Usuário Final escrita por Ishida Kun


Capítulo 26
A calma ates da tempestade 6:1




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— Então ele me falou “vai ter que amputar amigo, ferrou”! Imagina a minha cara?

Adam olhava para o rapaz do caixa ao lado mas seu olhar parecia atravessá-lo, seus cabelos eram bem curtos e estavam desajeitados, os olhos, castanhos e pequenos como feijões, o fitavam com expectativa, Danilo aparentava ter a mesma idade de Adam, porém possivelmente era mais velho, com seu jeito caricato e gestos exagerados. A mão direita era um embolado de esparadrapo e bandagem, algo que definitivamente não havia sido feito por um profissional. Ele aguardou esperando Adam esboçar alguma emoção ou mesmo dar um entendimento de que estava prestando atenção na conversa, só voltando a falar quando ele soltou um “hum” quase inaudível.

— Se você não cuidar disso aí vai acabar tendo uma infecção.

— O quê? — Adam perguntou, finalmente se atentando a conversa do rapaz.

— O corte no seu rosto está sangrando de novo. Acho que não dá pra amputar sua bochecha. Imagina um cara sem bochecha? Acho que vi um zumbi assim... foi naquele seriado... não lembro o nome agora... você sabe Fran?

A garota loira, com o rosto cheio de sardas do terceiro caixa ergueu a sobrancelha para Danilo, desviando o olhar em seguida e voltando sua atenção às compras de um cliente, um homem de meia idade que parecia ter um sério problema de calvície.

— Não faz diferença — resmungou ele, voltando sua atenção para Adam — O que há com você hoje? Você geralmente responde com três a quatro palavras, hoje virou monossifálico.

— Monossilábico! — corrigiu Fran rispidamente, enquanto entregava o troco do cliente.

— Sim, isso — resmungou novamente — Eu quase perco os dedos e ela que fica de cara feia!

— Até onde sei ela quase perdeu o emprego — contestou, Adam, retirando o curativo manchado de sangue e colocando outro no lugar, uma espécie de band-aid grande, que cobria exatamente o tamanho do ferimento. Aquele era o terceiro curativo que usava no dia, se continuasse nesse ritmo, teria que comprar uma caixa nova.

— Se ela tivesse lembrado de desligar o cortador de frios enquanto eu limpava, como havia pedido pra ela, isso nunca teria acontecido!

Os dois ouviram um ruído de algo ser atirado no chão, e antes mesmo que pudessem dizer algo, Fran havia posto um aviso de caixa fechado e saído em direção ao banheiro.

— Cara, deixa de ser idiota. — Adam reclamou, virando-se para atender um cliente.

— Eu não fiz nada! — justificou-se Danilo, voltando sua atenção para o caixa e para uma pessoa indecisa se já tinha ou não terminado de fazer as compras.

Adam passava as compras mecanicamente, enquanto sua cabeça mais uma vez estava longe como no dia anterior e ele temia que aquilo pudesse virar rotina. Primeiro, ele não parava de pensar em Beatriz e nos rumos que aquela conversa sobre o Link havia levado. Tudo havia sido tão intenso, a aventura que haviam vivido, as conversas, aquela estranha proximidade, mesmo que os dois talvez estivessem a centenas de quilômetros de distância, porém, o desfecho foi tão... desastroso. Se ele a odiava por matar a única pessoa pela qual ele talvez tenha sentido alguma coisa de verdade? Não sabia responder, exatamente porque também não sabia no que acreditar. Ele não conhecia Beatriz, mas conhecia ainda menos a garota da biblioteca. Ela realmente poderia ser uma assassina cruel e impiedosa, o que não a colocaria num lugar melhor, mas também não mudaria o que ele sentiu por ela. Segundo, ele não deveria tê-la procurado, não deveria ter procurado nada a respeito dela, aquilo só havia trazido mais dúvidas do que respostas.

Assim que saíra da escola, teve a genial ideia de ir até a biblioteca procurar pelos registros de entrada dos quais Eriza havia falado, um enorme livro com capa de aço escovado que ficava na mesa da recepção. Pelo tamanho do livro, deveriam haver registros dos últimos três anos ali, mas não foi preciso muito para que ele percebesse o quanto aquela viagem foi inútil. Ninguém usava os nomes verdadeiros para entrar, ele mesmo já fora um lorde de armadura negra que havia dominado parte da galáxia, um arqueólogo que tinha medo de cobras, um caçador de demônios que tinha um irmão como rival e uma série de outros personagens de livros, filmes e jogos. Isso sem contar a parte crucial, ele não fazia a menor ideia de qual dia eles haviam se encontrado. Era uma sorte ainda se lembrar o mês e o ano. Seriam trinta dias de registro, aproximadamente mais de cem páginas repletas de nomes que poderiam muito bem serem falsos. Inútil. O que ainda havia piorado a situação foram as lembranças, que agora pareciam tão reais quanto o filme que ele assistiu na semana anterior. Ele podia senti-las rasgando seu corpo de dentro para fora, libertando-se da prisão de esquecimento que ele impôs para elas.

