A Dança das Lâminas Rubras escrita por João Emanuel Santos


Capítulo 9
A Carruagem no Vale - Parte Um.


Notas iniciais do capítulo

Desculpem a demora, o capítulo estava realmente quase pronto ontem, só que ao revisar ele eu me senti insatisfeito, então reescrevi ele hoje de tarde.

Esse capítulo também tem referências ao conto "Impérvia".

Espero que gostem :)



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/537291/chapter/9

Meus olhos se abriram.

Por um momento tive que fechá-los novamente por conta do grande clarão que ofuscou minha vista. Mas após alguns instantes, consegui me acostumar com a luz do ambiente.

A primeira coisa que vi foi o grande céu cinzento, com nuvens desfilando e se movendo com o vento que soprava. Senti frio em minhas bochechas e orelhas, mas o resto do meu corpo estava surpreendentemente quente e confortável. Também sentia o lugar onde eu estava tremer, e pensei estar em cima de algum transporte.

Eu mal conseguia me mover, pois meus músculos estavam dormentes e doloridos. Tudo o que consegui foi virar a cabeça para o lado esquerdo, confirmando minhas suspeitas de que eu estava dentro de uma carroça aberta. Ao olhar para o lado, senti meu pequeno queixo se arrastando por o que parecia ser um manto de pele muito macio, que cobria meu corpo.

Em minha esquerda vi uma pilha com roupas mal embrulhadas dentro de um grande pano, e sacos que pareciam conter alimentos. Fiz um esforço para me apoiar em meus cotovelos e me erguer, mas senti dor em meu braço esquerdo, o que trouxe de volta a memória da explosão no Corvo de Estio e nossa fuga pelo mar.

Soltei um berro de dor e cai de costas novamente.

–Ei! Você está bem? – exclamou uma voz que eu desconhecia.

Minha visão estava turva, mas consegui ver o rosto do homem que viera me ajudar. Ele tinha olhos escuros e um queixo em cunha. Seu nariz era marcado, como se tivesse sofrido fraturas em tempos passados. Sua barba estava por fazer, os cabelos eram curtos e negros, mas muito mais escuros do que o preto convencional, olhá-los era como encarar a própria escuridão da noite. O homem portava uma expressão de compaixão e preocupação.

–Ei, garoto, consegue me ouvir? – perguntou o homem.

–Gregório – tentei dizer, com uma voz rouca e fraca - Onde estão Gregório e Sabrina?

–Seus companheiros? Eles estão juntos de Minha Senhora na carruagem.

–Eu não posso ficar aqui, eu tenho que ir ver os dois – eu disse, me levantando de forma desajeitada.

–Espere garoto! Você não está bem! – disse o homem de cabelos negros.

Caminhei alguns passos dentro da carroça, mas me desequilibrei, pois o transporte estava em movimento, resultando numa queda que me fez ser arremessado para uma estrada de terra. Bati meu ombro esquerdo no chão.

–Parem! O garoto caiu! – gritou o homem.

Senti uma onda de dor percorrer meu braço, que já estava ferido por conta da batalha no Corvo de Estio. Mas dessa vez a agonia se tornou insuportável, me forçando a chorar e espernear de dor.

Minha consciência apagou por alguns instantes, mas logo a recuperei.

Escutei o som de passos apressados pela grama rasteira.

–Drystan! – disse a voz de Gregório.

O mercenário colocou sua mão esquerda por baixo de minhas costas e a mão direita nas dobras de meus joelhos, me erguendo e me apoiando em uma das grandes rodas da carroça, de forma que eu permanecesse sentado. Gregório vestia um roupão preto e gasto que parecia ser pior do que suas roupas anteriores. Seu cabelo castanho estava penteado para trás, mas alguns fios caíram para os lados assim que ele se moveu de forma abrupta até mim. Sua barba carregava o aspecto limpo de sempre.

–Dói! – exclamei, com a mão direita sobre meu ombro esquerdo.

–Não se esforce! Seu ombro estava muito machucado, nós já o colocamos no lugar, mas você ainda precisa de repouso e tratamento! – disse Gregório.

–O que aconteceu Gregório? Onde nós estamos? – perguntei.

–Isso não importa agora, você precisa descansar – Gregório colocou suas mãos entre o manto de pele que me cobria, só então percebi as ataduras que enrolavam meu braço. O mercenário as checou, como se estivesse avaliando minha condição – Você bateu o ombro outra vez? É muito azar.

–Estou tão ruim assim?

–Vai sobreviver. Você é forte – Gregório riu – Mas não se esforce. Coma alguma coisa, você dormiu como um urso durante dois dias, então deve estar faminto.

