O anjo e o demonio escrita por Lu Rosa


Capítulo 7
Laços




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Sentada debaixo de um guarda sol, Ângela desfrutava do calor matinal lendo um livro de Agatha Christie, sua escritora favorita. Ela amava o toque genial dela em tecer suas tramas, sempre buscando no improvável a solução dos crimes. Perto de seus pés estava o gato da família, Marlon que, apesar de não ser, se achava um gato de raça puríssima, como só um gato é capaz de achar. Maggie dizia que ele achava que era a reencarnação do próprio Eduardo III, o rei inglês que havia conquistado Gales, Escócia e Irlanda. Ele tinha brilhantes olhos azuis e os pelos de um branco imaculado.

Levando os olhos do livro, ela viu uma figura alta que se aproximava. Não conteve um suspiro. O recém-chegado era Neil O’ Hanlon. Um ex-colega de colégio que agora era o delegado da cidade. Alto, atlético, de cabelos negros e olhos verdes, ele irradiava sensualidade e masculinidade. Era considerado um bom partido na cidade e poderia ter qualquer mulher. Mas, ele havia concebido uma paixão por Ângela ainda no secundário. No inicio, Ângela levava na brincadeira, pois eles eram muito jovens para casar, ela sempre declinava dos inúmeros pedidos de casamento, atribuindo-os ao orgulho masculino de possuir. Mas, agora, já adultos, Ângela tinha a sensação que, era só uma questão de tempo ele não mais levar suas recusas na brincadeira.

– Bom dia, matando um dia de trabalho? – Neil perguntou.

– Bem, não chega a ser um assassinato. Estou apenas me dando algumas horas de prazer literário. Não me lembro qual foi a última vez que me permiti isso. À tarde eu vou trabalhar.

– Então, como você não foi trabalhar, acho que você deveria saber: Joseph Reston desapareceu. – Neil se sentou ao lado dela

– Como desapareceu? – Ângela colocou o marcador no livro e o depositou na mesinha do jardim.

– Ele saiu da Dougherty Ambiental pouco depois das dez da noite. Conversou com o segurança Simon Perth sobre o jogo de ontem e foi ao estacionamento. Depois disso, ninguém sabe. Liz Reston ligou para a delegacia e comunicou o desaparecimento. Seu carro continuava no mesmo lugar e as chaves estavam no chão.

– Alguma teoria, delegado?

– Até agora, não me atino com que aconteceu. Reston tinha um cargo de confiança na Dougherty, um bom casamento, era estável mentalmente. Já conversei com Liz para saber se eles não tinha tido alguma discussão, mas ela disse que não. Peguei o histórico médico dele com o Dr. Dale, mas ele tinha a saúde perfeita. Não consigo imaginar o que houve. – Neil parecia muito aborrecido.

– Não se preocupe Neil. Você vai descobrir. Seja como Hercule Poirot: Pense no improvável.

– Poirot é fruto da imaginação de Agatha Christie, Ângela.

– Mas Christie vivia no mundo real, Neil. Ela podia não ser alguém da polícia, mas os livros dela podem nos ensinar algo.

– O quê, por exemplo? – ironizou ele.

– Que tudo não é o que parece... – ela levantou.

O delegado se levantou ao mesmo tempo.

– Ângela, hoje é sexta-feira. Por que a gente não se encontra à noite para ir ao cinema e depois um jantarzinho, O que você acha? – Neil se aproximou colocando as mãos em seus ombros e ela sentiu que ele ia beijá-la.

Nesse momento, Marlon miou esfregando-se nas pernas de Neil, deixando as calças elegantes com pelos.

– Não! – Neil a soltou e abaixou-se para espanar as pernas e ao mesmo tempo afastar Marlon. – Eu acho que esse seu gato não gosta de mim.

Ângela abaixou-se para fazer um carinho em Marlon.

– Bobagem... Ele só faz isso por que gosta de você.

Neil terminou de limpar as calças e olhou para Marlon. O gato fixou o olhar nele e depois, como se desprezasse Neil do fundo d’alma, empinou a cauda e deu-lhe as costas.

– E quanto ao convite? Posso vir pegá-la as oito.

– Desculpe-me Neil. Mas como só vou trabalhar à tarde, é bem capaz que eu saia tarde da noite.

– Você trabalha muito! – ele parecia irritado – Quanto terá um momento para mim?

Ângela achou injusta aquela cobrança de criança mimada. Não eram namorados, noivos, muito menos casados para tudo aquilo.

– Estou tendo esse momento com você agora. – respondeu friamente. – Se você me der licença... – parecendo uma dama do século 19, ela virou-se fazendo o vestido que usava rodopiar. Ângela amava usar roupas de um estilo romântico que pareciam feitas para uma época diferente. E que casavam perfeitamente com sua aparência frágil. Mas se enganava quem pensava que a moça era de porcelana. Fazendo jus a algumas de suas antepassadas, Ângela, ás vezes era tão enérgica quanto um sargento de Exército.

