Caravaneiros do Limbo escrita por GlauSimões


Capítulo 3
Evil Walks


Notas iniciais do capítulo

Olá, hunters! Venho trazer um novo capítulo para vocês.

Muito obrigada pelos comentários! Cada um deles é único e especial. Também percebi que mais pessoas estão acompanhando Caravaneiros do Limbo. Isso me deixa muito feliz! :D

O capítulo de hoje é mais sombrio e esta é a primeira vez que escrevo algo do gênero, por isso, espero ter acertado na dose huhu.

Boa leitura! :)



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As paredes de pedras escuras da Alta Cúpula cederam espaço às paredes claras e a móveis de bom gosto, que já acumulavam uma fina camada de pó, em uma casa de verão localizada no interior de uma cidade do Tennessee. Isto por que ele não mais detinha o poder soberano e supremo do Inferno. No entanto, ocupava um cargo de influência cujas atribuições exigiam domínio na arte de influenciar com as palavras certas, manipular emoções e vender sonhos por um preço muito alto. Nenhuma delas era desconhecida e nova para o demônio de olhos escarlates, pois este era seu retorno ao posto de Rei das Encruzilhadas.

Crowley não previu a manifestação do demônio rebelde que se opôs ao seu regime de governo no Inferno. Ele banhou-se de Óleo Sagrado e ateou fogo no próprio corpo, mas algo sussurrou no seu ouvido que aquele protesto seria apenas o nascedouro de uma agitação das massas demoníacas, da qual resultaria sua queda como o Rei do Inferno.

Os amotinados se segregaram em diferentes grupos: aqueles que clamavam pela liderança de um dos Príncipes do Inferno, os Luciferianos e os outros, que desejavam criar seu próprio regime. Apesar das divergências a cerca do futuro sistema político, os rebeldes expressaram a decisão unânime de exilar Crowley do Inferno. Todavia, o astuto demônio os convenceu, com seu dom da lábia, a reassumir o seu antigo cargo de Rei da Encruzilhada. Reassegurar tal cargo era apenas uma estratégia para retomar o trono de Rei do Inferno.

Os relatos a respeito dos planos e protesto dos espíritos aprisionados no Limbo, desesperados por gozar do “descanso eterno”, chegaram aos ouvidos de Crowley, que se aproveitou da situação e arquitetou seu plano de lançar o programa de recrutamento dos espíritos transtornados presos ao Limbo para formar um exército de demônios.

Tal cenário caótico era o momento perfeito para por em prática sua estratégia de influir de forma tortuosa sobre a vontade de fantasmas empenhados em sua acrobacia mental para lidar com um conjunto de sentimentos confusos e amargos, deixando-os fragilizados, desequilibrados, e, sobretudo, propensos à manipulação para favorecem propósitos de outros sem perceberem que estão metendo-se em um engodo.

Os subalternos a Crowley foram incumbidos de treinar e transformar os primeiros espíritos coletados em demônios. Os demônios novatos receberam a missão de capturar o maior número que conseguissem de almas no Limbo e foram denominados de Coletores de Almas.

Crowley impressionou-se com o número de espíritos alistados, os quais formavam uma fila indiana e invisível aos olhos dos vivos em frente à casa do estilo Arte Beaux. A grande demonstração de interesse ao seu programa refletia o panorama em que o Limbo se encontrava. O demônio escocês se divertia com o fato de que muitas Madelaines e muitos Mathews estavam dispostos a aderir a um programa organizado pelo Inferno.

— Próximo! — berrou Crowley a plenos pulmões enquanto se acomodava em sua estimada poltrona talhada em mogno e com acento de veludo.

