A lenda dos amantes do Tempo escrita por Geovanna Ferreira


Capítulo 21
A história de Charlotte


Notas iniciais do capítulo

GENTEEE! DESCULPA A DEMORA! MAS ESSE CAPÍTULO FOI COMPLEXO E EXIGIU MAIS DE MIM! CHEGUEI A 105 PÁGINAS ESCRITAS DESSA FIC! ♥ HOJE TEM A HISTÓRIA DE UMA DAS PERSONAGENS MAIS CURIOSAS DA HISTÓRIA,É UMA HISTÓRIA AVULSA DENTRO DA HISTÓRIA! ESPEREM QUE GOSTEM E COMENTEM! AMO COMENTÁRIOS É UMA FORMA DE TER UM FEEDBACK! SABER O QUE TA DANDO CERTO E ETC!



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" Criança da selva

Nascida no vazio

Aprenda a viver sozinha

Aprenda a achar seu caminho na escuridão

Quem vai estar aí por você?

Confortar e cuidar de você?

Aprenda a ser sozinho

Aprenda a ser seu único companheiro

Nunca sonhe

Que no mundo lá fora

Há braços para abraçar você

Você sempre soube

Que seu coração esteve sozinho

Então ria em sua solidão

Criança da selva

Aprenda a ser sozinho

Aprenda como amar

A vida que você vive

Sozinho... "

Learn to be lonely - Fantásma da Ópera

Ela prendeu seu cabelo avermelhado num coque, alisou seu vestido, e olhou-se no espelho, com seus olhos verdes iluminados pelos raios de sol que vinham da janela, sorrindo em paz. Estava pronta para mais dia. E aquele com certeza seria especial.

A menina analisou ao redor, pensando no que devia fazer, o que estava fora do lugar e no que necessitava mexer para melhorar a sala. Logo o alfaiate chegaria e Olivia faria ali a última prova de seu vestido. O ambiente precisava estar impecável. Ela caminhou, reposicionando objetos, arrumando almofadas, pensando nos mínimos detalhes, ajeitando o local. Sentia dentro de si a euforia que tomava conta de toda a propriedade. Todos e principalmente ela trabalhava para que tudo fosse perfeito. Por Liv, que merecia nada menos que a perfeição.

Ela parou por um instante, sentindo o cheiro acolhedor de pão no forno, ouvindo o vai e vem de criados, extremamente grata por fazer parte daquilo.

À sete anos havia recebido a oportunidade de sua vida. Lembrava-se da manhã em que se espremera entre as grades do topo da escadaria do orfanato, junto às outras crianças imundas, curiosas sobre aquela senhora séria que falava com Madre Superiora, lá embaixo. O que queria? O que conversavam? Ninguém nunca ia os ver, nem recordava deles, de que existiam. Quando solenemente a Madre começou a subir as escadas, correram todos para seu quarto e lá ficaram, congelados de medo, até que ela chegasse e sem nenhuma outra palavra, chamasse seu nome.

A freira foi categórica: devia agradecer eternamente a Deus a chance única que ele lhe dava para eximir seus pecados, a redenção oferecida. Iria ser dama de companhia de uma garotinha pouco mais nova que ela, filha de uma das famílias mais ricas e nobres da região. Seu dever era servir, sem objeções, sem reservas, integralmente. Que nunca se esquecesse de quem era. Que fizesse morrer todas suas vontades e aspirações que não ser útil a senhorita Harrison. Ela assentiu e sem olhar para trás, fora embora, deixando a promessa apressada às crianças de que voltaria sempre para visita-los. Tinha dez anos quando entrara pela porta da mansão, tremendo, temerosa, e conhecera Olivia, uma menina pequena e bela, com ar de realeza, que podia ser bem difícil quando queria. Apesar da intransponível barreira entre elas, tornaram-se amigas instantaneamente. A órfã nunca deixou de demonstrar um dia sequer a imensa gratidão por ter saído do orfanato, para longe da fome, das noites geladas, dos piolhos, da sujeita, das roupas de segunda mão, surradas e cheias de buracos, do descaso. Ali, tinha seu lugar, sua função. Era alguém, a guardiã de Liv.

Ela concluiu que assim que a festa passasse, levaria uma cesta de maças ao meninos. Eles iriam adorar.

