Destinados escrita por Tsuki Dias


Capítulo 11
10 - Caminhos Cruzados


Notas iniciais do capítulo

Pessoas, provavelmente demorarei mais para atualizar por causa da Facul e do new job. Então desde já peço desculpas e peço para não me abandonarem, ok? Ah! E comentem! Eu adoro comentários



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Kira acordou se sentindo péssima. A parca luz que adentrava o cômodo irritava seus olhos e por mais que os fechasse, a claridade ainda a incomodava. Gemeu uma vez e virou-se para o travesseiro, enterrando o rosto nele para tentar aplacar o desconforto. Da última vez que se sentira daquele jeito, tinha tomado seu primeiro porre na vida, durante seu baile de debutante. Depois daquela vez – e por ordem do seu avô –, jurara nunca mais beber tanto. E o que estava sentindo naquele momento refletia bem aquela maldita ressaca.

Mas o que diabos tinha acontecido mesmo? Ah, sim. Quase morrera, e pelo estado em que se encontrava, Mikhil conseguira salvá-la a tempo. Só não sabia como.

Sentou-se pesadamente e esquadrinhou em volta. O lado de sua cama estava bagunçado, o que indicava que alguém dormira com ela naquela noite. As bolsas dos primos estavam repousadas num canto perto da janela, juntamente de suas armas (e nem precisava falar o quanto aquele fato casual a desagradou).

O quarto era simples: uma cama grande perto da porta, uma cômoda, um armário perto da janela, um pequeno criado mudo perto da cama e uma porta que dava para o banheiro acoplado. Nada muito sofisticado, tudo muito simples e um tanto rústico, em cores neutras e calmas, bem diferente do luxo e da magnificência na qual vivera a vida inteira. Era adorável.

Não se lembrava de muita coisa depois de desmaiar novamente nos braços dele, enquanto cuspia sangue e convulsionava em dor e agonia. Da outra vez que estivera no quarto, não reparara em nada além de que estava em um lugar estranho, provavelmente longe de seus primos (que estariam sendo torturados por aqueles selvagens), mas o que mais martelava na sua mente naquela hora era que estava realmente ferrada.

Saiu da cama com cuidado e se dirigiu à porta, apoiando-se nas coisas para não cair, suas pernas estavam excessivamente débeis e isso a irritava. O pequeno corredor de paredes cinza e chão marrom se mostraram logo depois, conduzindo-a ou para a escada ou para o outro banheiro da casa. Desceu as escadas e se viu na adorável sala cheia de estofados confortáveis. Céus! Teria dado tudo para poder crescer num lugar como aquele, algo calmo e aconchegante onde ninguém a repreendesse por causa de seus modos ou a protegessem em demasia por causa dos assassinos que enviavam para matá-la. Ninguém imaginava o que sentia sobre isso.

As vozes dos outros ecoavam da cozinha, numa conversa leve e sem revelações. Queria ter tido forças para ir até eles, mas suas pernas protestaram. Sentou-se em uma poltrona próxima e relaxou com um suspiro alto, deixando-se abraçar pelo estofado macio e confortável. Precisava pensar no que fazer em seguida, como proceder pelos próximos dias e o que fazer em relação a Mikhil. A presença dele a instabilizava, a incitava... Se ele ficasse por perto, temia não poder se concentrar em sua missão.

Com um suspiro, levantou a mão trêmula e passou o dedo pelo ar, conjurando o bolso dimensional que estava ligado ao seu cofre no castelo, onde seus preciosos tesouros estavam guardados a salvo de mãos inescrupulosas. A primeira tentativa não a preocupou, afinal, estava tão fraca que mal podia andar. Mas a necessidade de ter seu tesouro nas mãos a compelia a continuar tentando, a continuar passando o dedo no ar como uma idiota e continuar esperando que uma fenda se abrisse a sua frente.

O desespero a dominou quando a vigésima tentativa não deu certo, não por ter falhado em abrir o bolso, mas por não conseguir sentir o poder que a habitava. Não conseguia sentir a magia.

Com desespero, percebeu o impensável: sua magia, sua parca magia, havia sumido.

– Kira? Que bom que levantou! – a voz de Lys ecoou na sala, e Kira se deu conta que a prima estava ao seu lado, olhando-a preocupada e alegremente. – O que houve?

– Mi... Minha... – balbuciou assustada. – Minha...

– O que houve? – os rapazes apinharam no portal da cozinha, como se tivessem sido invocados. – sente-se mal, Kira?

– O que você fez comigo? – ela gritou com lágrimas aos olhos, encarando o médico com certo desespero. – O que diabos você fez comigo?!