A maçaneta rotunda e dourada da porta foi envolta por uma fina camada de gelo e um delicado e gélido tapete formado por milhões de fractais perpassou por debaixo da porta, segundos antes de um espírito entrar no cômodo escoltado por um demônio. O espírito de olhos pequenos e inquietos estava desencarnado há algum tempo e demonstrava grande controle de suas faculdades, as quais foram desenvolvidas enquanto ele aguardava a sua vez de ser resgatado. No entanto, ela nunca chegou. Sentindo-se humilhado e tratado com descaso pelo Ser Supremo e criador de todas as coisas durante os longos meses em que permaneceu confinado ao Limbo, a ira e a mágoa maturaram em seu ego e traduziram-se em fractais de gelo que fluiriam de si em profusão de acordo com sua vontade. Ele apenas sentiu-se compreendido quando um homem de olhos negros lhe encontrou e fez uma proposta que logo se tornou em um acordo, quando o Coletor lhe garantiu que teria reconhecimento e prestígio infindáveis.

— Elijah. 42 anos. Falecido há seis meses bla bla bla – Crowley leu em voz alta uma ficha que um de seus assistentes lhe entregou. — Diga-me, o que lhe traz aqui?

— Eu quero provar que Deus não se importa com ninguém. Para Ele não há diferença se o mundo terminará devido à uma explosão nuclear ou ao aquecimento global. — o fantasma foi direto e Crowley se ajeitou na poltrona e encaixou o queixo entre os dedos de sua mão, concentrado nas palavras do homem.

— Por que ser recrutado é importante para você? — indagou Crowley.

— Eu cresci em uma família religiosa, mas desde jovem fiz minhas próprias indagações, porém as respostas às minhas inquietudes nunca foram respondidas de forma convincente. Minha família se afastou de mim por que parei de ir aos cultos. Tornei-me um dedicado pesquisador em busca de minhas respostas, porém nenhum das centenas de livros que li a respeito de diferentes doutrinas saciou os meus questionamentos.

— Família. Nos rejeitam na primeira oportunidade. — Crowley comentou ao se lembrar de sua mãe, Rowena, uma bruxa secular de mil faces e sorriso traiçoeiro.

— A solidão se tornou minha companhia. Vi muito sofrimento pelo mundo quando vivo, mas também vi dor depois de morto: uma legião de almas abandonadas e suplicantes. No fim, somos meros marionetes manipulados por um tireteiro em seu projeto cósmico. — o espírito continuou a expor sua história.

— Entendo. — disse o Rei da Encruzilhada arqueando as sobrancelhas.— Se Deus realmente fosse o grande aclamado Pai, ele não seria displicente e sairia de casa deixando a chave nas mãos de um filho emplumado ciumento e mimado, certo? — ele incitou.

— O que você quer dizer? — questionou Elijah.

— Eu quero dizer que você está certo. Os Portões do Céu estão fechados. — Crowley revelou, ansioso para observar a reação do candidato.

A temperatura do ambiente caiu subta e drasticamente. O vapor da respiração de Crowley espiralou de forma desordenada. Uma fina camada de gelo se alastrou nos vidros das janelas da sala como se tivesse vida própria. Um ruído anunciou o eminente estouro das vidraças que se fragmentaram em centenas de cacos cortantes.

— Garanto que este lugar irá trazer algum conforto a este seu coraçãozinho de gelo. — afirmou o Rei da Encruzilhada. — Guthrie!— ele chamou e um homem, cujo rosto anunciava a passagem do tempo, atendeu ao chamado. Guhtrie tinha cabelos brancos bem penteados e barba bem parada.

— Vossa Majestade! — inclinou-se em saudação ao Rei.

— Mostre-o o nosso programa de recrutamento. — solicitou.

— Conforme sua vontade! — Guthrie fez outro cumprimento e fez um gesto para que Elijah o seguisse.

Ambos pararam enfrente a uma porta dupla, protegida e vigiada por duas sentinelas. Antes de a porta ser aberta, um aviso foi dado: — Independentemente se você for aprovado ou não, tudo o quer for visto ou praticado além desta porta, deve ser mantida em absoluto e total sigilo. Do contrário, haverá conseqüências. — Guthrie informou.

