O anjo e o demonio escrita por Lu Rosa


Capítulo 20
Histórias do passado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/544847/chapter/20

Quando eu tinha a sua idade, eu conheci um homem. Um cigano espanhol. Seu nome era Ângelo Antonio de Toledo e Montillo. – ela sorriu – Um nome pomposo, como os espanhóis gostam. O generalíssimo Franco, como o seu igual na Alemanha, começou a perseguir as minorias. Ele fugira da perseguição no continente. Então ele acabou aparecendo por aqui junto com um grupo de ciganos.

– Nossa família tinha a tradição de proteger os ciganos, afinal eles já haviam protegidos muitas de nós. Foi quando houve a primeira briga entre meus pais. Meu pai era um diretor do banco de Dublin, de família conservadora.

– Mas ele aceitou assumir o nome da família Dougherty. Como ele podia censurar uma tradição nossa? – perguntou Ângela.

– Ele aceitou em termos. – esclareceu Maggie. – O nome da família foi mantido, mas o sobrenome dele também. Meu nome completo é Margaret Louise Dougherty Russell. Foi a prova de amor de minha mãe para ele. Bem, é claro que com jeitinho, minha mãe conseguiu dobrá-lo. No dia seguinte, nós fomos até o acampamento. Eles já nos conheciam, os ciganos têm um código que dizem uns aos outros onde são bem recebidos. Então, o chefe do grupo acompanhado de sua esposa nos recebeu. Minha mãe começou a conversar com ela sobre ervas, e eu fiquei um tanto entediada. Eu ainda não havia recebido o chamado da Deusa para servi-la. Então saí pelo acampamento, conversando e fazendo um agrado nas crianças.

Margaret fez uma pausa e respirou fundo, como se controlasse uma enorme emoção. Ela apertou as mãos uma na outra.

– Mesmo depois de tanto tempo, ainda me é difícil falar sobre ele. Dedilhando um violão, ele tocava uma melodia tão triste que me deu vontade de chorar. Outros ciganos estavam ali ouvindo e eu me sentei um pouco afastada para ouvir. Quando nossos olhares se cruzaram, foi como se todos ao redor tivessem desaparecido. Eu me senti quente, como se houvesse uma chama dentro de mim. Ele olhava para o violão, mas era como se ele tocasse para mim. Eu fugi. Mas naquela noite eu não consegui dormir. Ficava ouvindo aquela música me chamar.

– Mamãe... – Elinor estava de olhos arregalados – eu não sabia dessa história.

– São histórias que pertencem ao passado, querida. Saiba que seu pai foi um homem maravilhoso, e eu o amei muito. Mas, algumas pessoas têm o privilégio de viver algo assim. Uma paixão sem freios, sem verdades ou mentiras.

– No dia seguinte, eu estava centro da cidade, quando um menininho veio até mim e me entregou uma flor e um bilhete. Antes que eu dissesse alguma coisa, ele fugiu. Eu abri o bilhete esperando palavras mal traçadas, mas ali estava escrito numa bela letra em inglês perfeito. “Amo-te”. Eu corei até a raiz do cabelo.

– Naquela noite, acordei com uma música em minha janela. Eu a abri e ele estava lá. Eu não sabia o que fazer. Então, eu mandei as convenções às favas e fui ao encontro dele. Sem nenhuma palavra ele me tomou pela mão e me colocou na sela de um cavalo.

– Que romântico! – exclamou Ângela.

– Querida, eu me senti a própria heroína de uma novela capa e espada. Nós cavalgamos através da campina. Sob uma enorme lua cheia e o céu pontilhado de estrelas, eu me entreguei a ele.

– Assim, tão rapidamente? – perguntou Elinor.

A senhora deu uma risadinha.