Vivien passou pelo corredor, se arrastando, com seu aspecto costumeiro de morta viva, parecendo não a dona daquela grande propriedade, mas um fantasma a solta. O mero ato de proferir o nome da mãe de Olívia era cercado de cuidado. Todos tratavam-a como uma frágil borboleta de asas de vidro. Um toque descuidado e se desintegraria. Vivia afetada, sabe-se lá porque, presa em sua própria mente, sendo discretamente louca.

Suspirou. Durante todos aqueles anos em que estava com a família, nunca vira Vivien de fato bem. Só parecia ter paz em alguns momentos, com a filha, ou quando estava sozinha. Era uma alma atormentada.

_ Charlotte! - alguém a chamava.

Madame Johnson. A governanta que comandava a dezenas de criados da casa.

Ela se endireitou e tranquila, aguardou que a mulher enfim chegasse à sala. Ao irromper pelo lugar e focar a jovem serva, o olhar de Madame se alarmou e ela perdeu sua inabalavel compostura. As duas moças que a acompanhava arregalaram os olhos e se entreolharam. Um segundo depois, a governanta havia fugido.

Charlotte averiguou preocupada o que causara aquela reação.

A marca.

Seu sinal de nascença em forma de estrela brilhava em seu punho, vermelha e mágica.

Ela se desesperou.

Como iria explicar aquilo? Sua pele, inexplicavelmente iluminada logo de manhã? Queria bater-se por se esquecer de por um vestido de mangas longas, por esquecer de que aquilo pudesse acontecer.

Charlie, como era chamada pelos pequenos do Lar St. Patrick, era para eles muito mais de que uma colega de orfanato, era quase uma mãe. Ela punha-os para dormir, trazia doces que surrupiava da feirinha da aldeia, os acalmava em noites de tempestade, fazia o impossível para tratar suas dores de barriga. Mas não fora por isso que Madre Superiora despachara a ruivinha sem pensar duas vezes, tremendamente aliviada ao receber o pedido de Joan Johnson. Assim que a menina chegara até as freiras, com poucos dias de nascida, elas logo viram que havia algo errado.

Nascera marcada pela besta. E nem todos os castigos torturantes, os trabalhos domésticos abusivos, as madrugadas passadas na capela de joelhos no chão frio orando por sua alma corrompida adiantariam, não faria sumir... sua magia. Na infância, enquanto a maioria das crianças crescia ao lado de uma família, Charlotte convivia com os olhares de repulsa e medo das religiosas, com os xingamentos, as ameaças, as palavras ásperas que se tornaram rotina, as sessões de exorcismos. Para elas, era abominável, além de órfã, além de miserável por natureza, ela era aquilo. Charlie tentava esconder seu poder, que insistia em aparecer, causando acidentes e pavor. Tentou por uma década manter-se longe dos olhos das irmãs, e quando caminhou para longe com Madame Johnson pensou na alegria de Madre Superiora e das outras, por se livrarem dela, do monstro.

Por minutos, ela ficou paralisada, ainda com a pele brilhando, incapaz de decidir seu próximo movimento. O que faria?

Manter a calma. A única opção viável. A festa de Olivia... não podia se dar ao luxo de falhar. Olhou pela janela, para o verde que cobria toda a vista, para Robert trabalhando no jardim. Esboçou um sorriso tenso, e com as pernas ainda tremulas saiu em busca de ar puro, de algumas flores para o quarto de Liv. Ao voltar, com sua pequena mão coberta por um ramalhete colorido, estava mais tranquila. Era quase como se o episódio apavorante jamais tivesse acontecido. Fitando as florezinhas, podia prever o quanto Olivia ficaria feliz com elas.

Ela seguiria pela casa nessa tranquilidade, se uma voz não a congelasse centímetros antes de entrar numa sala que dava acesso ao quarto de Liv

_ É ela! - alguém cochichou, com completo horror.

_ Tem certeza?

Charlotte meteu o olho pela fresta da porta e viu as criadas que antes acompanhavam Madame Johnson. Chegou a tempo de ver Harriet responder Daisy, em pleno desespero, como se acabasse de descobrir que possuía poucos dias de vida.

_ Sim!

Harriet encostou o punho na testa e comprimiu as pestanas. Tudo era cruel demais. Horrivel demais. O silêncio se colocou entre as duas mulheres.

_ É ela! E Madame Johnson percebeu! Eu me lembro... iniciou ela, sofrendo... – me lembro do dia que a coloquei numa cesta e a levei embora debaixo do nevoeiro, remoendo pelo futuro da pobre criança.