– Salvei sua vida, eu acho. – Mikhil respondeu confuso.

– Devolva minha magia! – ela pediu chorosa. – Só... Devolva...

– Não extingui sua magia, Kira. Se está se sentindo fraca, deve ser por não estar totalmente recuperada. – ele se ajoelhou na sua frente, encarando-a nos olhos. – Eu retirei cada filamento seu daquele imundo. Destrinchei-o como um gamo numa matilha de lobos famintos. Não permiti que nada de você se perdesse e fui zeloso quando te devolvi a você mesma.

– Mas por que minha magia não flui mais? Tem certeza de que não... Tocou em nada mais quando teve minha alma nas mãos?

– Absoluta.

– Então... – ela ofegou, enterrando os dedos no cabelo curto. – Então esse foi o preço...

– Não diga isso. – ele pediu pegando suas mãos. – Não deve ser nada. Só está cansada.

– O quê? – Lys perguntou confusa.

– Ela acha que perder os poderes é o preço de ter sobrevivido. – Leo explicou. – Não tire conclusões precipitadas. Você acabou de voltar, mal pode andar. Se recupere primeiro.

– Escute Dgrov, Kira. Se recupere primeiro, tenho certeza de que é um bloqueio momentâneo.

– Vocês não entendem... – ela baixou a cabeça nas mãos e respirou fundo, acalmando-se. – Por quanto tempo dormi?

– Contando tudo o que houve, uma semana ao todo. – Lys informou. – E... Desde o tio se passaram dez dias.

– É tarde, estamos atrasados! – Kira concebeu com preocupação. – Precisamos partir hoje!

– O quê? Não! – o choque de Mikhil era palpável. – É cedo! Vocês ainda não estão... Vocês podem ficar mais.

– Por que se importa? – Kira perguntou desconfiada.

– Por que não me importar? Você mesma disse que está fraca e sem magia. Deveria esperar mais antes de partir.

– Há mais em jogo que minha condição física – ela o encarou seriamente, tentando ler os motivos ocultos que o impeliam a insistir em sua estadia. – Já fez sua parte, Doutor, tentou consertar seu erro e nos ajudou. Precisamos ir, mas não quer que partamos... Que mais você quer de nós?

Mikhil não respondeu, observou os rostos do trio e engoliu as palavras. Ela tinha toda a razão: o que mais queria deles? O que mais podia fazer por eles em sua missão tão importante? Não tinha uma boa razão para se impor sem parecer suspeito, mesmo que sua profecia anterior o obrigasse a acompanhá-los até que não precisassem mais dele (e como estavam praticamente em guerra, nunca poderia abandoná-los). Estaria mentindo se quando dissesse eles não estivesse se referindo apenas à Kira. Desejava muito estar com ela, tanto que estava passando do limite. Kira era sua razão para querer segui-los, mas não podia usá-la como desculpa ainda. Precisava ser convidado a entrar no grupo, precisavam permiti-lo, precisavam confiar nele inteiramente...

Confiar nele? Ok... Isso era algo que nem ele em juízo perfeito faria.

– Não quero nada de vocês. – respondeu por fim, reassumindo finalmente sua máscara. – Mas, me preocupo por sua condição nesse momento. Rany ainda não tem plena consciência de seus poderes; D. não está pronto para proteger as duas sozinho e você, Kira... Não está forte o bastante...

– Engana-se quanto a isso. – Kira interviu, levantando-se e olhando-o de perto, em desafio. – Estou forte para viajar e mais que suficiente para protegê-los eu mesma. Agradeço o que fez por nós durante esses dias, mesmo que tenha sido somente para livrá-lo do carma...

– Não sabe nada dos meus pecados.

– Mas... – ela continuou, ignorando aquela interrupção. – Creio que seja tudo que deva fazer por nós daqui por diante. Partiremos de sua casa essa tarde, Doutor, e nossos caminhos se separarão. Rezemos para que não se encontrem novamente.

Rezarei para que se encontrem. – ele pensou antes de baixar a cabeça e cumprimentá-la. – Rezemos para tal. Precisam que os ajude com algo mais ou os acompanhe até a próxima cidade?

– Não. – Kira respondeu prontamente, afastando-se dele. – Venham, temos que nos preparar.

– Tem certeza, Kira? – Dgrov perguntou preocupado. – Você está cambaleando, ainda.

– Já me decidi. – foi sua resposta, antes de subir as escadas, com o que sobrara do seu orgulho.

Por mais que estivesse arrasado por aquela decisão, Mikhil sabia que aquilo ainda não tinha acabado. Sua profecia era mais poderosa que a vontade dela. Ele sentia que não ficariam longe um do outro por muito tempo.