– Como resistir? Eu era uma mocinha super protegida, uma princesa, como meu pai costumava dizer. Ângelo era um espanhol de sangue quente, versado nas artes do amor. Depois de tudo, continuamos deitados juntos olhando as estrelas. Ele me disse coisas bonitas, como eu era a estrela do caminho dele, mas me disse também que a alma de um cigano era livre. Eu deveria ter percebido que, apesar de todo o romantismo, eu era apenas mais uma. Mais uma estrela em seu longo caminho. Nossos encontros ainda se repetiram pelas três noites restantes da lua cheia. Então, alguns dias depois, eu fui procurá-lo no acampamento. Precisava lhe dizer que achava que estava grávida.

Elinor empalideceu. Mas mergulhada em recordações, Maggie nem percebeu o desconforto da filha. Ângela viu a palidez da mãe e a segurou pelos ombros.

– Mas ao chegar lá, ele já havia ido embora. Eu fiquei desesperada. Sabia que a repercussão mataria meus pais de vergonha. Uma coisa é você ser considerado excêntrico. Outra coisa é ficar grávida de um estrangeiro. E cigano ainda por cima. Eu fiquei dias sem dormir e só comia o necessário para não despertar suspeitas. Foi quando um anjo de bondade surgiu em meu caminho.

– Quem? – perguntaram filha e neta ao mesmo tempo.

– Um amigo de infância, Eugene Dullann, que havia se formado médico em Galway, havia voltado para Raphoe. Ele queria se estabelecer aqui para exercer a profissão. Bastou um olhar e ele pediu para conversar comigo. Com a sinceridade de uma amizade antiga ele me perguntou se eu estava com problemas. Eu neguei, é lógico. Ele me disse que era médico e que não adiantava mentir para ele.

– Em lágrimas, eu contei o que acontecera. Então ele me surpreendeu revelando que havia voltado com a ideia fixa de me pedir em casamento. Afinal, agora ele era médico formado e com clientela fixa em Galway. Eu disse à ele que eu daria um jeito e que não necessitava de pena. Ele disse que se casaria comigo por amor e não por pena. E por amor à vida ele não deixaria nada acontecer àquele pequenino ser.

– Emocionadíssima, eu aceitei o seu pedido para alegria de nossas famílias, e o casamento se realizou logo. O motivo foi a proximidade da guerra, pelo menos foi o que todos pensaram.

Margaret fez uma pausa e enxugou uma lágrima.

– Mas a criança não chegou a nascer. Eu fui com Eugene, meu marido, à Dublin para visitar um parente e a segunda guerra chegou até nós. Um bombardeio alemão. Não fomos atingidos, mas o susto provocou um aborto espontâneo. – ela enxugou mais lágrimas – Era um menino. Mas tudo tem um motivo. Eu tinha cabelos ruivos e Eugene era loiro. Seria difícil explicar uma criança de cabelos e olhos negros.

Elinor, emocionada, abraçou a mãe. Aliás, as três estavam emocionadíssimas.

– Mamãe, eu nunca pensei que você havia passado por algo tão intenso.

– A vida tem que ser intensa, Elinor. Senão não tem graça. – ela segurou Ângela pelos ombros.

– Querida, o que eu quero que você saiba é que o amor verdadeiro também pode ser intenso como uma paixão de verão. O que eu vivi com seu avô também foi assim. Levou algum tempo para amá-lo, mas quando ele segurou a minha mão, chorando comigo por um filho que nem era dele, meu coração se encheu de amor por ele.

– Mas vovó, o vovô não mentiu para você. Nem o seu cigano espanhol.

– Mas tanto um quanto o outro omitiram. Ângelo omitiu a verdade de sua vida. Ele só falava da liberdade da alma cigana. Mas não de que ele não tinha intenção de permanecer ao meu lado. Todos pensaram que eu estava grávida de Eugene, mas ele se omitiu de me odiar ou odiar o bebê. Existe uma diferença entre mentir e omitir, Ângela querida. Talvez você esteja conjugando o verbo errado. Pense nisso.

Ela beijou a face da neta e foi para o seu quarto. Elinor também beijou o rosto da moça e subiu as escadas. Ângela enrodilhou-se no sofá, como uma gatinha e então adormeceu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O anjo e o demonio" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.