Mesmo sabendo que não devia estar ali, Charlotte espiava atenta, sem entender.

_ É uma desgraça!

Harriet e Daisy se olharam de modo tenebroso.

_ A estrela. – disse Daisy, fúnebre, como se enfim internalizasse o que a colega dizia. - Charlie é o bebê de Mrs Harrison! - completou, com um gritinho agoniado.

A órfã pregou suas costas na parede, sem respirar, sem chão, com olhos estufados, ouvindo as duas sem processar direito o que falavam.

_ A garotinha! Filha de dona Vivien!

_ Me partiu o coração abandoná-la naquele lugar imundo, naquele orfanato... tudo por causa daquelas coisas estranhas que aconteciam. – confessou Harriet.

A magia.

_ Trabalhando todos esses anos como empregada dentro da própria casa, como serva da irmã e da mãe que a abandonou... por ser apenas... diferente. E o pai... foi-se por não entender o que acontecia com a menina, por não conseguir perdoar a mulher por dar a luz a uma criança como ela... – lamentou Daisy.

_ É uma tragédia! Ela não deve saber nunca! – Harriet segurou a outra criada firmemente. - Me escute bem... nunca...

Antes que a frase fosse terminada, Charlotte disparou, doente de choque.

Filha.... abandonada... Vivien... Olívia..... as palavras a faziam perder a sanidade.

Toda sua verdade era uma mentira. Ela era uma mentira, uma enjeitada, uma condenada. O solo no qual corria desnorteada era amaldiçoado a seus passos. Era criminosa por percorrer a mansão, por ser uma bruxa. Charlie pensou em Vivien, na fragilidade que escondia... sua mãe. A mãe que simplesmente a descartara como se fosse algo estragado que merecesse ser jogado fora. A mulher que sofria sua atitude ao longo dos anos, que não conseguia superar o trauma de ter uma criança daquele jeito. Ela pensou em Olivia, em sua vida dos sonhos que no fundo sempre invejara. A vida que também era para ser dela e que lhe fora negada, roubada sem piedade em seus primeiros dias. Ela reviveu seu tempo deplorável de orfanato, a humilhação velada que houvera até agora, em se sentir grata com as migalhas que lhe eram oferecidas, em rodear Olivia, em anular-se para que seus dias fossem mais belos e ensolarados.

Era mais do que algum dia ela poderia suportar.

_ Charlie! - uma voz doce e radiante a chamou.

Olivia.

_ Filipe disse que virá ao baile!

Charlote parou. Podia vê-la atrás de suas costas, linda em seu vestido branco rendado, com as bochechas coradas, os olhos tomados pelo brilho inocente daqueles que nunca souberam o que é sofrimento, explodindo alegria por saber que o pequeno lorde pelo qual era apaixonada viria na festa que a mamãezinha daria para atender um capricho da filha escolhida. No rosto de Charlotte, transfigurado pela dor, lágrimas escorriam, indo até pescoço. Ouvir a voz da irmã fez sua fúria transbordar. De súbito pareceu muito errado que Liv vivesse.

Com o corpo carregado de ódio, ela virou-se, bruscamente, num ataque. O poder que saltou de seus dedos ergueu Olivia, lançando-a ao alto, violentamente, contra a parede. Um segundo depois Charlie focalizou a garota de braços abertos sobre o chão, as mechas de cabelo negro espalhadas, cobrindo sua face. Levantou a vista encontrou Vivien no vão que ligava salas, como uma assombração, fixa na estrela em seu pulso. Charlotte enfim percebeu a semelhança dolorosa, os mesmos fios vermelhos, os olhos claros, a solidão. O breve olhar compartilhado entre elas transmitiu toda sua repulsa, sua mágoa, e o principal, a certeza de Olivia merecia, sim, aquilo.

E então ela correu, indo embora sem nunca saber se Olivia, caída sobre o tapete, estava viva ou morta.

Por dois dias ela caminhou sem rumo, sem água, sem comida, sem se preocupar com os perigos aos quais uma jovem de dezesseis anos caminhando sozinha estava exposta. Passou a noite numa cabana abandonada a beira da estrada, desejando que um raio caísse bem em cima dela e acabasse com tudo.

Não havia para onde ir, nem a quem pedir ajuda ou como esquecer a verdade Ela estava em sua carne, em suas veias. Fugia, mas não adiantaria. Não havia nada nem ninguém. Estava sozinha, sempre esteve.

