O pai de Ciel entrou em casa pálido e ansioso. Há não muito tempo havia escutado algo que realmente não era bom e correu à procura do filho para ter uma explicação.

O garoto estava brincando quando sentiu a chegada do pai. Sabia que ele estava irritado, não sabia como, mas sabia que era sobre ‘aquilo’. Correu para dentro de um baú de roupas no quarto e ficou escondido ouvindo o chamado de seus pais e rezando por Lothus para que não o encontrassem. Mas o que Lothus queria era diferente de seu desejo.

Estava num meio sono alerta à qualquer ruído quando ouviu a mãe entrar no quarto. Ela dizia ao marido que deviam colocar algumas roupas num saco e sair com o que pudessem carregar logo que encontrassem o garoto. A informação fez Ciel despertar do sono que sentiu seu lugar seguro terrivelmente ameaçado. Quando percebeu que não havia escapatória, fechou os olhos com força fingindo estar dormindo e rezou para que ela se apiedasse e o deixasse ali. Mas quando a mulher levantou a tampa do baú a ouviu gritar para o pai o tirando com urgência do meio das roupas.

– Eu não queria fazer aquilo! Eu juro, eu não queria! – Ciel se justificava entre o choro.

Mas os pais não ouviram. Pegaram as trouxas com roupas e antes de sair de casa, sua mãe havia brigado, o mandado calar a boca. E nesse momento Ciel calou a boca, pois sua mãe nunca havia mandado fazer algo daquela forma. Se afastaram do lugar o mais rápido que conseguiram.

Ouviram quando as pessoas se reuniram próximo da casa humilde e trataram de andar mais depressa. Fazia frio fora da casa, o inverno havia chegado, mas a urgência em se manterem vivos e, principalmente Ciel, era maior e por isso só pararam quando estavam fora dos limites da aldeia quando não viam e nem ouviam pessoas pisoteando a neve que começava a acumular no chão. Não demoraria para que esta formasse uma grossa camada e então suas preocupações seriam em torno de se manterem vivos no meio daquele mundo gelado.


Quando pararam o pai tornou a abordar Ciel lhe perguntando o que havia feito.

–Eu não fiz nada! -O menino voltou a dizer.

–Ciel, o que aconteceu? -A mãe lhe perguntou imaginando que o menino não tivesse noção do que havia acontecido. -Aquelas pessoas estão zangadas.

–Disseram que o filho do senhorio não sai daquele estado! Disseram que quando o encontraram desacordado você estava junto! O que você fez Ciel? - O pai perguntou desesperado.

–Eu não fiz nada! –Respondeu mais uma vez e um punhado de neve aos pés do garoto deu um pequeno salto com sua revolta.

Estava se sentindo injustiçado e nervoso. Por que estavam culpando ele?! Eles não sabiam o que tinha acontecido! E nem sabiam se havia sido ele mesmo quem tinha feito aquilo. A voz havia gritado em sua mente, mas quando percebeu o garoto estava em seus braços desacordado. Mas ele não tinha feito aquilo! Não tinha!

O pai de Ciel não acreditava naquelas palavras. Ano após ano eles se viam em situações inexplicáveis. Algo acontecia e Ciel estava no centro das atenções. Sabia que em algum momento algo mais grave poderia acontecer e rezava todas as noites para que nunca precisasse saber o que fazer se acontecesse.

Disseram que seu filho havia atacado o filho de seu senhorio. O garoto respirava e tinha os olhos abertos, mas não emitia um som, não movia um dedo. Nem um leve piscar, se quer havia uma fagulha de vida nos olhos do menino. Não era nenhum tipo de doença ou mal. O garoto era uma casca sem vida e Ciel estava novamente sendo acusado.

–Eu não fiz! Ele fez! -O garoto disse. -Ele disse que eu era um monstro! Disse que eu não devia ter nascido!

–Às vezes eu acho que não devia mesmo!! -O pai desabafou fazendo a esposa e o filho ficarem espantados. -Desde que você nasceu a gente não tem uma vida normal! Não paramos em lugar algum! Não temos amigos ou família para nos ajudar porque sempre que somos acolhidos você faz alguma coisa e temos que fugir!