Elijah anuiu. Ele ansiava por descobrir o que havia por de trás daquela porta da mesma forma que uma platéia deseja a abertura da cortina que anuncia o início de uma peça teatral. O espetáculo que se descortinou era macabro e o palco era uma ampla sala esquálida. A sala, chamada de Câmara da Tortura, era extensa e por isso dois tipos de treinamentos eram realizados no mesmo cômodo: os dos espíritos e dos demônios recém-criados. Um odor de sangue, ozônio e enxofre dominava o local.

Havia nesta sala, cerca de uma dúzia pessoas raptadas e presas à parede por grilhões que envolviam seus pulsos e tornozelos. Elas foram reduzidas a meros instrumentos para o treinamento dos fantasmas e demônios. As pessoas cativas apresentavam sinais de tortura, desde ferimentos de perfurações a mutilações. A maioria delas ainda respirava apenas por que havia um invasor no seu corpo, o qual aprendeu a dominar por completo sua mente e  corpo.

Sobre uma mesa auxiliar móvel de inox estavam dispostas várias ferramentas de tortura: seringas, sal, água benta e variados tipos de armas brancas, as quais eram manuseadas por novatos e aprendizes que executavam as sessões de tortura. Os métodos de flagelação eram inúmeros e criativos: seringas cheias de salmora, mistura que quando injetada na pele dos hospedeiros causava lentas e dolorosas lesões nos tecidos, enquanto outros dilaceravam a carne com punhais e facas polvilhadas com sal, provocando cortes borbulhantes que queimavam de dentro para fora.

— Qual é o propósito disso? — Elijah perguntou perplexo.

— O propósito é se tornar um demônio. Para isso, é preciso adquirir resistência aos métodos de expulsão, no caso dos espíritos, ou de exorcismo, no caso dos demônios recém criados. — o espírito percebeu que o traje de Guthrie, composto por um terno, era demasiado formal para a ocasião e ambiente.

Os candidatos às falanges que aceitaram serem treinados e colocados à prova de atrocidades, eram divididos em duplas com o propósito de realizar um rodízio de experiências: torturador em uma sessão, torturado na próxima e a lógica repetia-se sucessivamente até o final do dia.

Elijah observou cada movimento de uma díade de espíritos que compartilhava um hospedeiro um tanto rotundo para sua altura e de cabelos negros cacheados, cujas pontas cobriam-lhe os olhos. O torturador da vez colocou um punhado de sal na boca do hospedeiro ao ponto de estufar as bochechas. O espírito afligido com o cloreto de sódio tentou expelir a substância, porém não conseguiu fazê-lo por que sua boca estava selada devido ao poder de telecinese do torturador. Em menos de dez segundos, um vulto escuro de forma humana foi lançado para fora hospedeiro.

— Quais são as etapas do treinamento? — o espírito perguntou.

— Prove que você é um espírito merecedor e você ganhará uma passagem para o andar debaixo e será encaminhado ao Departamento de Registro, onde são feitas as matrículas dos ingressantes às falanges. Depois disso, você passará por um período de estágio no Inferno. — explicou o novo Torturador do Inferno. — Fique sabendo que esta é a etapa mais branda de todas. — ele completou.

Um pouco antes de Crowley ser deposto, Guthrie, leal conselheiro do ex-Rei, recebeu o cargo de torturador e continuou com tal função após a derrocada do reinado do escocês. Aproveitando-se da disseminação da anarquia no Inferno, Guthrie passou a atuar paralela e secretamente como treinador dos espíritos coletados no Limbo a fim de efetivar o programa de recrutamento e apoiar o retorno de Crowley ao trono real.