Seu único medo era o tempo que se passaria até lá.

–-**--

Kira estava recostada em um tronco de árvore, passando o dedo no ar novamente, como estivera fazendo nos últimos minutos, para tentar acessar seus bolsos. Sua magia ainda não tinha retornado, mesmo que tivesse descansado por dois dias inteiros naquela clareira perto do rio, mas algo sussurrava em sua mente para que não cultivasse esperanças.

Depois que saíram da casa de Mikhil, não pararam a caminhada – uma sôfrega caminhada – até atravessarem a fronteira e se virem num reino linear. O que foi em boa hora, pois a redoma contentora que Anami lançara em Erischen avançara rapidamente e engolira a região onde Burm e Mikhil estavam. Se tivessem ficado naquela casa, como Lissa e Mikhil pediram, teriam sido pegos naquela prisão e estariam nas garras do inimigo cedo demais.

Leo terminava de apagar o fogo enquanto Lissa desarmava a barreira que fizera em torno do acampamento. Kira olhou para a prima com certo orgulho, mesmo que a nova habilidade não tivesse sido resultada de seus ensinamentos. Pelo menos, o tempo que passaram com Mikhil não tinha sido todo desperdiçado. Ele fizera com que Lissa entendesse as dinâmicas mágicas e quebrara um pouco de sua resistência, fazendo-a ajudá-lo com seus remédios estranhos e tratamentos alternativos que requeriam um mínimo de energia para serem executados. Não obstante, ele também ajudara Leo a conter suas adagas, agora a energia assassina que emanava delas era tão mínima que mal podia ser sentida. Ele também, além de cuidá-la e revivê-la, aniquilara todo o batalhão daquele mago parasita, recuperando sua alma e seus pertences, além de proporcionar o sofrimento daqueles inúteis.

E por mais que ainda estivesse brava pela traição e desconfiada de que ele fora o responsável pelo bloqueio de sua magia, precisara agradecê-lo imensamente pelo bem que fizera aos três. E como ela agradeceu? Foi fria e se distanciou, deixando-o na soleira da porta com o olhar de um cão que não podia se mudar com a família.

Mas o que podia fazer? Seu tempo estava acabando e a cúpula se aproximava rápido demais para pensar em levá-lo na mala. Provavelmente ele tinha uma vida naquele lugar, recrutá-lo como médico particular não estava no plano e nem seria justo. Nem imaginava o que podia acontecer com ele se fossem pegos...

Mas o que estava pensando? Ele podia se virar muito bem! Tinha que pensar na segurança dos primos, não na de um estranho! Concentre-se Kira!

– Podemos ir. – Leo anunciou estendendo-lhe a mão. – Tem certeza de que não quer ficar mais? Ainda parece fraca.

– Precisamos andar. Há alguém que preciso ver na próxima cidade. – ela falou, levantando-se com a ajuda do primo. – Encontraremos uma pousada para essa noite e partiremos pela manhã.

– Tem certeza? – Lissa perguntou incerta.

– Por que tenho a impressão de que essa pergunta virou rotineira? – riu uma vez, apanhando sua jaqueta do chão e vestindo-a, ocultando as costas nuas. – Se eu pudesse evitar, não entraríamos na cidade, mas preciso ver essa pessoa. É minha última chance de reaver os bolsos rapidamente.

– Isso é importante o bastante para arriscar sua vida?

– Há coisas neles que não posso ter o luxo de perder. Como a Zeela... – revelou seriamente, encarando-os com pesar. – Sim, entrarei numa cidade perigosa, debilitada e desarmada, para poder recuperar minha arma. Não me culpem por correr o risco, por favor.

– Péssima ideia.

– Dessa vez não tenho escolha. – retrucou com um suspiro, pondo-se a andar. – Olhos abertos. Entraremos em território inimigo.

–-**--

Comparada às outras por onde os três passaram, a cidade em que estavam era pequena. Além da fronteira com o tempo, as cidades e reinos seguiam o tempo linearmente, nada de misturas loucas ou crossovers entre eras. Se uma cidade era futurista, encontrariam apenas elementos que se encaixavam ali. Se entrassem em uma vila com ares medievais, teriam que tomar cuidado por onde andariam para não topar com algum ladrão ou serem acertados por um balde atirado de alguma janela, se é que entendem.