Andou até que tudo fosse anestesiado, até que parasse de sentir dor nos pés, fome, frio ou qualquer coisa. Caminhava agora num terreno elevado, tão longe da civilização quanto podia estar. Charlotte se aproximou do penhasco logo adiante e olhou os pássaros voando no céu alaranjado, as ondas se arrebentando nas pedras. Ela imaginou a água gelada vermelha de sangue e seu corpo acolhido pela escuridão do fundo mar.

Era o local perfeito para por fim em sua miserável existência. A vida era um lugar vazio e sombrio que não tinha nada a lhe oferecer além de sofrimento. Faria um belo favor a si mesma se matando. Como poderia continuar depois daquelas quarenta e oito horas?

Ela se posicionou cuidadosamente na ponta do penhasco. Fechou os olhos. O vento soprava com agressividade em sua face, fazendo voar mexas finas de cabelo.

Era o momento.

Deu o impulso e aguardou a dor dilacerante e logo após, o nada.

_ NÃO!

Charlotte sentiu braços a puxarem para trás.

Caiu sentada. Ela piscou repetidas vezes e visualizou uma moça.

Sua salvadora.

O que enxergou no rosto da desconhecida a impediu de correr para longe, e a assustou. Desespero, preocupação, e também uma centelha de esperança, uma pessoa realmente humana. Em suas roupas simples, Charlotte era claramente uma criada e a moça, vestida com tecido caro, alguém obviamente importante. E ainda assim a salvara, estava ali, preocupada com ela, com as mãos junto as dela.

Era aterrorizante que alguém se importasse.

Charlie se jogou em seu abraço e se permitiu chorar. Acolhida pela outra garota, buscou nela abrigo, forças, desabou sem receios em seu colo, cansada de ser forte.

_ Qual é seu nome? - perguntou a estranha com cuidado.

A ruiva não respondeu.

_ Bem, eu sou Kath, Katherine. – a garota deu um sorriso encantador e cheio de expectativa.

_ Eu sou... – Charlie pensou um instante - Maise, Maise Davis.

Por um milagre, havia sobrevivido. Mas a doce e rejeitada Charlotte estava morta.

O milagre chamava-se Katherine.

Katherine Watson a levou para casa. Cuidou pacientemente de suas feridas, até que conseguisse sorrir outra vez, até que acreditasse que também possuía o direito da felicidade. Viu em Maise a solução para sua solidão de órfã rica que morava sozinha numa enorme propriedade com dezenas de criados. Eles de início estranharam aquela desconhecida que sua jovem patroa misteriosamente trouxera para junto deles. Mas, com o tempo, acabaram se acostumando com ela. Sem se dar conta, naturalmente Maise assumiu o posto de ajudante da senhorita Watson. Ali não era a serva, a sem família, a bruxa. Era apenas Maise, e tinha seu lar.

Katherine.

Faziam tudo juntas, nadavam, passeavam pelo bosque, cuidavam do jardim, iam até a aldeia, tocavam piano, costuravam, liam, jogavam xadrez e damas. Dentro da propriedade, em seus dias com Kath, Maise possuía seu porto seguro, um lugar onde o passado não podia captura-la, nem ferí-la. Não precisava de nada além disso. Não queria nada além.

Muito se passara desde que Maise havia chegado. Era uma tarde amena e elas brincavam na grama com Prince, o labrador de Katherine. Num dado momento, sob os comandos de Maise, o cachorro derrubou Kath e a cobriu de lambidas. Depois de se recuperar de uma crise de riso, se ajeitando, ela disparou, brincando:

_ Sua bruxa! BRUXA!

A ruiva congelou. Seu sorriso sumiu.

Bruxa.

Fugiu. Deu as costas à amiga e começou a andar, nervosa.

_ O que aconteceu? - perguntou Kath, correndo angustiada atras da menina.

Maise virou-se novamente para ela. Olhou-a nos olhos, sem nada dizer, temendo sua próxima atitude. Concentrada, ergueu os braços e então uma flor do gramado foi parar atrás da orelha de Katherine. Quando a mesma olhou para baixo, viu que já não vestia o vestido bege e simples e sim um acetinado, cor de rosa.

Maise confessara o confessável, a raiz de toda sua dor.

Katherine a fitou com o rosto sério e quase a fez se arrepender do que fizera.

Estragara tudo?