“Para…” -o garoto pediu olhando na direção da voz do pai. Aquela voz lhe soara estranha. Modificada.

–Não diz uma coisa dessas! -A mãe pediu horrorizada pelo que ouvia. -Eu não me arrependo em momento algum de sair de onde for para proteger meu filho.

“-Para…” -o garotinho pediu novamente, sentindo o medo de sua mãe.

–E por que devemos fazer isso!? O que ele tem de tão especial que coloca a gente em risco sempre?! -O pai perguntou revoltado.

–Para... –Pediu novamente com um fio de voz.

–Ele é meu filho!! Isso já é especial! -A mulher respondeu reunindo coragem para enfrentar o marido. -E é seu filho também! O que fizeram com você? Porque está dizendo essas coisas absurdas?!

A discussão os ofuscou.

O grupo que havia sido formado para caçá-los havia se reduzido nos limites da vila, mas alguns liderados pelo próprio senhorio e outros apenas mais ávidos por sangue, tiveram a coragem de enfrentar a neve e agora estavam terrivelmente próximos da família.
Não apenas isso, mas os pais também não notaram o poder do menino sendo manifestado. Nem o próprio Ciel, mas era comum em qualquer pessoa de Lothus fazer coisas levitarem quando estavam com raiva, não era?

–Meu filho... –Bufou o pai com ironia. –Eu não queria que meu filho tivesse essa anormalidade! -Ele gritou.

–PÁRA!! -Ciel gritou com ódio e o pai foi erguido do chão e lançado para distante deles.

O corpo do homem parou quando encontrou o tronco largo de uma árvore centenária. O corpo caiu sobre a raiz grossa encarando espantado as pessoas que os caçavam. O grupo havia parado abruptamente ao lado da árvore onde o homem havia se chocado e agora olhavam para o garoto que exibia um par de olhos violetas vívidos. O rosto do menino estava manchado pelas lágrimas, mas ele mantinha o semblante sério.

–Ciel... -A mãe o chamou sem esperanças de que fosse ouvida. O rosto do menino era uma máscara irreconhecível. Não mostrava aquela serenidade e amabilidade de sempre.

A neve havia parado de cair e Ciel havia chegado em seu limite.

Ouvir as palavras do pai foi mais cruel do que suportar o garoto zombando de si. Não queria mais ouvir, queria corresponder às expectativas do pai e desejou não existir. Desejou ser levado para o fundo daquela escuridão.

E se deixou cair no abismo.
E viu com outros olhos a maldade que o menino havia feito mais cedo. Sentiu o puxão em seu cabelo como se estivesse acontecendo de novo. A lâmina fria de uma adaga em seu pescoço, as risadas e a ameaça cheia de maldade. Viu seu pai triste ao ouvir as acusações sobre o filho, não uma, mas diversas vezes e de formas diferentes. Viu a mãe triste definhar até a morte e viu as pessoas que o caçavam à sua frente.

Um gesto e todo o mal que sentia seria lançado contra aquelas pessoas. Sem remorsos, sem dor, um a um tendo suas vidas tragadas pela escuridão que cercava Ciel.

***

Ciel sobressaltou-se saindo daquela lembrança ruim e retornando para um lugar talvez pior do que o anterior. Não havia neve e era noite. Percebeu que ao redor ocorria uma batalha. Rubi estava aflita em um combate e preocupada com Ren quase entregue ao inimigo; Amet parecia gravemente ferido, mas com uma força enorme para não se entregar e havia Agatah… O futuro guardião da água estava ao seu lado, na verdade à sua frente, o protegendo dos ataques. Soube, como havia sido treinado por anos, que aos pés do amigo jazia aquele que tentou lhe jogar em seu próprio abismo e também soube que a espada de ágata estava manchada de sangue.

–Achei que tinha caído num buraco sem fundo. –O guardião comentou com aquela voz zombeteira.

–....e caí. –Respondeu levemente desnorteado. –Mas encontrei o fundo.

Ciel se levantou altivo e seus olhos adquiriam um tom violeta intenso. No momento seguinte, somente seus companheiros, futuros elementais, estavam de pé.