Aquela em particular ainda conservava um pouco de modernidade, como se fosse uma premissa steampunk de uma cidade vitoriana, mas conservando um pouco da simplicidade pós-medieval. As ruas e casas de pedra e gesso se erguiam por toda a parte, cavalheiros de terno passeavam com suas damas em saias de crinolina, mães em vestidos simples empurravam carrinhos antigos, e crianças em trajes campestres corriam pelas ruas, ou brincando ou trabalhando. Alguns tipos tinham armas e pistolas atadas aos cintos enquanto outros eram adeptos a espadas e arcos, os mais brutos carregavam pesadas maças e martelos de guerra, e em algum lugar puderam vislumbrar a ponta de uma lança. Lissa perdera a conta de quantos canhões estavam alinhados nos altos das torres de pedra, apontados para o horizonte.

Ainda havia guardas protegendo o lugar, mas não se podia ter certeza de que lado estavam.

– Me sinto em Penny Dreadful... – Lissa comentou.

– Fiquem por perto. – Kira pediu, conduzindo-os cambaleante pelas ruas e becos do lugar, segurando o torso que doía. – Acho que poderemos ficar aqui hoje.

O prédio onde Kira parara não passaria de uma casa normal se não fosse pela placa indicando o bar e os quartos disponíveis. Pessoas entravam e saíam em intervalos variados, mas não tão frequentes quanto os da estalagem de Burm. Com cautela, adentraram o lugar e se depararam com a típica taberna: mesas de madeira se perdiam ao redor abarrotadas de canecas grandes, o cheiro de cerveja impregnava o salão de teto baixo, assim como a fumaça de fumo recém-enrolado, e muitos indivíduos se movimentavam causando a sensação de claustrofobia.

– Vam... Ah! – Kira exclamou dolorida, quando um tipo grande passou por ela, esbarrando em seu ombro e fazendo com que o cabo de sua arma golpeasse-a em seu flanco machucado. – Droga!

– Saia da frente, menina. – ele falou e se afastou com passos pesados, sem nem ao menos dirigir-lhe o olhar.

– Você está bem, Kira? – Leo perguntou preocupado, sentando-a num sofá próximo.

– Vou ficar, só esbarraram na ferida. – ela gemeu. – Me dê um minuto.

– D, cuide dela, eu vou pegar o quarto. – Lissa anunciou decidida, afastando-se antes que os primos pudessem impedi-la.

– Mas que... – Leo praguejou, observando Lissa com cuidado, enquanto ela negociava o quarto com a mulher do balcão.

– Fique atento. – Kira alertou, observando em volta.

Os tipos que frequentavam o lugar àquela hora eram grandes, barbudos e silenciosos, que acompanharam os movimentos de Lissa com os olhos, sem se importarem de manter a discrição. A atmosfera se tornou pesada a partir do momento que fora atropelada pelo que saíra. Seu flanco sangrava um pouco e tinha certeza de que seu cheiro fora o gatilho para o instinto daqueles homens. Mas o modo como vigiaram Lissa a intimidou. Tinha algo errado.

– Vá pegá-la. – Kira pediu alarmada. – Rápido.

Leo não precisou ser mandado outra vez, lançou-se pelo salão e se dirigiu até a moçoila. A cena toda se passou em câmera lenta. Quando Lissa pegou a chave com a mulher e se pôs a voltar para a companhia dos primos, um dos grandalhões que bebia afastou a cadeira e moveu o braço, atrapalhando o avanço da menina. Para evitar se chocar com o tipo, Lissa se esquivou, mas se atrapalhou com os pés e chocou-se com outro ao lado, fazendo-o entornar um tanto de bebida.

A confusão começou ali.

Os tipos que se levantaram pareciam verdadeiros ursos, como só os vikings, bárbaros e caminhoneiros poderiam ser. Com um movimento quase sincronizado, cercaram Lissa com seus corpanzis imensos encarando-a séria e silenciosamente. A menina se desculpava nervosamente enquanto recuava e era acompanhada pelos homens. Parecia que todos no salão acompanhavam a cena com expectativa, como se esperassem a deixa para saltarem sobre um criminoso procurado, cuja cabeça estava a um prêmio milionário. O que, com certeza deveria ser o que se passava na mente daqueles caras.

Droga, Kira. Outro movimento errado!

– Deixem minha irmã em paz! – Leo advertiu para os caras, postando-se atrás deles e atraindo toda atenção dos mercenários que estavam ali. – Afastem-se dela.

Os caras se viraram e o encararam, abrindo uma pequena brecha para Lissa se esgueirar por eles e se aninhar nos braços do primo. Mas nem mesmo a coragem protetora do rapaz abalou a ameaça dos homens, nem mesmo quando ele sacou sua arma e a apontou para o peito daquele que avançara contra eles. A coisa estava muito séria.

– Tudo bem... Acho que essa é nossa deixa. – Kira interviu ao agarrar o braço estendido do primo, se colocando entre o bolo ameaçador, mesmo que não adiantasse nada. – Desculpem o inconveniente, rapazes, estamos de saída. Beijos, abraços e vão pela sombra.