— Você devia tratar melhor a Fran, ela ficou mal pelo que aconteceu. — Adam disse para Danilo, de forma severa.

— Achei que ela sabia que eu estava só brincando! Quando ela voltar vou fingir que não aconteceu nada, vou até esconder a mão atrás das costas.

— Na verdade você nem devia estar trabalhando.

— E você também não! Você parece mais ferrado que eu. — E de fato, Adam nem mesmo precisava se olhar no espelho para saber daquilo.

— Eu ainda estou tendo aqueles sonhos esquisitos, lembra? Digamos que agora eles ficaram... piores.

— Adam, acho que o seu problema é falta de garota. Como nós somos Bro’s eu posso te passar o telefone de umas gatinhas...

— Somos o que?

Bro, cara! Brothers, parceiros, manos! Você não conhece as gírias do gueto?

— Não! — respondeu o olhando com uma certa indignação — Até onde sei não tem nenhum... gueto, nessa cidade. E você mora num condomínio residencial de luxo! Eu nem sei porque você ainda trabalha!

— Você pode até sair do gueto, mas o gueto nunca vai sair de você, é a lei, cara.

— Certo, entendi.

— As respostas para os seus sonhos devem estar na rede. — Danilo disse de súbito.

— Estão onde? — Adam quase gritou, escorregando da cadeira e por pouco não caindo — Você sabe sobre a Rede?

— Claro que sei, achei que todo mundo tinha acesso à internet, sabe a rede de computadores que interliga o mundo todo? Aquela coisa que a gente usa pra ver filmes... filmes... sabe? Adam, você tá bem mesmo?

Adam apoiou a cabeça nas mãos, enquanto ria silenciosamente, de forma a parecer que estava tendo um ataque de nervos.

— Só fui para a Rede uma vez e já estou ficando maluco... — ele murmurou, ainda com o rosto coberto.

— Verdade, você não parece muito normal mesmo. Bom, tem uns caras na rede que falam umas coisas sobre sonhos, que eu achei bem interessantes. Alguns deles dizem sobre criaturas horríveis e cidades gigantescas, me lembrou até o seu!

— Como é que é?

— Não que os caras sejam muito confiáveis, claro. São uns pirados, com todas aquelas teorias do governo e tudo mais.

— É, eu conheço alguns sites sobre isso. — disse Fran, que acabara de voltar. O rosto levemente esbranquiçado demonstrava que ela havia o lavado. Uma mecha do cabelo dourado pendia na frente de um dos olhos castanhos. Ela era a mais nova ali, e aparentava ainda menos idade do que os dezesseis anos que ela supostamente dizia ter.

— Se não me engano — continuou —, tem alguma coisa a ver com o governo criar um mundo nos sonhos, de onde eles possam espionar a cabeça das pessoas. Eles criaram alguma coisa para manter esse lugar livre de pessoas conscientes e daí, quando alguém percebe o que está acontecendo, eles acabam com a pessoa — e acertou um soco na mão — é isso que causa a síndrome de Aurora.

— É mesmo Fran, eu ouvi essa história em alguns fóruns da deepweb. — Danilo confirmou, sorrindo para Fran de forma exagerada.

— Você também acessa a deepweb? — ela perguntou, desviando os olhos dele.

— E quem não acessa? — E no mesmo instante, os dois viraram a cabeça mecanicamente na direção de Adam.

— Eu não tenho tempo para essas coisas! — justificou-se, cruzando os braços. — Que site é esse?

— Não é um site — respondeu Fran, como se ele tivesse soltado uma blasfêmia — é o submundo da internet, onde os sistemas de segurança não alcançam, lá é terra de ninguém, não tem regras. Tem muita coisa sombria por lá!

— Sério, eu nunca ouvi falar disso. — Adam disse, sentindo-se um tanto quanto idiota.

— Tudo bem Adam, ninguém precisa saber de tudo — consolou-o, Danilo, piscando o olho para o colega de trabalho — Vou mandar para o seu e-mail alguns links bacanas e um kit de acesso pra você navegar com segurança por lá. Talvez você encontre alguma coisa que possa te ajudar.

— São os sonhos ainda? — Fran perguntou, dirigindo-se para o seu caixa e recolocando a placa de próximo cliente — Achei que eles tinham acabado.