Mas... logo seu semblante se suavizou e um sorriso apareceu, aliviando Maise.

_ Incrível! Como fez isso?

A bruxinha sorriu.

Só mesmo Kath para não acha-la um monstro. Para não se alarmar. Era tão pura, tão bondosa. A única pessoa realmente boa em todo o mundo, e a única que a importava. Sempre. A pouparia, não voltaria a dar indícios de sua magia e quem sabe, esqueceria disso. Seria melhor assim.

Numa noite de nevoeiro, elas escaparam para a antiga biblioteca de Mr. Watson em busca de um livro que as ajudasse a passar o tempo. Numa prateleira repleta de pó, encontraram um exemplar sem título, que não demoraram a descobrir se tratar de um conto fadas. Não um qualquer, mas uma história esquecida, nunca contada, amaldiçoada.

Já no quarto de Katherine sentaram-se no chão, perto da lareira e iniciaram a leitura.

_ Era uma vez uma jovem profundamente infeliz, a filha do moleiro. Seu nome era Cora...

Leram até a parte em que a pobre moça engravidava e dava a luz a criança de um impostor, um homem mal que a desgraçou sem dó, até que Kath cochilasse sentada, se despedisse e fosse dormir.

Maise tinha que continuar a ler, saber o que acontecia, provar que seu mal pressentimento estava errado.

Ela virou uma página com ansiedade, leu afoita a que vinha a seguir e então se afastou do volume, magoada.

O bebê havia sido abandonado, por não ser o bastante, por não poder ser o que sua mãe tanto queria, rainha.

Minutos depois, tomou coragem e voltou a história.

Talvez algo mudasse, talvez houvesse uma mísera esperança, ela repetia para si mesma.

Não haveria.

“ _ Seu nome é Regina. E ela será rainha... “

Maise empurrou o livro para longe e abraçou a si mesma, desolada.

Cora abandonara sua filhinha para que pudesse ter outra, da realeza, que merecesse ser amada, paparicada, criada como uma verdadeira princesa, uma que tivesse um futuro de ouro, cuidadosamente planejado.

Não era justo. A vida nunca era justa, nem nos contos de fadas. A semelhança entre ficção e realidade causava-lhe dor física.

A machucava, mas não conseguia desgrudar daquela história. Continuou a virar folhas, até chegar na figura de uma moça de olhos verdes tristes e cabelo cor de fogo, uma bruxa poderosa que comandaria a terra mágica de Oz, mas que trocaria todo seu poder por aquilo que lhe era mais precioso, e fora roubado: família.

Maise se espichou e tímida, olhou no espelho.

Tinham as mesmas feições, o mesmo olhar, a mesma tristeza incurável, a mesma história. Eram iguais.

Ela e Zelena.

Lá estava, na página seguinte. A rainha, a escolhida, aquela pela qual a irmã fora sacrificada, para que ela pudesse ter tudo.

Regina.

Tão parecida com Olivia, em todos os aspectos. Nos traços, na beleza morena, na pose de menina mimada malvadinha, no amor recebido.

Era simplesmente tão errado, tão doloroso.

Maise fez uma careta monstruosa. Fechou as unhas na palma da mão, fazendo-a sangrar. A página começou a pegar fogo. Sua fúria incendiou o livro. Ela assistiu Regina queimar pouco a pouco e ser destruída.

_ Maise!

Katherine acordou com o cheiro de fumaça. Saltou da cama e foi até a outra menina. Vendo a mão ensanguentada, buscou um lenço e o colocou sobre a palma de Maise. A convivência lhe ensinara que era inútil querer respostas. Por isso, nada perguntou, apenas a abraçou e deixou que chorasse enquanto as chamas consumiam as páginas.

Viveram três anos no paraíso, vivendo somente as duas garotas no imenso casarão, até que num belo dia o que parecia eterno começasse a se acabar. Katherine conhecera Patrick Bell. Um homem de Londres, duro e muito mais velho que ela, que fora ao interior buscar uma esposa adequada. Tratava-a com muita cordialidade e nenhum afeto. Desde o primeiro contato, deixou bem claras suas intenções: casamento. Uma obrigação que devia ser cumprida o mais rápido possível.

Ainda assim, Kath apaixonou-se perdidamente por ele.

E Maise se desesperou.

Dava-lhe náuseas pensar que aquele desconhecido saíra da capital para intrometer-se, para roubar sua Katherine.