– Não tão rápido, Princesa. – um deles se adiantou, mostrando um cartaz surrado com sua foto, onde Procurada Viva ou Morta fazia par com uma recompensa de três cifras e uns quatro pares de zeros. E para piorar, a foto mudava entre ela de cabelos longos e os de agora, curtos demais. Droga!

– Então é assim? – perguntou derrotada, notando que mais dois mercenários fechavam a saída de trás. – Vocês são partidários ou só querem a recompensa?

– Ambos. – ele respondeu, apontando-lhe sua pistola. – Jeito fácil ou difícil. Escolha.

Kira suspirou, olhando para os primos que a observavam em expectativa. Tinha feito de novo. Tinha os colocado em perigo novamente por não saber medir as consequências de suas escolhas, por não saber avaliar o quão perigoso seriam suas investidas e menos ainda por precisar cumprir com suas missões. Se tivesse esperado o cair da noite para procurar a pessoa que a ajudaria a recuperar o controle de seus bolsos...

– Desculpem. – ela pediu aos primos, suspirando pesarosa.

E como não podia deixar de ser, ela reagiu.

O atirador percebeu sua intenção de antemão, mas não foi rápido o bastante para pará-la. Com um soco forte no braço que empunhava a arma, Kira desviou o tiro para cima e pode chutá-lo para cima dos companheiros. Leo aproveitou a deixa e incapacitou dois que o atacaram, antes de soltar Lissa e deixá-la mostrar o que aprendera com Mikhil. A menina também não decepcionou naquela vez; num timing quase perfeito, ela envolveu os três em uma manta astral protetora que repelira os tiros que receberam, mas como toda iniciante, o impacto ainda pôde ser sentido.

Kira não queria repetir o fiasco que acontecera no acampamento daquele mago, por isso adotou a melhor tática que podia no momento: correr até as pernas explodirem. Agarrou uma cadeira pesada e jogou-a contra uma janela, abrindo à força uma saída, e saltando por ela, sem se importar com os arranhões feitos pelas pontas quebradas. Sem esperar, Leo tomou Lissa nos braços e saltou pelo buraco, tão gracioso e habilidoso que nem mesmo uma gota de suor ficou retida nas hastes pontudas do buraco que Kira abrira.

– Vai! Vai! – ele lhe falou quando estavam do lado de fora. E a fuga começou.

A perseguição se estendeu por ruelas, becos e até mesmo pela feira que ocorria na praça principal. Os mercenários tentavam derrubá-los com suas armas, mas poucos tiros achavam caminho para seus alvos e os que achavam, eram repelidos por Lissa, que estava fazendo um magnífico trabalho mesmo estando oscilante por causa do medo. Apesar de Kira estar mais cansada e lenta, não deixou que isso a atrapalhasse, correu o máximo que pôde e ditou o caminho para os primos pelo labirinto que era aquele lugar.

– Ah! – Kira exclamou quando uma bala atravessou-lhe o braço na altura do ombro, desequilibrando-a e arremessando-a ao chão.

– Levante-se! – Leo pediu, ajudando-a rapidamente, logo depois dando-a para Lissa. – Vão!

As meninas não tiveram tempo para retrucar, no momento em que os mercenários apareceram na curva, Lissa se pôs a correr e puxar a prima machucada. Kira acompanhava a corrida com sofreguidão, enquanto olhava para trás e testemunhava o primo enfrentar os primeiros que o alcançaram. E por mais assustada que estivesse, sentiu orgulho ao vê-lo lutar com garra e maestria, sem nem ao menos tirar as lâminas de seus descansos.

Me desculpe... – ela pensou antes de fazer a curva e perder a visão da luta de Leo.

–-**--

Mikki saiu do mercado parecendo que fora para guerra. Estava cansado e nenhuma das distrações que a cidade oferecia o agradava. Já era a terceira vez que passava pela feira e não se dignara a parar nem mesmo para comprar mantimentos e provisões. Estava ali para trabalhar, na verdade, mas estava tão cansado que cogitava voltar para casa e esperar até o dia seguinte, afinal era só uma consulta de rotina de um hipocondríaco.

O motivo de seu cansaço tinha nome e por sua causa não pregara os olhos durante aqueles dias. Desde que Kira e os primos saíram de sua casa e se jogaram no mundo, a preocupação o consumia impiedosamente e por mais que tentasse se focar em outras coisas, seus pensamentos sempre voltavam para o olhar frio da moça no momento em que o deixou. Parecia tão distante... Era um olhar tão errado para ter num momento como aquele...

