum tempo para perceber que não eram tentáculos, mas sim ― por mais bizarro que fosse ― as raízes da árvore. Agarraram Suzu pelo quadril, envolvendo-a, e foi nesse momento que eu entendi que a voz que eu tinha ouvido, de alguma forma, tinha sido projetada pelo próprio salgueiro. E não havia nenhum meio cujo qual justificaria tal habilidade se ele não fosse, por si só, um Yōkai.

― Makoto-chan, o que está acontecendo? ― A menina berrou em desespero. ― Eu não consigo sair!

― Eu vou te...

Eu havia voltado o corpo para ela, e dado um passo para a frente, quando outra raiz brotou do solo e me apanhou. E então outra e outra. Eu já não era mais capaz de mexer os braços, muito menos as pernas, e tudo o que eu ouvia eram os gritos desesperados de Suzu. Debati-me e berrei, tentando me libertar, mas mais amarras surgiram e envolveram-me, lentamente, até que o meu rosto, e consequentemente os meus olhos, fossem cobertos por escuridão.

Não havia nada além de um breu profundo e infinito. Meus músculos estavam moles, relaxados, e a sensação que eu tinha era que eu estava adormecendo. Eu era capaz de ouvir o canto distante dos corvos. Em algum lugar, havia uma voz que me dizia para acordar, mas eu questionava inutilmente como poderia fazer tal coisa se meus olhos já estavam abertos.

Formas indefinidas arquitetaram-se aos poucos em meu campo de visão, movendo-se em uma dança desordenada, confundindo minha mente. De repente, um clarão irrompeu e afastou as trevas. Senti como se estivesse emergindo, e então, como em um passe de mágica, eu me vi cercada pelas árvores de um bosque desconhecido.

Olhei ao redor, mas não vi ninguém, sem sinal algum de Suzu ou do estranho salgueiro. Apesar do palpável, havia um quê de superficial nas árvores que me cercavam, pois eu não ouvia nenhum som ― nem mesmo das folhas balançando ou de insetos comuns em lugares como aquele ― nem via qualquer animal. Todo o local parecia uma pintura desbotada pelo tempo, e a medida que eu caminhava através dela, mais a sensação de desolamento que aflorava o meu peito se tornava intensa.

Em certa altura, avistei, ao longe e ao lado de uma enorme árvore muito parecida com a que eu tinha encontrado antes, um grupo de homens trajando vestimentas de guerra. Deduzi serem Samurai em detrimento das Katana que carregavam. Formavam um círculo, ajoelhados no chão, e estavam envoltos por um silêncio respeitoso.

― Vocês estão certos do que estão prestes a fazer? ― Um deles, que parecia ser o líder, elevou a voz. ― Foi uma decisão que eu tomei, para mim mesmo, mas vocês não precisam fazer o mesmo.

― Nós estamos com você, Takeuchi-san. ― Um segundo retrucou. ― Preferimos partir com honra do que definhar e morrer de fome.

― Essa batalha já acabou, e não há saída para nós além da morte. ― Um terceiro disse, pondo fim à discussão. ― E, se é assim, gostaríamos de fazê-lo com um pouco de dignidade.

Todos balançaram a cabeça em sinal positivo, concordando com as palavras ditas, e, após alguns segundos de meditação contemplativa, sacaram as espadas: o deslizar das lâminas provocou um conjunto de ruídos agudos, embora harmonioso, que se fundiram até formarem uma única e perfeita melodia de aço afiado. Mantendo-me oculta sob a proteção da floresta, tive noção, em algum lugar dentro de mim, do que estava prestes a testemunhar.

Em um movimento veloz e sincronizado, os guerreiros empunharam suas lâminas e conduziram-nas em direção ao próprio tronco. Retalharam a si mesmos, sem grunhir ou urrar, permitindo que o sangue escorresse e penetrasse o solo embaixo deles em uma cerimônia real de Sepukku. Eu os assistia horrorizada, até que, sob a sombra borrada do salgueiro que os resguardava, cada um deles desfaleceu sem vida.

O fim do espetáculo sanguinolento viria a seguir, quando observei, estupefata, o sangue, que outrora percorria as veias pulsantes dos espadachins, ser bebericado e sorvido pelo solo. Assim, a folhagem do salgueiro espontaneamente coloriu-se de carmesim, conforme as raízes abaixo banhavam-se no líquido escarlate, feito um animal morto de sede no deserto.