Neil suspirou. Se ela fazia parte de uma família de bruxas, então ele seria o seu inquisidor. Ele ainda a dobraria à sua vontade.

***

– Bem, chegamos. – anunciou Thomas para David.

O americano saiu do carro, olhando para a casa em estilo Queen Anne. De onde ele estava, via-se um gramado e outra construção envidraçada. Provavelmente uma estufa.

– Vamos. – chamou Thomas abrindo um portãozinho com a familiaridade de quem frequentava a casa. – Elinor deve estar na estufa ou na cozinha.

– Você não vai tocar a campainha? – perguntou David.

– Não. A casa das Dougherty é sempre aberta para quem quer que seja. Ninguém precisa se anunciar. Elas já sabem. – ele apontou para uma câmera. – Elas são bruxas, não idiotas.

A porta da frente se abriu e uma senhora apareceu. Ela tinha cabelos brancos que estavam numa trança que chegava até a cintura. Ela vestia um vestido verde escuro que chegava até seus pés que, para a surpresa de David, estavam descalços. Ela abriu aos braços a guisa de saudação.

– Thomas, que surpresa!

– Margaret! Como está? – abraçando a senhora que mal chegava à altura de seu peito

– Estou sempre bem, Thomas. E Elspeth? As crianças?

– Elspeth está ótima. Bryan está se preparando para entrar na Abbey em Donegal e Sophie está voltando de Dublin. Vai passar o feriado conosco. Vim pegar algumas ervas para a beberagem do meu avô. E trazê-lo. – ele se afastou para o lado para introduzir David na conversa. – Este é...

Maggie olhou assombrada para David e exclamou:

– E você só pode ser o neto de Tommy Maguire! Você é a imagem de seu avô nessa idade!

Thomas ficou um pouco desconcertado.

– Com certeza Elspeth já lhe disse o que nós descobrimos ontem. Este é o professor David Marshall que veio dos Estados Unidos.

– A senhora conheceu o meu avô? – David perguntou estendendo a mão para ela.

Maggie a apertou vigorosamente.

– Se eu o conheci? Tommy Maguire era como um irmão para mim. O irmão que nunca tive. Quero que me conte tudo sobre sua avó. Tenho certeza que ela era alguém espetacular.

– Sim, vovó era especial. Ele disse que se apaixonou no momento em que ela o mandou calar a boca e sentar. Vovó era enfermeira na França.

– E Tommy era um soldado durão... Sempre disse a seu avô que se casaria com a mulher que o mandasse calar a boca . Mas entrem. Logo o almoço está pronto. Thomas fica pra almoçar conosco, não?

– Desculpe-me, Maggie. Mas como disse Sophie está pra chegar e vou buscá-la na rodoviária. E Elspeth está preparando algo especial.

– E você David? Temos muito que conversar.

Ele hesitou.

– Fique, David. – incentivou Thomas percebendo a hesitação do outro. – Não se preocupe com Nigel. Com certeza Elspeth vai conseguir tirá-lo da cama e fazer ele se juntar a nós no almoço.

– Então, senhora Dougherty, vou sentir-me honrado em almoçar com sua família. Muito obrigado.

– Então vou avisar a Elinor para colocar mais um lugar a mesa. Thomas, venha comigo e eu pegarei mais ervas para a beberagem mágica para ressaca do seu avô e, David, se quiser preparar seu material para a entrevista, sente-se e fique à vontade. Eu já volto. – disse Maggie saindo com Thomas por uma porta lateral.

Quando David estava abrindo o laptop sobre seu colo, outra pessoa entrou na sala.

Automaticamente ele levantou-se e qual foi a sua surpresa ao ver a jovem que povoava seus pensamentos desde a tarde anterior.

– Você? – os dois perguntaram ao mesmo tempo.

Da primeira vez, David havia se prendido aos olhos violetas dela. Mas agora, descansado e sem o stress do quase atropelamento, ele agora analisava a mulher a sua frente. De longos cabelos castanhos, ela era relativamente alta, chegava à altura dos seus ombros. Os lábios pintados de rosa claro estavam entreabertos como se ela fosse dizer algo. Trajando um vestido que o fez pensar em damas do passado. E pelo decote do vestido estilo cigana, ele viu, no ombro direito, uma marca de nascença em formato de uma pequena estrela. E ele lembrava daquela marca.

Ângela segurava o livro contra o peito como se com isso pudesse acalmar as batidas furiosas de seu coração. Ele estava ali, na sala de sua casa. Os olhos azuis que povoavam seus sonhos. E agora, ela estava bem o suficiente para ver melhor o homem que quase a atropelara. Alto, com mais de um metro e oitenta, cabelos castanhos revoltos. Os olhos azuis brilhantes atrás dos óculos eram caídos o que lhe dava uma expressão triste, o que inexplicavelmente lhe provocou um nó na garganta. Ela fitou a boca dele que agora estava curvada num sorriso tímido e o pensamento louco passou pela sua mente de que ela conhecia aqueles lábios.