Um barulho alto se ouviu algumas ruas afrente e suspirou, imaginando que tipo de arruaceiro conseguiu quebrar a monotonia daquela cidade. Iria parabenizá-lo se tivesse a sorte de encontrá-lo. Seguiu até a fonte do som e parou de pensar quando chegou perto de uma das estalagens. Curiosos se amontoavam em frente a uma vitrine quebrada, onde pedaços de vidro e madeira se viam espalhados pelo chão e salpicados de sangue. A recente briga devia ter sido muito boa, pelo visto. Ou quem atravessou a janela não teve tanta sorte.

Suspirou e saiu daquela área, dirigindo-se para a casa de seu paciente. Andou por becos e ruelas, sentindo aquele odor estranho e ferroso tomar-lhe as narinas. Aquela cidade não era conhecida pela violência gratuita, então quando se sentia cheiro de sangue fresco nas ruas, algo estava terrivelmente errado. Olhou em volta, procurando a fonte e deparou-se com o rastro vermelho. Estava fresco e ainda em estado líquido, indicando que mal fazia dez minutos que pingara. Provavelmente a pessoa que atravessara a vitrine estava fugindo de quem a ameaçou, e as marcas de tiros pelos lados indicavam que era trabalho de profissionais.

Seguiu a trilha e se obrigou a prestar atenção. Sons de luta foram ouvidos mais adiante e o cheiro de sangue se tornou mais forte. Apressou-se para chegar à esquina, calçando suas luvas negras, e parou atônito quando vislumbrou a cena: Dgrov lutando contra dois mercenários. E não havia sinal das meninas... Além do sangue...

Sem pensar em mais nada além de Kira, Mikhil se jogou em direção à luta, valendo-se de sua teia de prata. Pelo visto, o encanto de Kira dera certo, ele ia encontrar seu destino mais cedo. Destino pelo qual mataria para acontecer.

–-**--

A luta que travaram contra os mercenários exauriu as últimas forças das meninas. Lissa já tinha gastado energia suficiente desviando os tiros que recebiam e correr apoiando Kira terminou de fazer o trabalho. Quando chegaram aos portões da cidade, estavam exaustas, contudo continuaram a fuga até chegarem à floresta. Mas a cobertura verde não lhes proporcionou abrigo e logo se viram cercadas pelos perseguidores.

Mesmo fraca e machucada pela bala que raspara em sua panturrilha, Lissa ainda se obrigava a desviar os projéteis enquanto Kira afastava aqueles que tentavam encará-la. O tempo estava acabando e a sorte delas devia estar tirando uma siesta naquele momento. E levou sua força junto.

– Acabou, Princesas. – um deles se adiantou e apontou-lhe sua pistola. – Esta bala não pode ser desviada, já que foi feita para quebrar magias.

– Só acaba quando acabar. – replicou séria, tomando Lissa nos braços. – Atire se for capaz.

– Ki... – Lissa balbuciou antes de enterrar o rosto no abraço da prima, escutando o clique da arma sendo engatilhada.

Kira observou a cena como se visse uma animação quadro-a-quadro, perigosamente consciente da arma que se preparava para atirar. O dedo do homem se contraía milímetro por milímetro, trazendo o gatilho da garrucha com ele. Podia ver a bala alojada no fim do cano, podia ouvir seu estalar enquanto a trava do tambor se movimentava para finalmente liberar o projétil em uma pequena explosão. Abraçou mais a prima e se deixou distrair pela certeza de que a bala se alojaria entre seus olhos, atravessando talvez seu lóbulo frontal antes de sair pela nuca, levando parte de sua cabeça no processo.

Era irônico que Mikhil tivesse tido tanto trabalho para revivê-la para depois ser baleada daquele jeito.

Mas antes que ele apertasse de vez o gatilho, um zumbido encheu o lugar e algo afiado se alocou no crânio do mercenário, transpassando-o com violência. Não houve tempo de reação e tudo que as meninas viram depois foram fios prateados se prendendo aos grandes corpos dos mercenários e despedaçando-os tão rapidamente quanto um piscar de olhos.

O som dos mortos se cristalizando era estrondoso, mas estranho e perturbadoramente musical para Kira. A ameaça se fora... A ameaça...

– Rany, Kira! – a voz de Leo se fez ouvir quando a adaga se desenterrou do crânio de cristal e voltou para as mãos de seu dono. – Pelos Deuses! Vocês estão bem?

– Rany precisa de cuidados. – respondeu com a garganta seca, sentindo-se fria enquanto o sangue escorria de seu braço e seu flanco. – Você está bem?

– Ficarei quando sairmos daqui. – ele retrucou pegando a irmã nos braços. – Pode andar?

