A Dança das Lâminas Rubras escrita por João Emanuel Santos


Capítulo 8
A Caça ao Corvo de Estio - Parte Três.


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem :)



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Ao amanhecer, eu, Gregório, e Sabrina, continuávamos presos de costas ao mastro do Corvo de Estio, amarrados por cordas grossas e vigiados por dois saqueadores mal encarados que constantemente apontavam suas espadas para nós. Eu estava virado para a fronte do barco, o que me permitia ver o sol nascendo e clareando o céu aos poucos. Sabrina e Gregório estavam virados para o lado oposto.

Tudo o que eu escutava era o som dos grandes remos de madeira batendo na água do Mar Parco. Pois os saqueadores haviam adotado o silêncio e a apreensão, se reunindo aos poucos na parte de trás do Corvo de Estio.

–Ei, Sabrina. O que está acontecendo aí atrás? – perguntei em voz baixa.

–Não tenho certeza, mas parece que tem alguns barcos nos perseguindo já faz algum tempo – disse a mercenária, com seu sotaque e “r” arrastado.

–Barcos? Espera, você acha que aquele barco gigante está vindo atrás de nós? – exclamei.

–Sim. Mas não consigo enxergar o mar de onde estou. Então não posso saber se é isso que está acontecendo até que um desses bandidos confirme – disse Sabrina.

–Ei, Gregório, por que pediu pra não resistirmos? Poderíamos ter escapado, mas agora vamos ser todos mortos! – não obtive resposta do mercenário – Gregório? Está me ouvindo?

Sabrina pigarreou.

Souverain está dormindo – ela disse, com certa vergonha.

–Dormindo? – falei em voz alta – Como ele pode dormir numa hora dessas?

–Vocês aí! Fiquem quietos! – disse um dos saqueadores que nos vigiava.

Souverain disse que só deveríamos fazer alguma coisa caso uma batalha começasse, ou se o barco estivesse afundando – disse Sabrina.

–Esse. Esse. Arg! Depois de tudo o que ele falou na caverna, sobre manter a seriedade, ele simplesmente dorme quando estamos prestes a ser mortos!

–Naquele momento Souverain deveria se manter sério enquanto tentava negociar com o Corvo – Sabrina fez uma pausa, como se tentasse arrumar alguma justificativa para Gregório estar dormindo – Mas agora não há necessidade de se manter sério – a mercenária fez outra pausa ao notar que sua ultima frase não fazia sentido – E nós é que devíamos nos envergonhar por ter estragado a chance de fazer um acordo.

–Era impossível fazer um acordo, eles são saqueadores! Além disso, foi você quem se descontrolou e começou a rir do “Capitão Voz Fina”.

–Mas você escutou aquela voz? Impossível era não rir daquela voz! Espera – Sabrina riu outra vez.

–Do que você está rindo agora? – perguntei.

–É que. Você falou “Capitão Voz Fina”.

–Arg! Você e Gregório são dois malucos!

–Maldição! Eu mandei vocês pararem de falar! – gritou o saqueador que nos vigiava.

–Seus pais não te ensinaram a não se intrometer na conversa das outras pessoas? – disse Sabrina, provocando o saqueador.

O homem ergueu a mão para bater na mercenária.

–Espere! – gritou uma voz fina, vinda do outro lado do barco – Tem coisas mais importantes a serem feitas agora! Aquele Colosso está quase nos alcançando, ajude os outros a prepararem as flechas e o óleo.

–Você vigia esses dois, eu estou cansado demais pra aturar esses insultos – disse o saqueador que iria nos atacar, falando com seu companheiro de vigília. O homem resmungou uma ou duas palavras enquanto se afastava de nós e se juntava aos demais saqueadores na parte de trás do Corvo de Estio.

–Drystan, você não acha esses homens tolerantes demais para saqueadores? – disse Sabrina, com a voz baixa.

–Agora que você falou, é verdade. Demos vários motivos pra que eles nos matassem. E até agora nada.

Escutei passos fortes na madeira, atrás de mim.

–Você e o garoto seguem esse homem, não é mesmo? – disse o Corvo, se referindo a Gregório.

–Sim – respondeu Sabrina, com um tom seco.