– Oi, espero que você tenha ficado bem ontem. – David se aproximou dela.

– Ah... Sim, eu estou bem. Você não chegou a me atingir. Eu que me assustei com a freada do carro.

– Desculpe-me não me apresentei. Sou David Marshall.

– É bom juntar um nome à uma pessoa. Sou Ângela Dougherty.

– Digo o mesmo. Estava ficando estranho me referir a você como “a moça que eu atropelei”.

Os dois riram, divertidos e uma terceira pessoa entrou na sala.

– Ângela? – Neil cruzou os braços, intimidador.

Os dois se voltaram para a porta e Ângela afastou-se um pouco de David.

– Ah Neil... Este é o senhor David Marshall e ele está aqui por causa do meu quase atropelamento de ontem.

– Atropelamento? – Neil aproximou-se deles e os dois homens se mediram com o olhar. David não se intimidou. Tirou os óculos.

– Eu disse quase atropelamento, Neil. Eu atravessei a rua sem ver o carro e o senhor Marshall freou quase em cima de mim.

– Dirigir em alta velocidade é crime aqui, sabia? – questionou Neil mostrando o distintivo de polícia. – Eu sou o delegado dessa cidade.

– Ainda bem que eu não dirigia em alta velocidade, não é? – David respondeu com uma ponta de ironia.

– O senhor Marshall não estava dirigindo em alta velocidade, Neil. Se ele estivesse eu não estaria aqui conversando.

Neil pareceu acalmar-se com a explicação de Ângela, mas não tirou os olhos de David nem por um minuto. Uma animosidade mutua foi se instalando entre os dois homens. David era um homem pacífico, mas a adrenalina de uma possível luta fez o seu sangue correr rápido nas veias.

– Neil, você não tem um desaparecimento para investigar? – Ângela colocou a mão no braço do delegado.

Ele desviou o olhar de David e sorriu para ela.

– Claro, minha querida. Liz Reston vai querer saber mais informações da investigação sobre o marido dela. – ele inclinou para ela e a beijou nos lábios.

Ele ergueu os olhos para David com um meio sorriso como se o desafiasse. Então lentamente saiu da sala.

Ângela estava de olhos baixos, constrangida.

– Me desculpa por isso. É que o Neil, bem, ele é tão protetor...

– Eu também seria se estivesse no lugar dele. – ele sorriu.

Ângela inclinou a cabeça para o lado.

– Se estivesse no lugar dele?

– Bem, se eu tivesse uma namorada como você. – às favas com a timidez, ele pensou.

Ela baixou os olhos encabulada.

– Neil não é meu namorado. Ele é meu amigo. Um amigo de infância.

O sorriso dele aumentou o que fez o coração dela acelerar novamente.

– Ah! Então ele interpreta muito bem o papel.

Sem ter mais o que dizer, ela indicou o sofá.

– Por favor, sente-se. Esqueci minhas boas maneiras... Gostaria de beber algo?

– Não. Obrigado. Estou esperando a senhora Dougherty. Ela vai me conceder uma entrevista.

– Entrevista? Ah, sim. Ela comentou que você viria. O professor americano que está escrevendo um livro sobre esta região.

– É sobre várias regiões da Irlanda, na verdade. Meu livro é sobre a Besta de Donegal.

Ângela sentiu um arrepio lhe percorrer ao escutar aquele nome.

– Por que sobre ele? Com certa há temas mais agradáveis.

– Mas a História nem sempre é agradável.

– Esse é um assunto que ainda provoca muitas reações aqui em Raphoe. Você já deve ter ouvido falar sobre o massacre no castelo Dougherty. Esse fato acarretou muitas histórias sobre a minha família. Então por favor, professor, eu gostaria que o senhor se focasse nos fatos históricos. Não deixe, por exemplo, a minha avó se estender sobre os contos fantasiosos sobre nossa família.

– Como o quê, por exemplo? – ele perguntou fazendo-se desentendido.

– O fato que em nossa família só nascem mulheres. Isso não é verdade. Há registros de nascimento de meninos, mas eles morriam ainda bebês.

– E as meninas nasciam fortes e saudáveis. Isso é no mínimo curioso, senhorita Dougherty.

– Curioso ou não, o fato é que nasciam homens, e essa história da maldição de Moira Dougherty são pura superstição.

– Está bem, senhorita, vou preservar sua família no meu livro, embora seja uma pena, pois os americanos adoram uma boa maldição celta.

Ângela relaxou perante a declaração dele. Muitos escritores já haviam procurado as Dougherty para escrever sobre a família onde só se nasciam mulheres, mas nem todos haviam agido como o professor Marshall, respeitando o direito a privacidade delas.

– Obrigada. – ela agradeceu com um sorriso e se levantou sem perceber que o livro estava em seu colo.


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