Subitamente, abri os olhos. Ainda estava escuro, mas eu sabia que o sol brilhava fora de minha prisão porque resquícios de seus raios passavam pelas falhas entre as ramificações. Eu já estava ficando sem oxigênio. Usei as mãos para bater contra os galhos, afim de arrebentá-los, repetindo a mesma ação dezenas de vezes, até ser capaz de quebrar o topo do casulo que me encarcerava.

― Eu conheço você. ― Uma voz de fonte desconhecida, grave e mesclada a um eco etéreo, ressoou ao meu redor.

― Quem é? ― Perguntei, interrompendo minha fuga, sem saber ao certo se eu deveria.

― A questão não é quem eu sou. ― A voz continuou falando. ― Mas quem é você.

Eu tinha certeza que pertencia à árvore, apesar de não entender de onde vinha aquela certeza, ou por qual razão isso não me amedrontava. Havia uma estranha sensação que tomava conta do meu corpo, fazendo-me sentir que eu sabia exatamente o que eu estava fazendo; uma emoção totalmente inédita para mim.

― O que quer dizer?

― Vejo perplexidade e pavor no seu coração. Posso senti-los toda vez que minhas raízes tocam você, e isso a perturba. Você não entende o que está acontecendo com você desde que chegou a este lugar, mas tem certeza que há uma razão por trás de todos os ocorridos recentes.

― Como você...

― Eu posso ler os sentimentos mais profundos daqueles que tocam em mim.

Ainda era difícil para mim acreditar que eu estava conversando com uma planta, a matéria prima da qual eu fabricava os medicamentos que dava aos meus pacientes, mas eu já não tinha nada a perder há muito tempo.

― Você tem as respostas? ― Indaguei. ― Você tem as respostas para as minhas perguntas?

― Sim. ― A árvore disse. ― Mas não é função minha entregá-las a você.

― Por que não?

― Há desequilíbrio em seu espírito, uma falha em sua alma, que a aproxima de nós como se fôssemos semelhantes, e, simultaneamente, a distancia como um inimigo.

― E o que causou isso?

― A marca do crisântemo, deixada por seu pai, é a chave.

― Meu... pai?

Não importava o quanto eu gritasse, a voz da árvore havia desaparecido. Chamei-a inúmeras vezes, mas nenhuma resposta veio. Senti o impacto de alguma coisa do lado de fora, que parecia chocar-se com violência contra a casca de madeira, e ouvi meu nome ressoar sob uma voz grossa e firme.

― Makoto! ― Ele berrou. ― Onde você está?

Era Aomaru.

― Aqui! ― gritei com toda força que restava em meus pulmões. ― Eu estou aqui!

Olhei para cima e vi o rosto do Bakeneko ― ou uma parte dele ― no pequeno buraco que eu havia aberto e me senti estranhamente aliviada. Depois de olhar de volta, o gato-monstro usou suas patas para arrebentar os galhos de árvore que me prendiam para que eu finalmente fosse capaz de retornar à superfície.

Olhei ao meu redor, procurando por Suzu com desespero, quando a vi deitada no chão a alguns metros de mim. Corri até lá, debruçando-me sobre seu corpo, e sacudi-a com delicadeza. Em meio ao turbilhão de sentimentos e informações aos quais eu havia sido exposta, tinha quase esquecido que não estava sozinha naquela empreitada e que minha companheira estava sob minha responsabilidade.

― Suzu-chan, você está bem? Acorde!

Chequei o coração e certifiquei-me de que batia.

― Ela só está inconsciente. ― Aomaru, que agora se juntava a mim, falou em tom autoritário. ― Vamos sair daqui, rápido, antes que a Jubokko volte a nos atacar.

Sem questioná-lo, peguei a menina nos braços e nós corremos para longe do salgueiro no momento em que tornamos a ouvir seus ramos chacoalhando. Nós paramos quando alcançamos a trilha.

Voltei a cabeça para trás, fitando a árvore que, lentamente, recolhia suas raízes, e suspirei quando me dei conta de que poderia ter tido o mesmo fim que o cachorro branco que tínhamos vindo procurar. Minhas roupas estavam empapadas de terra e continham alguns rasgos sutis, bem como as vestes de da menina, e eu puxava ar para dentro dos pulmões, exausta.