–Desde que apareceram na minha casa e me desrespeitaram, eu estou com vontade de atirar você e o garoto no Mar Parco, amarrados em uma âncora – o Corvo deu mais alguns passos – Mas graças a vocês eu pude conseguir algum tempo pra evitar o Colosso. Se no lugar de vocês o Rei enviasse qualquer outra pessoa, eu simplesmente teria ficado por ali e esperado um combate. Então antes de atirar vocês no mar, vou escutar o que esse homem tem a dizer – o Corvo fez uma pausa – Espera, ele está dormindo?

Sabrina soltou um longo suspiro de cansaço.

–Sim – disse a mercenária – Antes que eu acorde Souverain, você pode me dizer o que pretende fazer quanto ao barco que está nos perseguindo?

–Agora, tudo o que podemos fazer é fugir, mas eventualmente seremos pegos. Se tentarmos abandonar o navio, seremos abatidos por flechas, então quando eles nos alcançarem, nós vamos ter que lutar até a morte.

–Eu tenho uma alternativa – disse Gregório, despertando convenientemente de seu sono – Duas, na verdade.

–Estou ouvindo – disse o Corvo.

–O Senhor sabe que apesar de ser grande, o Colosso é um barco muito mais lento do que esse – disse Gregório.

–Isso só é meia verdade – o Corvo deu alguns passos, não pude ver para onde, pois ele e os mercenários estavam no lado oposto do mastro – Normalmente seriamos mais rápidos, sim, mas temos poucos homens, apenas sessenta. Por causa disso não podemos usar todos os remos do barco. E enquanto isso eles avançam pra cima de nós com toda a força. Como eu disse antes, cedo ou tarde eles vão nos alcançar.

–Ainda assim, há uma alternativa. Se o Senhor virar seu barco para a esquerda ou direita, pode atingir terra firme antes que eles nos alcancem – disse o mercenário.

–Se fizermos isso, eles vão fazer a mesma coisa. E aí teremos que lutar em terra, com uma desvantagem muito maior – disse o Corvo.

–Depende de onde desembarcarmos – disse Gregório.

–Como assim?

–Se o Senhor se virar para a direita, teríamos que desembarcar em território do Reino de Estio, e além de termos dificuldade em arranjar um bom ponto para descer, nós ainda teríamos que lutar contra os homens de Rei Lugaid.

–“Mas”? – disse o Corvo.

–Mas, se o Senhor se virar para a esquerda, o destino será a Península Impérvia. Se um Colosso enviado por Rei Lugaid fosse avistado no litoral de um dos reinos de Impérvia, isso seria considerado uma declaração de guerra, afinal barcos estrangeiros são proibidos por lá. E tudo o que um Rei com o mínimo de sanidade tentaria evitar, é entrar em guerra contra um dos reinos de Impérvia. Então, acredito que a melhor alternativa seja essa.

–Até que você não é dos piores – disse o líder dos saqueadores, com sua voz fina – Se isso der certo, eu te liberto. Mas os outros dois serão meus escravos, não vou deixar nenhuma pessoa me insultar e sair sem pagar o preço.

Sabrina soltou outro riso debochado, que por sorte, o Corvo pareceu não escutar.

O capitão do barco gritou a ordem, e o Corvo de Estio se virou para a esquerda.

Tudo parecia estar indo de acordo com os planos de Gregório. Pois apesar de sermos prisioneiros, havíamos conseguido uma forma de ir até Impérvia, algo que normalmente seria impossível. Mas após algum tempo, um aviso viajou pelo barco, nos alertando que o Colosso também tomara a mesma direção, mas se mantinha afastado de nós. E depois, quando o dia já estava quase em sua segunda metade, outro aviso surgiu, dizendo que o Colosso parecia estar avançado em relação a nosso barco.

–Sabrina, você consegue cortar as cordas? – disse Gregório, ao ouvir o segundo aviso.

–Só estava esperando o pedido, Souverain – disse Sabrina.

–Certo, não corte tudo de uma vez, apenas deixe-as frouxas, para que possamos escapar quando a batalha acontecer.

–O que? Mas eu achei que íamos escapar daquele barco gigante, você mesmo disse isso! – exclamei.