Quando Patrick aparecia, disfarçava como podia seu nojo, desviando dele, evitando olhar seu rosto frio, sem conseguir deixar de ser desagradável quando tinham que se comunicar. Sentia dentro de si a urgência doentia de ferí-lo, de tira-lo de suas vidas, de aniquila-lo. Mas, algum senso de dever para com Kath a impedia de agir. De arrancar aquele intruso dali. O máximo que fazia era protestar contra a união. Sem sucesso. Num período de seis meses, Kath ficou prometida e chegara ao altar.

Dias antes do casamento a coisa toda ficou insuportável. A propriedade borbulhava diante dos preparativos. Maise estava atarefada e profundamente infeliz com a situação. Por isso mal conseguia controlar seu poder, que surgia por vontade própria, causando pequenos acidentes, vindo relembra-la de sua infame natureza.

Katherine fazia a última prova de seu vestido. Estava perfeito, do jeito que ela sempre sonhara. Pelo espelho, ela viu Maise murcha numa poltrona. Havia algo errado com ela.

_ O que acontece, Maise? - indagou, sorrindo.

_ Nada, Kath.

_ Pois se tem um problema, lembro-me de minha mãe me contar sobre uma lenda. Basta chamar o nome Rumpelstiltskin três vezes e ele virá em seu socorro! - disse, com o costumeiro tom brincalhão, tentando melhorar o astral da outra garota.

Mais tarde, ainda pensando sobre o que Kath dissera, Maise foi a biblioteca. Achou um livro sobre mitologia, leu tudo o que pode encontrar sobre Rumpelstiltskin. Decidiu invoca-lo. Uma parte de si dizia que era uma tremenda bobagem, lendas não existiam. Outra insistia que fosse em frente. Bruxas eram mito e no entanto, era uma delas. E justo por isso, sua vida fora desde sempre uma grande e elaborada tragédia. Se pelo menos pudesse se livrar de Patrick, fazer com que tudo fosse como antes... só ela e Kath....

_ Rumpelstiltskin... – sussurrou ela, com medo, de pestanas cerradas Rumpelstiltskin... Rumpelstiltskin...

_ Olá, querida.

Maise abriu os olhos repentinamente. Encontrou um homenzinho esquisito sorrindo maliciosamente a sua frente, em meio a penumbra.

_ Rumpelstiltskin?

_ Não... Charlotte, Charlotte...

Maise prendeu a respiração. Como ele sabia seu verdadeiro nome?

_ Já passou por tanto e ainda assim é tão tola, tão burra!

Ele claramente se divertia a suas custas. Ela não entendia nada.

_ Esta estrela que tem no braço...

Ela fechou os dedos em torno do pulso, assustada.

_ ... Não sabe que simboliza o mal que está em seu sangue, do qual não pode correr? Não entende que é a marca dos escolhidos das trevas, daqueles que pagarão pelos outros, dos condenados? Não sabes que é uma bruxa, um monstro?! Uma vilã e que vilões não tem final feliz? Porque se iludes pobres criança?

O rosto de Maise ardia e raiva e humilhação. Uma lágrima solitária escorreu.

_ QUEM É VOCÊ?

O autor. Mas ela não tinha como saber disso, ou de seus terríveis caprichos que arruinariam a vida dela e tantos outros desafortunados.

_ QUEM É VOCÊ!!!!?

No instante em que ela se impulsionou para frente, ele desapareceu, virando fumaça, levando todas as respostas.

Katherine estava parcialmente nua, somente em suas ceroulas, e já embelezada para seu casamento. Parecia uma fada, em suas vestimentas claras, com seu cabelo muito escuro emoldurando a face pálida e delicada.

Devagar, Maise se aproximou. Kath virou-se para ela, ainda sem o vestido de noiva, porém com o mesmo colado ao corpo. Maise reparou em cada detalhe: que a roupa deixava a mostra a pele macia, o ombro, a clavícula, o contorno provocante dos seios. Notou o cabelo para o alto, as mexas soltas atrás da orelha, os lábios rosados e cheios. Chegou ainda mais perto, tentada, ficando a poucos centímetros de distância do rosto de Katherine.

Como se desse conta de si, do que automaticamente fazia, Maise se afastou e caiu na poltrona.

_ Não se case com ele Kath, por favor, eu te imploro! Não! - suplicou, com a mão na testa, a ponto de cair no choro.

Katherine se ajoelhou diante da menina e pegou suas mãos.