–Por que pararam? Eu mandei seguir viagem sem fazer pausas! – gritou uma mulher que se aproximava de nós.

A mulher usava um vestido branco, com espirais douradas bordadas nas mangas e na grande faixa negra que delineava sua cintura. Ela tinha os cabelos tão negros e sombrios quanto os do homem que eu vira na carroça, seus olhos eram pequenos e davam a impressão de que ela desprezava tudo o que via. Seus lábios eram grossos, fazendo com que sua boca se destacasse. Dois homens vestindo cotas de malha e portando lanças a acompanhavam, como se fossem dois guardas.

–E então? Por que paramos? – disse a mulher, olhando para Gregório.

Antes que o mercenário retornasse o olhar frio da mulher, o homem de cabelos negros que eu vira na carroça tomou nossa frente.

–Minha Senhora, por favor, me perdoe! Por um descuido meu o garoto caiu da carroça – disse o homem, se ajoelhando e abaixando a própria cabeça até o chão – Prometo para a Senhora que não vai acontecer outra vez!

A mulher estendeu a mão para um de seus guardas.

O guarda respondeu entregando uma vareta negra que deveria ser usada para bater em um cavalo.

–Inútil! – a mulher bateu nas costas do homem de cabelos negros, rasgando a roupa que ele usava na parte que recebeu o golpe – É isso que você é! Um inútil! – a mulher bateu no homem outra vez – Erga-se!

O homem obedeceu.

–Você pensa que eu me importo se o maldito garoto caiu da maldita carroça? – a mulher chicoteou o rosto de seu servo, fazendo com que o homem se curvasse para a direita – Pensa mesmo?

–Ei! Pare de bater nele! A culpa foi minha! – gritei, tentando me levantar sem sucesso.

Gregório colocou um braço na minha frente, para que eu parasse de falar, mas já era tarde, a mulher voltara seu olhar gelado até mim.

–Você está me dando uma ordem? – o rosto da mulher se tornou rubro – Você e seus amiguinhos só estão vivos por minha causa, está ouvindo? – a mulher se aproximou de nós.

Gregório se levantou.

–Não vai acontecer outra vez, como seu servo mencionou – disse o mercenário, com um tom sério e seco.

A mulher pareceu se sentir mais ofendida.

– O que está acontecendo? – disse Sabrina, que por fim aparecera ao lado de Gregório.

Sabrina portava olhos escuros e sobrancelhas arqueadas, um nariz fino e arrebitado, com um lábio inferior mais grosso que o superior, e longos cabelos negros voltados para trás. No entanto o que fixava meu olhar na mercenária era o vestido azul escuro que cobria seu corpo alto, uma peça sem muitos enfeites ou bordados. A roupa deu a Sabrina uma aparência ainda mais bela e feminina, apesar de ser um simples vestido de camponesa. Ela não usava o cinto convencional que prendia suas duas lâminas, mas em sua mão esquerda a mercenária empunhava uma das espadas, pronta para ser desembainhada.

–O que está acontecendo, é que vocês são tolos ingratos! Na próxima vez que cometerem outra insolência dessas, serão esfolados! – gritou a mulher.

–Esfolados? Por quem? Você e esses dois retardados do seu lado? Apenas tente – respondeu Sabrina.

–Sabrina, basta! – Gregório me segurou em seus braços outra vez – Drystan está bem, isso que importa. Senhora Shannon, prometo que não acontecerá outra vez.

Senhora Shannon resmungou uma ou outra palavra, mas não pude escutar com clareza, pois Gregório me levava novamente até a carroça onde eu estava. Enquanto eu era posto no transporte, percebi a presença de uma pequena garota que observava toda a cena.

A garota aparentava ter metade da minha idade. Ela tinha cabelos muito lisos e negros, como os dos demais estranhos que eu vira desde meu despertar. Um pequeno vestido branco e caro, com bordados amarelos iguais aos de Senhora Shannon, cobria seu corpo, destacando ainda mais sua pele rosada em seu rosto redondo. Ela me observava com certa curiosidade, mas possuía um olhar triste, como se estivesse sentindo minhas dores.

O servo de Senhora Shannon impediu que Gregório subisse na carroça junto de mim.

–Por favor, não deixe Minha Senhora mais irritada, lembre-se que vocês concordaram em ficar longe das bagagens e dentro do campo de visão dos guardas – disse o servo, com uma voz cansada e uma expressão que deixava clara a dor que o homem sentia em suas novas feridas.

–Tudo bem. Mas você pode cuidar de Drystan na minha ausência? – perguntou Gregório.

–Farei o que puder – respondeu o servo.