–Drystan, você não ouviu o que aquele saqueador gritou? O Colosso está em nosso lado esquerdo, mas está adiantado. Isso quer dizer que basta ele se virar em nossa direção que pode nos atingir usando a frente do barco – disse Gregório.

–Como assim “atingir”? Está dizendo que eles querem bater no nosso barco? Isso não faz sentido! – resmunguei.

–Drystan, o que torna os Colossos famosos, além do tamanho, é uma das peças do navio que eles usam para poder travar batalhas no mar.

–Peça? Que peça? –eu disse.

–Uma ponte. Ela fica presa na proa do barco, e assim que o Colosso usa sua parte da frente para bater no lado de outro barco, essa ponte desce e se firma, permitindo a passagem de dezenas de soldados. Resumindo, assim que aquele barco nos atingir, um exército vai simplesmente caminhar para dentro do Corvo de Estio e matar todos a bordo – explicou Gregório.

Fiquei sem palavras, por nunca ter imaginado que algo assim fosse possível, e por perceber que não tínhamos como escapar da batalha que estava por vir.

Ao meio-dia, o Colosso se voltou ao nosso barco.

E o caos se instalou no convés.

Enquanto meu nervosismo aumentava, os saqueadores corriam de um canto a outro do barco, largando os remos e se concentrando em cumprir as ordens do Corvo. Alguns homens se preparavam, tomando em mãos seus escudos e armas. Outros banhavam as pontas de suas flechas incendiárias em baldes com um líquido negro.

Quando o Corvo teve a certeza de que as flechas estavam prontas, organizou dez de seus homens em fila e soltou a ordem.

–Lançar!

Pude ver algumas das setas iluminadas voando no ar e sumindo no horizonte. Apesar disso eu ainda não podia enxergar o Mar Parco ou o Colosso.

–Preparem mais flechas! – gritou o Corvo.

Na pressa, um dos saqueadores tropeçou em um dos baldes, derrubando o líquido negro no convés.

–Seu imbecil! Eu mandei atear fogo no barco inimigo, não no nosso barco! – vociferou o líder dos saqueadores.

Os demais arqueiros lançaram suas flechas sem se preocupar em esperar as ordens do Corvo, não por desrespeito, mas por desespero. Pois o Colosso estava cada vez mais próximo.

Souverain, a corda está pronta – disse Sabrina, em voz baixa.

–Ótimo, assim que a ponte descer, nós saímos. Drystan, você consegue enxergar nossos pertences? Se não me engano, os saqueadores o colocaram logo na frente do barco.

–Sim, estou vendo – eu disse, ao enxergar o grande saco com toda nossa bagagem a vários passos de distancia.

–Não sei em que parte do barco o Colosso vai descer a ponte, então vamos ter que ser rápidos, assim que Sabrina soltar as cordas, eu quero que você corra até os nossos pertences e os traga para cá – disse o mercenário.

–Entendi.

Mas assim que dei minha resposta a Gregório, minha certeza se transformou em pavor, pois uma grande sombra se aproximou do Corvo de Estio.

Foi quando eu finalmente vi a proa do Colosso. Um barco que fez a escuridão tomar conta de metade do convés, por ter quase o dobro do tamanho de nosso barco. Uma grande massa de madeira que se afunilava e terminava em uma ponta revestida de metal que não demoraria a bater em nosso barco.

–Se afastem! Para a popa! Para a popa! – gritava o Corvo, para que seus homens fossem até a parte de trás do barco.

Por fim, a ponta do Colosso nos atingiu.

Tudo o que houve foi o balanço. O Colosso atingiu o lado esquerdo de nosso barco e o Corvo de Estio foi jogado para a direita, virando com força e se inclinando, fazendo com que os saqueadores se desequilibrassem e caíssem. Depois a maré virou o barco novamente, nos jogando para a esquerda e nos fazendo bater outra vez na frente do Colosso.

Na segunda batida, um grande estrondo de madeira se quebrando ecoou pelo convés, logo a meu lado. Só então percebi que as cordas que me prendiam já estavam soltas.

Tentei ignorar meu medo e me levantei, para correr até nossa bagagem.

Porém assim que alcancei o saco com nossos pertences, um grande pedaço de madeira e metal arqueou os céus. Saindo da frente do Colosso e atingindo o Corvo de Estio, próximo do lugar onde eu estava amarrado.