O demônio e o espírito percorreram o lado oeste da Câmara de Tortura, a zona onde o treinamento se encontrava em um estágio mais avançado. Os ali presentes já haviam se tornado demônios, portanto, enfrentavam sessões de esconjuro: uma voz em latim soava através de um sistema de som instalado no cômodo e seu efeito sobre os demônios recém-criados era visível. Eles berravam e se contorciam enquanto o ritual era pronunciado.Um dos demônios possuía uma adolescente de cabelos ruivos, o rosto fumegante repleto bolhas devido aos recorrentes banhos de água benta. Bastaram mais algumas palavras em latim e a garota vomitou uma espessa fumaça azulada, que serpenteou no ar e saiu pela janela flutuando vigorosamente de volta ao Inferno.

— Eu notei que estes não estão presos por grilhões como nas etapas anteriores. — Elijah não perdeu a oportunidade de mostrar seu interesse e perspicácia.

Um discreto sorriso de satisfação ameaçou surgir por debaixo do bigode branco feito neve de Guthrie : — ­Perfeitamente observado, no entanto, isso não significa eles possuem o privilégio de estarem livres. — os olhos castanhos direcionaram-se ao teto, onde estavam pintadas várias Chaves de Salomão com tinta negra, cada um posicionado sobre as cabeças dos demônios novatos.

— Durante o período em que você estiver no Inferno o seus conhecimentos sobre tortura serão aprofundados. Eu o treinarei e o ensinarei alguns truques de resistência a exorcismos e até mesmo os de total anulação do efeito do mesmo. — o demônio declarou.

Guthrie não desperdiçaria seu tempo descrevendo os gêneros de sofrimentos no Inferno dramatizados por diferentes crenças, pagãs ou cristãs, por dois motivos. O primeiro era pelo fato que basear-se nelas seria o mesmo que espiar por uma fechadura e vislumbrar um ambiente escuro e o segundo era por não querer arruinar o elemento surpresa.

— Algo me diz que eu devo questionar quais são as implicações das letras miúdas do acordo. ­— Elijah estreitou seus olhos cinzentos ao demônio, atento ao subentendido.

— Caçadores e outros de sua laia. Não é preciso se preocupar com eles, por que alguns dos truques farão o poema em latim, que eles adoram proferir, soar como meras palavras ao vento. Isso os enlouquece! — o demônio explicou, sarcástico.

Gradualmente, o assombro cedeu lugar ao fascínio e, por fim, a determinação dominou-o por inteiro. Uma pessoa em particular despertou o interesse de Elijah: era uma mulher de cabelos longos negros e sujos que recobrava a consciência após uma bem sucedida expulsão de um invasor de seu corpo. Seu peito arquejava e seus lábios estavam sujos de sangue fresco devido à ingestão de uma generosa quantidade de sal grosso. Elijah caminhou em direção da mulher que apresentava traços indígenas em suas feições, e não seria ousadia dizer que ela era descendente de um bravo cherokee. Ergueu o rosto magro, cujos ossos pareciam ansiosos para perfurar a carne, e olhou nos orbes quase vítreos como se quisesse que suas íris cinzentas fossem o último registro dos olhos castanhos.

— Você será minha! — ele avisou e então deslizou para o corpo da mulher.

Um urro distorcido mesclou-se aos demais. A mulher se retorceu e tentou levar as mãos ao rosto, porém as correntes curtas não permitiram o movimento. O espírito sentiu alguns cristais de sal crivados na garganta, causando uma dor excruciante. Duas mentes em um único corpo. Era difícil travar um duelo para comandá-lo, pois mesmo que ele estivesse fraco, a mente era relutante e dominá-la era tão desafiador quanto vestir uma roupa de número menor do que o seu. Ela estava lutando para não ser dominada de novo e quando ela começou a rezar, cuspiu a língua para fora. Elijah percebeu que havia vencido a luta quando sentiu sua hospedeira sufocar em sangue, dor e agonia. Por fim, um filete de ectoplasma negro escorreu do nariz até encontrar a lei da gravidade na ponta do queixo.


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