— Não acabaram. E algo me diz que estão bem longe de terminar. Ei — começou ele — vocês realmente acreditam nessas coisas?

— Não descarto a possibilidade — respondeu Danilo —, mas é melhor não pensar nisso, senão a gente enlouquece.

Adam acenou com a cabeça e voltou sua atenção aos corredores vazios do Wikimart, onde três ou quatro pessoas andavam de um lado para o outro, enquanto os caixas de seus amigos se tornavam ocupados assim como o dele. Obviamente que Danilo e Fran falavam da Rede, porém ficava claro que alguma informação havia se perdido no decorrer do caminho ou foi alterada propositalmente. Até onde ele sabia, a Syscom apagaria qualquer informação sobre a Rede ou os Usuário Finais da internet, então como aquele tipo de coisa havia passado? Seria proposital? Ele não sabia ao certo, mas uma coisa era fato: ele não era um Usuário Final comum e talvez os Helldivers não pudessem ajudá-lo. Ele não os conhecia, assim como não conhecia a garota da biblioteca, portanto guardaria aquelas informações para si e buscaria na tal da internet do submundo, algo que se parecesse com o que ele estava vivenciando no momento. Borboletas se agitaram em sua barriga com a possibilidade das descobertas que poderia fazer.

— Ansioso para a festa? — perguntou uma mulher parada ao lado de Adam, os cabelos negros estavam presos num rabo de cavalo, ela possuía óculos de armação delicada e sutil, os olhos eram penetrantes e estreitos, demonstrando superioridade. Vivian, da contabilidade, uma das poucas pessoas do setor executivo, se é que o Wikimart possuía um, que dava as caras nos caixas, ou como Danilo costumava chamar, a linha de frente. Pelo pouco que Adam sabia, ela costumava sair com Danilo, Hugo e Fran para noitadas de bebedeira e farra, das quais ele sempre era convidado e sempre recusava.

— Achei que a contabilidade não se misturava com a infantaria durante o expediente — resmungou Danilo, terminando de ensacar os produtos de seu cliente, que parecia extremamente desconfortável de um instante para outro.

Vivian mostrou o dedo do meio para Danilo e sorrindo, se voltou para Adam.

— Você nunca sai com a gente, me pergunto o que aconteceu para você resolver dar as caras na festa.

— Fui pressionado. — respondeu meio sem jeito — Não gosto de festas, Viv.

— Mas todo mundo gosta de festas!

— Eu não sou todo mundo.

— Bom, no final é melhor assim. Acho que é isso que faz de você um cara legal. A propósito, vamos precisar fazer uma checagem nos caixas hoje, alguém vai precisar ficar até mais tarde comigo, você estaria interessado?

Danilo levantou a mão enfaixada, escondendo-a logo em seguida, e ergueu positivamente o dedão da mão sadia. Ele piscou e Adam soube exatamente o que ele queria dizer.

— Preciso ir para casa mais cedo, já até falei com o Hugo, tô cheio de trabalho da escola — mentiu — Mas acho que o Danilo pode ficar, já que ele não vai precisar fazer muito esforço mesmo — O sorriso de Danilo murchou instantaneamente, como se tivessem contado para ele que o papai Noel não passava de uma farsa de mau gosto.

Vivian expressou seu descontentamento com uma expressão indecifrável e virou-se para Danilo, que acenou falsamente.

— Esteja pronto para trabalhar de verdade Fernandez! — ela ameaçou rispidamente, em seguida voltou-se para Adam novamente, sorrindo — Ok, menino estudioso... mas, você não vai fugir da festa, não mesmo. — e sorriu de um jeito do qual ele preferia que ela não o tivesse feito.

— Odeio quando ela me chama assim — disse Danilo, observando Vivian sair pelo corredor principal, rumo ao escritório — Só perdoo porque ela é gostosa. E cara, se você não pegar ela na festa, você é muito bundão.

— Fica quieto! — reclamou Adam, desviando o olhar. Não que nunca tivesse imaginado nada do tipo, mas obviamente não estava no clima para esse tipo de coisa. Desde que começara a trabalhar ali, rolavam boatos sobre Vivian e seu interesse em garotos mais novos, principalmente em Adam. Na verdade, ele realmente teria que ser muito bundão para nunca ter percebido nada.

O dia se arrastou lentamente e a cada minuto, sua mente funcionava ainda mais veloz, maquinando coisas, processando e mastigando tudo o que acontecera nas últimas horas. Queria sair logo, ir para casa. Tinha uma leve ideia do que faria a seguir e quase certeza de que pelo menos uma das coisas o levaria a algum lugar. Não esperaria por ninguém, encontraria a verdade por conta própria, custe o que custar.


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