–Obrigado – Gregório deu alguns passos, mas logo se voltou novamente em direção ao servo – Quando acamparmos, eu fecharei esses seus machucados.

O servo acenou com a cabeça, depois subiu na carroça, se sentando perto de mim e cobrindo o rosto com as duas mãos, tentando reprimir a própria dor.

Permaneci em silêncio enquanto todos pareciam retomar seus lugares e a carroça voltava a seguir a carruagem de Senhora Shannon.

–Desculpa – eu disso ao servo.

–Não se preocupe. Isso não é algo tão incomum em minha rotina. Você está com fome não é mesmo? – ele sorriu e retirou um grande pão de dentro do saco que guardava os alimentos – Aqui, pode comer.

–Tem certeza? Você não vai ter mais problemas por minha culpa?

–É seu direito comer a vontade. Foi o acordo que seus amigos fizeram com Senhora Shannon – disse o servo.

–Agora que você falou, eu não me lembro de nada. Só do Corvo de Estio sendo incendiado, e de cair no mar – mordi um pedaço do pão – Onde nós estamos?

–Na estrada para Sieg – respondeu o homem.

–Na estrada pra onde?

Ele riu.

–Vamos com calma, você parece não estar entendendo nada – o servo passou a mão esquerda sobre o corte em seu rosto, fruto do golpe de sua Senhora – Meu nome é Conall, prazer em conhecê-lo.

–Ah, prazer. Meu nome é – eu dizia, antes de ser interrompido.

–“Drystan”. Os seus amigos não paravam de falar seu nome quando nos encontramos dois dias atrás. Eles estavam muito preocupados com você – disse Conall.

–Em que reino nós estamos? – perguntei.

Conall pareceu pensar por algum tempo.

–Estamos no Vale do Soberano, um dos quatro – Conall fez uma pausa – Não. Um dos três reinos da Península Impérvia.

–Então nós conseguimos! Chegamos até Impérvia! – exclamei, fazendo com que Conall risse.

–Eu não comemoraria tanto se fosse você – Conall me ofereceu um cantil com água – Bom, dois dias atrás, nós passávamos por uma estrada próxima ao litoral deste reino, e esbarramos com os seus amigos. Eles estavam sujos e exaustos, o homem, Gregório, te carregava nas costas, e implorou para que nós o ajudássemos.

Fiquei em silêncio por algum tempo, me sentindo agradecido por Gregório.

–Mas a sua Senhora não parece ser o tipo de mulher que ajudaria pessoas sujas e exaustas – eu disse.

Conall desviou o olhar.

–Tem razão. Senhora Shannon, assim como a maioria das pessoas nesse reino, ou melhor, em toda Impérvia, é intolerante com aqueles que julga serem inferiores. E todos aqui são ainda mais intolerantes com estrangeiros – disse o servo.

–Vocês não gostam de se misturar com os outros países? Isso explica a dificuldade que é chegar até aqui – eu disse, apesar de não ter noção alguma da relação entre os reinos. Eu apenas repetira o que Gregório me ensinara.

Conall sorriu.

–Não quero parecer mal agradecido, mas, por que nos ajudaram? – eu disse.

–Senhora Shannon estava prestes a ordenar que seus guardas atacassem seus amigos, para “limpar a estrada”. Mas Senhora Nolwenna chorou e pediu para que nós os ajudássemos – disse Conall.

–Nolwenna? Quem é Nolwenna? – perguntei.

–A filha de Senhora Shannon, uma garotinha em vestido branco – disse Conall.

–Então, sua Senhora nos ajudou só porque a filha pediu?

–Não, Senhora Shannon ordenou que os guardas atacassem mesmo assim.

–Que desgraçada – levei a mão direita até minha boca ao notar a imbecilidade que eu acabara de dizer na frente do servo da nobre – Desculpa! – abaixei minha cabeça – Desculpa! Gregório vive me dizendo para controlar minha boca, mas eu simplesmente não consigo! Desculpa! Por favor, não nos expulse!

Conall riu.

–Tudo bem. Eu entendo como se sente. Na verdade o que convenceu Senhora Shannon a ajudá-los foi sua amiga alta, Sabrina. Ela desarmou os guardas num piscar de olhos. Eu achei que sua amiga ia matar eles, mas então Gregório disse que apenas queria nossa ajuda até que você se recuperasse – disse o servo.

–Esse é o tipo de coisa que Sabrina faria – comi o ultimo pedaço do pão – Mas ainda assim, eu não entendo o porquê de estarmos aqui. Não poderíamos simplesmente ir pra uma cidade qualquer?