– Sim... – ela resmungou ao tentar se levantar... Sem sucesso. – Me... Me dê um segundo.

– Não temos tempo. – ele resmungou, virando-se para trás. – Ela não pode andar.

E Kira finalmente se permitiu olhar além da figura do primo. A princípio não tinha reconhecido aquele ataque prateado, já que nunca tinha visto antes, mas o cheiro e a energia que ele emanava não lhe deixavam dúvidas, mesmo ele estando com aquele sinistro capuz preto e as luvas que produziam aquelas linhas. Mikhil. Mikhil estava em seu caminho novamente.

E aquela alegria que brotou em seu peito a irritou imensamente.

– O que ele está fazendo aqui? – perguntou ríspida, afastando-se quando ele tentou tomá-la nos braços. – Mas que diabos!

– Se parar de ser tão idiota, vou salvar a vida de vocês de novo. – a irritação mascarada de seriedade na voz dele a imobilizou. – Agora cale-se, e me deixe bancar o herói antes que mais desses caras resolvam aparecer.

Não havia muito que fazer naquele momento, a não ser deixá-lo conduzir a situação. Kira deixou-se tocar e não resistiu quando ele a aninhou em seu peito e se pôs a correr pelo mato, ditando o caminho para os outros dois. O silêncio se mantinha firme e somente o som dos galhos e folhas sendo esmagados sob os pés deles estava vivo. E antes que pudesse perguntar para onde iam, uma grande casa apareceu em seu caminho, com sua fachada branca, suas janelas de madeira e vidro em ambos os andares e o pequeno consultório anexo ao ar livre – que não passava de um puxadinho com um telhado apoiado em vigas de madeira, uma mesa de trabalho, várias ervas em potes, frascos e vasos nas prateleiras e bancos rústicos.

A casa dele. Por que estavam de volta à casa dele?

– Ninguém vai nos incomodar por hora, ficarão seguros se permanecerem na propriedade. – o médico revelou ao passar pela porta que se abrira sozinha. – Precisam de cuidados? Os ferimentos são sérios? D?

– Eu estou bem, se ocupe das meninas. – Leo respondeu ao pousar Lissa numa das poltronas. Esta tremia tanto que seus dentes se chocavam. – Vamos, Lys. Já passou, já passou.

– Há cobertores naquele armário. Cubra-a antes que entre em choque. – Mikhil instruiu pousando Kira no sofá perto da janela. – Onde está ferida?

– Por que está aqui? – ela retrucou, encarando-o funesta.

– Pelo visto era para salvar seu lindo traseiro daqueles caras, de novo. – ele respondeu irritado, pegando-lhe o braço ferido. – E pelo estado disso sorte sua por eu estar por perto.

– Você está nos seguindo? Está nos espionando? Para quê? Planeja nos enviar para quem puder pagar mais? Que raios você quer de nós?! – ela gritou nervosa, desvencilhando o braço das mãos dele.

E isso o irritou, de verdade.

– Escute aqui, garota. Cheguei ao meu limite. Quer saber o que quero com vocês? Ótimo! Vou contar! – ele se aproximou num baque, agarrando com força o encosto do sofá ao redor da cabeça dela. – Estou aqui para ajudar, para salvar sua pele quando coisas assim acontecerem de novo e para não deixar que aconteçam. Se quisesse que aquele feitiço me matasse, devia ter usado as palavras certas, ao invés de chamar meu destino antes da hora!

– O destino de todos é a morte! – ela gritou.

– Tola! Acha que o meu se resume somente a morrer? Tenho uma profecia muito mais poderosa que essa que colocou em mim. Agora fique quieta e me deixe concluir minha sina direito.

– Quem o fez? – Kira indagou séria.

– Uma Ceifeira. – ele revelou, endireitando-se. – A profecia que ela me fez dizia que eu trairia uma pessoa. Digo... Se eu traísse uma pessoa, não importasse o motivo, eu deveria acompanhá-la até minha dívida ser paga. Eu te traí, agora sou obrigado a te acompanhar e zelar por sua vida. Você perguntou o que eu queria com vocês, agora sabe: quero permanecer vivo.

Kira não falou nada por um longo momento. Leo tinha voltado com o cobertor no momento em que os dois desataram a gritar um com o outro e não teve coragem para apartar a discussão. Lissa esperava estática embora ainda tremesse, a respiração dos quatro e seus dentes batendo faziam coro com o silêncio e o tique-taque do relógio na parede.

Mikhil não voltou a dirigir a palavra a Kira, tampouco tentou tocá-la. Deu-lhe as costas e se pôs a cuidar de Lissa, que parecia a ponto de se desmontar de tanto tremer.