_ Nada mudará entre nós, Mai, eu prometo! Ficaremos sempre juntas! Você é minha amiga, minha irmã, minha única família! Nunca se esqueça!

Maise não se convenceu.

Katherine Grace Watson casou-se com Patrick Friederick Bell no dia três de outubro de 1849, na própria propriedade da família Watson, contando com a presença de Maise, dos criados e de poucos conhecidos. Durante toda a cerimônia, a ruiva amargou em silêncio, incapaz de olhar para os noivos de braços dados, num sofrimento intenso e visível. Enquanto o padre falava, imaginou como seria a vida deles, os beijos, Bell a possuindo, a ferindo e sujando com seu corpo. Sua Katherine. Depois de tudo isso, ainda seguiu em viagem com o casal sem retrucar, os acompanhando em sua lua de mel, aguentando a travessia pavorosa do oceano até a América, chacoalhando no navio, perdendo noites de sono por ouvir os dois fazendo amor.

Os tempos infernais estavam de volta.

Odiou Nova Iorque, os costumes modernos, os americanos escandalosos, cada segundo longe da Inglaterra. Na volta, Patrick não demorou a voltar a Londres, ao trabalho. Casamento selado, missão mais que cumprida e encerrada. Para Maise, parecia que de alguma forma tudo voltaria a normalidade. Somente ela e Kath no casarão. Mas Katherine logo engravidou, para o desgosto de Maise, que considerava o bebê uma extensão horrenda de Bell, um parasita que debilitava mais e mais sua amada Kath. Vieram Nicholas e Bernard. Passaram-se os anos e junto deles foram embora a alegria e jovialidade de Katherine. Ela nunca foi a mesma depois do casamento, depois que constatara o abandono e o desinteresse que Bell reservava a ela. Maise o odiava ainda mais por fazê-la sofrer. Seguia ao seu lado, vivendo por ela, cuidando de suas crianças, a única coisa que dava a senhora Bell algum prazer.

Naquele dia, Maise ficou instantaneamente doente ao ver Patrick entrando pela porta principal. Um clima de festa de imediato se instalou por ali. Os meninos o rodeavam e ela constatou com uma pontada de inveja que por causa do marido Katherine parecia até mesmo mais viva. Quando eles saíram para a praia, alegres, como uma verdadeira família, ela ficou em casa, remoendo, assistindo-os resignada pela janela. Ao ver os garotos nadando, passaram-se coisas horríveis e tentadoras por sua cabeça. Lutou contra esses pensamentos até ver Bernard se fingindo de afogado e Patrick e Nicholas indo atrás do menino.

E se?

Ela movimentou imperceptivelmente os dedos e as ondas do mar, ao longe, ficaram mais violentas, engolindo os três homens que Katherine tanto amava.

Eles mereciam, ela tinha plena convicção. Mereciam, por roubá-la dela, por serem uma desgraça na vida das duas, por a impedirem de ter Katherine só para si. Nunca sentiria remorso algum. Ela só reorganizava as coisas do modo que nunca deviam ter deixado de ser.

Infelizmente, restou Bernard. Mas ela o desgraçou também, indiretamente com toda a culpa que transferira a ele. Acabou chegando a conclusão de que já tivera o bastante, o aturaria.

Quase vinte anos se passaram. Já morando em Londres com Kath, Bernard, Annabette e Eliza, Maise tentou desesperadamente salvar Katherine de sua doença misteriosa. Ela assistia a enfermidade devorá-la e por mais que tentasse, seu poder era inútil.

Magia das trevas não podia ser usada para o bem.

Ela não se afastou um segundo sequer de Kath, nem durante seus os últimas dias. Enquanto a mãe de Bernard já mal aguentava falar e manter os olhos abertos mas mantinha-se firme, Maise por sua vez agarrou suas mãos e chorou como a criança frágil e machucada que nunca deixara de ser e só permitia-se mostrar a Katherine.

_ Mai, não chore... – sussurrou Katherine com dificuldade.

_ Por favor, olhe em meus olhos.

Maise obedeceu e dirigiu seu olhar enxercado a outra mulher, esverdeada de doença, cheirando a caixão.

_ Prometa-me que cuidará de Bernard, de Liz e Annabette. Eles precisam de alguém que olhe por eles.

_ Prometo...

Silêncio pairou entre elas.

_ Eu te amo, Kath. Sempre amei...