–Visitantes não autorizados são proibidos em Impérvia. A maioria é capturada e escravizada pelos nobres. Talvez seus amigos soubessem disso, e por isso tenham pedido nossa ajuda. Gregório até nos pediu para tratá-los como serviçais de Senhora Shannon caso cruzássemos caminhos com algum soldado do reino, porque seria óbvio para qualquer nativo de Impérvia que vocês são estrangeiros – Conall fez uma pausa ao notar a dúvida em meu rosto – São os cabelos. Quase todos os nativos têm cabelos negros como os meus. Então fica fácil distinguir quem nasceu aqui e quem nasceu em outro reino.

–Disfarces. Isso explica Sabrina estar usando um vestido. Mas vocês realmente detestam estrangeiros então. – eu disse.

–Sim. E eu não saberia explicar o motivo – Conall olhou para cima – Está anoitecendo, acamparemos em breve.

–E quem são vocês? – perguntei.

–Quem nós somos? Bom, essa é uma pergunta que seria melhor continuar sem resposta. Mas como vocês estão aqui ilegalmente, acredito que uma ameaça a mais em suas vidas não faça diferença – Conall fez uma pausa – Senhora Shannon e Senhora Nolwenna são as ultimas remanescentes da Casa Real do Reino das Cordilheiras. Não sei se você entenderia se eu o explicasse, mas, o Reino das Cordilheiras fica a oeste daqui, e recentemente passou por uma revolução. Por causa disso, a família real foi caçada e nós tivemos que fugir.

–Revolução?

–Sim. Grande parte do povo se reuniu e tomou os castelos dos nobres. Eles estão querendo criar um reino sem rei – disse Conall, com um sorriso no rosto.

–Um reino sem rei? Isso não faz sentido – resmunguei.

–Para mim faz todo o sentido e até soa melhor – disse o servo, rindo.

–Mas para onde vocês estão fugindo?

–Para um reino aliado da casa de Senhora Shannon, o Reino de Sieg. Gregório mencionou que também estava indo para lá, então nossos interesses provavelmente estão unidos agora – disse Conall.

–Ele fala pra todos o que quer fazer, menos pra mim, incrível – eu disse.

–Deve haver um bom motivo pra isso. Gregório não me parece o tipo de homem que age sem pensar.

–Eu sei – fiz uma pausa – Sou muito grato a ele e a Sabrina. Eles dizem que tudo de ruim que acontece comigo é culpa deles, e que sou responsabilidade deles, mas a verdade é que me sinto feliz viajando com os dois.

A carroça parou de forma abrupta.

Conall ergueu sua cabeça para vigiar o que estava acontecendo mais a frente.

–Soldados do reino. Fique quieto – Conall jogou panos e mais panos em cima de mim, tentando cobrir minha presença – É melhor que eles não te vejam.

Escutei vários passos se aproximando e pude espiar o que estava acontecendo por uma das frestas da carroça.

–O que vocês querem? - disse um dos guardas de Senhora Shannon, falando a um grande grupo de soldados que nos cercava. Calculei que deveria haver no mínimo doze homens em nossa volta.

–Estamos procurando por pessoas suspeitas que possam estar vagando por essas estradas – disse o líder do grupo de soldados. Ele vestia cota de malha, assim como todos os outros guerreiros, mas usava um elmo em formato de pássaro que o destacava dos demais.

–Não passamos por ninguém suspeito em nossa viagem. Agora, se puderem nos liberar, Minha Senhora está com pressa para chegar até seu destino – disse o guarda de Senhora Shannon.

–Vocês! Soldados! – gritou Senhora Shannon, abrindo a porta de sua carruagem e saindo as pressas, correndo em direção aos soldados – Estamos sendo ameaçados por dois bandidos! Eles são estrangeiros que estão fazendo minha filhinha de refém, por favor, me ajudem!

–Desgraçada! – sussurrei.

O homem com elmo de pássaro esbofeteou Senhora Shannon com as costas de sua mão direita, um golpe que sem dúvida doeu mais do que o normal, pois a mão do soldado estava revestida por uma luva de metal. A nobre caiu no chão e demorou algum tempo para assimilar o que estava acontecendo.

–Mamãe! – gritou uma voz de criança, vinda da carruagem, julguei-a como a voz de Senhora Nolwenna.

Senhora Shannon, prostrada ao chão, passou a mão pelo rosto, limpando o sangue de sua boca.

–Por quê? – foi tudo o que a nobre conseguiu dizer.

–Sinto muito, “Minha Senhora”, mas nós não estamos aqui para caçar estrangeiros ou bandidos – o soldado chutou o estômago da nobre – Estamos aqui para matar Rainha Shannon e sua filha.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigado por ler e acompanhar, toda crítica será bem vinda :)

Próximo Capítulo: A Carruagem no Vale - Parte Dois.