Retornamos em silêncio pela rota da montanha, desviando das pedras e nos esgueirando por entre as árvores, enquanto eu alinhava meus pensamentos. Tudo havia acontecido tão depressa, e com tamanha veemência, que parecia não passar de um sonho efêmero, distante, sem sentido algum. Eu estava ciente, porém, que haviam detalhes demais para ser apenas uma coincidência, e que, cedo ou tarde, eu teria que voltar a pensar nisso.

Suzu, que a partir de determinado ponto estava sendo transportada nas costas de Aomaru, acordou quando já havíamos atingido os limites do vilarejo. Banhada pela luz do sol poente, a menina comportou-se com exasperação ao perguntar sobre o monstro tentaculoso que a havia capturado. Eu tentei acalmá-la, dizendo-lhe que estava tudo bem, que não havia monstro algum, e que havia sido apenas um sonho ruim.

― Onde está Shiro-kun? ― Ela me perguntou com os olhos cheios d’água.

― Ele está mesmo...?

― Sim. ― Eu disse, objetiva, mas com um pesar indescritível em meu peito. ― Eu sinto muito, querida. Ele provavelmente foi atacado por um animal selvagem.

Ela baixou a cabeça, pressionando os lábios trêmulos um no outro, e eu vi lágrimas transparentes descendo por suas bochechas fartas.

Eu quis, naquele momento, ter mais habilidade para lidar com o lado emotivo do ser humano. Desejei, com todo o meu coração, ter palavras de conforto para entregar a ela, mas, por mais que eu buscasse tais coisas em minha mente, não conseguia pensar em nada que pudesse aliviar a tristeza da morte de um amigo querido antes que uma tensão intolerável brotasse entre nós.

Foi então que ela me abraçou.

Arregalei os olhos, demonstrando surpresa, enquanto a jovem esfregava o rosto inchado em meus trajes surrados. Eu não sabia como agir, pois obviamente não tinha prática alguma para lidar com situações como aquela, em que não havia etiquetas da profissão para nos separar, e simplesmente apoiei minha mão sobre seu ombro ao passo que sentia um nó se formando em minha garganta.

― Tenho certeza que ele sabia que você o amava muito. ― Arrisquei. ― E, aonde quer que ele esteja, ainda se lembra disso.

― Obrigada... ― Ela murmurou em tom choroso. ― Por ter me acompanhado.

E, sem mais nada dizer, virou-se e partiu.

Observei-a se distanciar, até desaparecer de vista ao dobrar uma esquina no fim da rua, direção em que sua casa ficava, e suspirei longamente. Estava tão cansada que poderia sentar-me ali mesmo no chão. Meus joelhos tremiam, mas forcei-me a permanecer de pé.

― O que você estava fazendo lá? ― Aomaru interrogou-me, em um tom visivelmente aborrecido. ― Enquanto eu caminhava pela montanha, senti o seu cheiro, junto a um aroma de sangue e de ossos. Você poderia ter morrido.

Jubokko foi como você a chamou?

― Sim, é uma árvore Yōkai. ― O Bakeneko voltou o mirar para ela. ― Um dia foi uma árvore comum, mas, depois de ser exposta a uma grande quantidade de sangue humano, acabou se convertendo em um monstro. São muito raras.

― Ela preparou uma emboscada simulando a voz da minha mãe.

― É assim que elas atraem seres vivos perto o suficiente para que suas raízes possam enroscá-los. ― Ele respondeu. ― Por causa do sangue que elas absorvem, e dos sentimentos negativos embutidos nele, elas adquirem a capacidade de ver o que há de mais profundo em sua alma.

― E elas falam a verdade?

― Como assim? ― Ele franziu o cenho e olhou em minha direção.

― Ela me disse algumas coisas e por isso eu queria saber se...

― Ela falou com você?

― Sim. ― Soergui uma sobrancelha, sem entender o motivo de seu espanto.

― Tem certeza? ― Ele insistiu. ― Não foi a voz de alguém conhecido que ela estava imitando para te confundir?

― Não, era a voz dela. E embora eu não entenda como sei disso, bom, eu apenas sei. ― Repliquei. ― Mas por que pergunta isso?

― Porque nem mesmo os Yōkais podem ouvir a voz de uma Jubokko. ― Ele revelou-me com um ar de mistério.

Eu o encarei, esperando por uma solução para aquele enigma, mas não a tínhamos; nem eu, nem muito menos Aomaru.


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Notas finais do capítulo

O de sempre, pessoas lindas... críticas, sugestões e dicas de onde posso melhorar! ♥♥♥