Com mais uma torrente de lágrimas ela enfim confessou o maior de seus segredos, guardado por uma vida inteira. E então Katherine enfim morreu nos braços de quem mais a amara. Maise.

No momento em que colocara seus olhos em Regina, Maise percebeu algo errado. Algo que a fazia repelí-la, uma sensação assustadoramente familiar que lhe tomava quando a via, que a assustava. Uma manhã um pensamento súbito surgiu e explicou tudo. Trancada em seu quarto, longe de testemunhas, ela pôs para fora todo seu horror. Agora lembrava-se. Aquela desconhecida era idêntica à Regina do livro de sua adolescência. Eram como se alguém tivesse a usado como modelo para a rainha maldita do conto de fadas, e tivesse dado também seu nome a ela. Maise até conseguiu afastar temporariamente essa ideia maluca, mas não conseguia conter a velada angústia que a acometia ao vê-la.

Depois de dar um daqueles banhos diários na menina, Maise vestia Eliza quando a pequena começou falar coisas estranhas. Em qualquer outra situação a governanta teria considerado aquilo mais um dos comuns episódios de tagarelice da criança. Mas não. Suas palavras eram atômicas, logo explodiriam e fariam vítimas fatais.

_ Maise, você pode guardar segredo? Por favor! Por favor! Por favor!

Eliza não esperou sua resposta.

_ Senhorita Mills é uma bruxa! Acredita? Ela me disse! Mas é uma bruxa boazinha! Não é mágico!?

Maise levou um segundo para processar a informação.

_ Sim - respondeu, sorrindo cinicamente - é maravilhoso.

Bruxa.

Como não percebera antes?

Era isso. O que a fez a odiar desde o primeiro momento. Era uma feiticeira, suja, impura, um verme que devia ser exterminado.

Naquela noite derradeira, ao gritar a plenos pulmões escancarando a verdadeira identidade de Regina, o seu crime, esqueceu-se por um instante do seu. Assistiu deliciada seu desespero, orgulhosa por seu plano ter dado certo, pelos guardas terem chegado na hora exata, por saber que eles a levaria para prisão, e depois, direto para a morte. Como era glorioso vê-la encurralada, destronada, humilhada, no mesmo estado lastimoso no qual ela própria passara sua vida inteira. Presenciou o olhar de despedida entre Regina e Bernard com um sorriso aberto no rosto. Sentiu-se uma deusa, sentiu-se menos miserável, sentiu-se vingada por tudo que lhe fora tomado.

Se Maise tivesse gritado cinco minutos depois, os guardas já teriam desistido daquela insanidade e ido embora, Bernard a colocaria para fora e seguiria com Regina, normalmente. A prefeita teria encontrado a reversão do feitiço do tempo no dia seguinte e então o futuro se colocaria a sua frente como uma estrada florida a se caminhar acompanhada, com Bernard, Eliza, Henry. Sua família.

Mas tudo fora-lhe arrancado. Ela teve de pagar, por todos.

Por ser muito parecida com a rainha do livro, por ser dolorosamente semelhante a Olivia, por viver um amor verdadeiro, algo negado para sempre a Maise. Por ser uma bruxa, tal como a governanta que se odiava demais, à sua natureza mágica, para deixar que ela vivesse, que fosse feliz enquanto ela só tivera dor.

Bruxas mereciam a ruina, todas elas. Não eram dignas de viver

Regina sumiu. E restou em Maise o vazio, o gosto azedo e efêmero da maldade.

Ninguém dormiu naquela madrugada. Ficaram bem acordados, em choque, em cantos diferentes da casa. Eliza sentou-se frente a Maise, e seu silêncio, seus olhos esquizofrenicos repletos de acusação reacenderam uma centelha de humanidade, da velha Charlotte, que ainda resistia viva dentro da governanta.

O que fizera?

Acabara tornando-se o monstro que sempre fora acusada de ser, que tanto tentara combater. Traíra a pessoa que Kath acreditou que ela fosse.

Era o golpe final. Só havia uma saída.

Sem se despedir, sem carregar nada, ela saiu da mansão, deixou Londres. Andou por um dia inteiro, com uma ideia fixa em mente. Chegou ao penhasco, ao ponto exato em que décadas atrás Katherine a impedira de saltar e enfim pulara, foi ao encontro do único destino possível a ela, o que sempre esteve escrito para ela.

A morte.


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Notas finais do capítulo

Surpreendente? COMENTEEEM GALERINHA! :D