– Fique fora do meu caminho, Doutor. – Kira falou por fim. – Já que não há outro meio.

– Você é engraçada. – ele riu indignado, encarando-a de súbito. – Você aceita que um fadado a acompanhe, mas se eu me declarasse devoto me rechaçaria como um cão sarnento. Nem sabe o motivo daquela Ceifeira ter ido atrás de mim.

– Confio mais no destino que em suas palavras, e não nego um prazerzinho que me dá quando penso na promessa que ela te fez. – Kira se levantou cambaleante e se dirigiu à porta. – Se é assim, será nosso companheiro nessa jornada, Doutor. Parabéns por assinar sua sentença de morte.

– Precisa de pontos no braço? – ele indagou.

– Não. – E com isso ela saiu.

– O que você contou é verdade? – Leo perguntou depois de um tempo.

– Cada palavra. – Mikki respondeu com um sorriso aliviado.

– Então só está nessa para salvar sua pele.

– Já fui mais cretino que isso uma vez, mas não, não ligo para a profecia. Só disse aquilo para fazê-la se calar. – ele riu tristemente. – Acho que acabaria com meus nervos se visse vocês partirem novamente. Quase não dormi de tanta preocupação.

– Não podia ter dito isso a ela?

– É mais fácil ela acreditar na obrigação do que na emoção. – ele sorriu tristonho, voltando-se para Lissa. – Juro a vocês que honrarei minha promessa de mantê-los seguros. Não pela profecia, mas pela minha estima.

– Então bem vindo a bordo, meu amigo. – Leo sorriu, estendendo a mão para o médico antes de apertar a dele e se inclinar, encarando-o com seriedade, mesmo que o sorriso não tivesse se desmanchado. – E pode ter certeza de que ela não vai ser a única de olho em você.

– Espero que não. – Mikhil riu soltando-se do aperto. – Vou cuidar de vocês, acredite.

– Conto com isso.

–-**--

Mikhil estava sentado na soleira de sua porta, olhando para o céu estrelado enquanto exalava a fumaça que tragara de seu cachimbo. Quem o visse fumando daquele jeito pensaria que era um viciado incurável, mas na verdade era mais um hábito antigo que um vício propriamente dito. Era sua dose mínima, um pequeno insumo de ervas relaxantes, nada narcótico, que usava depois de presenciar uma morte (ou várias). Assim como seu monóculo, aquele fumo lhe servia de selo para o demônio que se escondia em seu interior. Mas ao contrário do acessório, podia muito bem viver sem os efeitos da fumaça.

Antigamente, nos primeiros anos de militarismo assassino, quando usava óculos por sua vista péssima e sempre estava sob a influência daquela sombra, fumar como um condenado era a única maneira de se manter no controle, antes que matasse a torto e a direito sem motivo. Depois que ganhara o monóculo de sua salvadora, fumar se tornara um escape somente em situações extremas, como naquele mês, onde quebrara todos os seus votos e voltara a matar por Kira.

Por Kira... Nem precisava de muito para querer matar por ela.

Falando nela:

– Fiquei preocupado. – comentou para a sombra que se aproximava. – Está bem? E o braço?

– Cicatrizado. – ela respondeu pesada, parando de frente para ele. – Desde quando está aí?

– Desde que eles foram dormir, que acredito que seja a hora que você saiu. – ele respondeu com um sorriso, antes de tragar uma vez e soltar a fumaça para cima. – Evite sair assim sem a chave que desarma o campo. Qualquer dia vai ficar para fora.

– Lembre-me de pegá-la na próxima.

– Farei uma para cada amanhã. – ele se levantou e a encarou. Ela cheirava a morte. – Conseguiu o que tanto queria naquela cidade?

– Sim. Mas não foi o que eu esperava... Paguei um preço alto. – ela suspirou, esfregando o rosto com pesar. – Nem sei por que estou te falando isso.

– Vai superar.

– Eu acho que não. – ela retrucou, tirando o cachimbo das mãos dele. – Então é esse o cheiro...

– É um relaxante, não vai te deixar nas nuvens nem viciada. – Mikhil informou com um suspiro. – Tem vícios?

– Não. – ela respondeu, levando a peça aos lábios. Após uma longa tragada, ela reteve a fumaça nos pulmões por um momento e liberou-a, baforando no rosto dele num círculo perfeito. – Mas acredito que até ao final dessa aventura, eu vire uma alcoólatra.

– Terei uma companheira de copo então.

– Se sobrevivermos, quem sabe? – e devolvendo o cachimbo ao seu dono, ela entrou na casa.


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Notas finais do capítulo

Edição feita em 25/04



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