inCOMPLETO escrita por Lorenzo


Capítulo 1
Decifra-me ou devoro-te




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Você podem me chamar de Quin. É assim que tia Jaque me chama. Ou você pode me chamar de aleijado, perninha, magrela, coisa, “aquilo” ou quaisquer outros apelidos pois não será nada que eu já não esteja acostumado. Eu não ligo mais. Minhas pernas são excessivamente finas, são meros pingentes pendurados a minha cintura. Meus braços são pequenas varetas sensíveis que me permitem ler, o único prazer que me é acessível. Minha cabeça é uma obra cubista: preste bastante atenção e quiçá você consegue perceber alguma ordem no caos.

Eu sou Joaquim: Viciado em livros antigos, não importando o autor; Amante da solidão; Um corpo vazio existindo sozinho; O Caos. Decifra-me ou devoro-te.

Dom. 13.05.2012

– Joaquim! – grita tia Jaque entrando pela porta após atender o correio. Eu já sei que lá vem bronca. Mais livros chegando – Eu não aguento mais atender a este maldito carteiro!

Eu sorrio.

Tia Jaque se inclina e nota o olhar comicamente desconsertado do carteiro ainda na porta. Ela dá um leve aceno com um sorriso amarelo.

– É a versão de capa dura de Don Quixote, tia Jaque! – dou meu melhor e mais sedutor sorriso para ela, ela diz que não consegue resistir a ele. – Juro que não compro mais nada este mês! Eu juro!

Ela dá um sorriso malicioso e aponta com o olhar para a pilha de livros no meu colo: Policarpo Quaresma, Don Casmurro e Primo Basílio. Todos comprados esse mês e com a desculpa de que não compraria mais nada. É, ela me pegou nessa.

– Só me resta vender as porcarias dos meus rins para sustentar este teu maldito vício por livros em capa de couro e mofados! Só vendendo! – Tia Jaque joga os livros na bancada da cozinha e volta a pegar a faca para preparar o almoço. Rolo as rodas da Mandie – minha cadeira de rodas – e vou em direção aos livros e pego um a um com bastante dificuldade e os coloco no meu colo.

– Obrigado, tia Jaque. – Beijo a lateral da sua cintura. – Você é a melhor tia Jaque que um aleijado poderia ter! – Brinco, ainda sorrindo.

Seu olhar baixa instantaneamente. Seu semblante muda para algo triste e ao mesmo tempo decepcionado e eu sei o motivo. Eu sou o culpado.

– Você sabe que eu... – ela começa.

– Desculpa, tia. Prometo tentar evitar falar assim. – e vou rolando a Mandie até a garagem, que na verdade é o meu quarto desde que vim pra cá. Não posso subir as escadas sozinho e ser carregado é um pouco desconfortável. Precisar e ajuda para tomar banho já era vergonha o suficiente.

. . .

– Querido... – ela diz se sentando na beirada da cama, logo depois de ter lavado a louça do jantar. – Talvez você me deteste por isso mas amanhã você vai fazer algo.

Fecho os livros com cuidado. Não que eu seja zeloso, mas é que preciso fazer as coisas sem pressa por causa dos meus braços.

– Bem, e o que faremos? – digo em resposta, repousando o livro sobre minha coxa. Ou o que sobrou do que um dia foi uma.

– Não, meu bem. – Tia Jaque faz uma pausa. Ela tenta parecer calma e serena, mas a conheço bem o suficiente para saber que está nervosa. – Você irá. Eu voltarei para te buscar.

De repente eu me sinto gelado por dentro. Um frio constrangedor. Eu sinto vergonha. Não quero ser visto por aí assim. Quando pequeno me deram toneladas de apelidos, e aquilo me fez mal por muito tempo, até minha psicóloga me dispensar da escola. Por sorte tia Jaque é professora e pode me ensinar o básico. E se ela não fosse eu preferiria nadar num mar de ignorância a ser envergonhado diariamente por essa aparência bizarra e um bando de limitações estúpidas.

Isso foi traição da parte dela.

– Tudo bem. – Digo tentando parecer imparcial, já matutando como fugir disso. Não relutar me parece o passo básico para ser convincente.

– Eu sei que não está tudo bem, querido. E foi por isso que escolhi amanhã. Sei que é um dia doloroso pra você, e eles o ajudarão a superar. – Ela fala com doçura, como se já não tivesse destilado todo eu veneno sobre mim.

– Espero me sair bem então. – digo puxando o lençol lentamente. Movimentos que pedem o uso do antebraço são muito mais complicados pra mim e ela me ajuda.

– Você se sairá, meu amor. – Ela beija minha testa e naquele instante sei que ela não fez nada disso por mal. Ela quer meu bem, e eu quero o dela e então decido ir.


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