Era a ponte que Gregório mencionara mais cedo.

Enquanto a ponte descia, reparei nos ganchos de metal que ficavam em sua ponta. Assim que a estrutura de madeira bateu no convés do Corvo de Estio, os ganchos se prenderam ao barco, abrindo um caminho para que os soldados que estavam no Colosso viessem nos matar.

A queda da ponte provocou um terceiro balanço, fazendo com que eu caísse de costas, ainda com a mão esquerda presa a nossa bagagem. Os saqueadores saltaram de todos os lados do Corvo de Estio e se posicionaram de frente para a ponte.

–Não deixem eles passarem! Se eles passarem será o fim! – gritou o Corvo.

Os saqueadores ergueram seus escudos e formaram fileiras.

Senti algo molhar minha mão direita, e me ergui em susto ao perceber que era o liquido negro que banhara as flechas incendiárias. A batida havia feito com que os baldes derramassem seus conteúdos pelo convés. Isso demonstrava a falta de bom senso que o capitão do Corvo de Estio possuía.

–Escudos! – gritou o Corvo.

Os saqueadores que formavam as fileiras se juntaram ombro a ombro, e uniram seus escudos nas laterais, formando uma espécie de linha de escudos bem fechada e compacta em cada fileira. Aquela foi a primeira vez que vi uma parede de escudos se formando e recordo-me de achar tudo aquilo muito estranho. Pois eu nunca havia pensado em como seria uma batalha, então não sabia que os homens se reuniriam daquela forma para lutar.

Logo, os soldados de Rei Lugaid surgiram do outro lado da ponte de madeira, também formando sua própria parede de escudos. E assim que os dois blocos de homens se avistaram, correram para iniciar a batalha na ponte.

–Drystan! – gritou Gregório, no lado oposto de nosso barco, me tirando de meu transe.

Uma flecha voou e atingiu a madeira ao lado de minha perna direita. Vários arqueiros estavam formando fileiras no convés do Colosso, se preparando para jogar uma chuva de flechas em nosso barco.

–Se escondam! – gritou um dos saqueadores que ainda não havia subido na grande ponte de madeira.

Joguei-me ao chão, em desespero. Pois assim que as flechas atingissem o Corvo de Estio, todos nós morreríamos.

Mas antes dos arqueiros receberem sua ordem, um dos saqueadores em nosso barco correu pelo convés, carregando uma tocha acesa.

–Seu idiota! Apague isso antes que o barco pegue fogo! – gritou outro saqueador.

O homem com a tocha parecia não estar escutando, ele continuava a correr em direção à ponte, como se estivesse enfeitiçado.

Ele havia perdido a sanidade por conta do medo.

O saqueador ergueu sua tocha, como se pretendesse a jogar no Colosso, mas enquanto seu braço ainda estava no ar, ele recebeu uma flecha em seu peito, seguida por outra seta em seu joelho.

–Ei! Alguém apague a tocha antes que ela caia! – gritou um dos saqueadores.

No entanto, já era tarde para isso. E enquanto as duas paredes de escudos tentavam se empurram e estocar na ponte de madeira, o saqueador com a tocha tombou, deixando que o fogo batesse no líquido negro que ensopava o convés, próximo a ponte.

–Drystan! Se abaixe! – gritou Gregório.

Um estouro aconteceu ao lado da ponte, onde o líquido negro estava mais concentrado, criando uma grande cortina de fogo que rapidamente preencheu o lado esquerdo do Corvo de Estio e separou a ponte do barco.

A força do impacto fez com que eu fosse jogado para trás, batendo meu ombro esquerdo na madeira do convés. Gritei de dor por causa da batida, enquanto tentava me erguer apoiando o braço direito no parapeito do barco.

Assim que me levantei, escorei meu peito ao parapeito e segurei meu ombro ferido com a mão direita, por conta da dor insuportável.

Apesar disso, pude ver que estávamos próximos a um litoral, onde havia uma terra verde e plana logo após a costa de areia.

Olhei para trás, e tudo o que vi foram chamas, se espalhando pelo convés com rapidez e vindo em minha direção. Senti uma gota de sangue escorrer por meu rosto e entrei em pânico ao perceber que eu estava isolado de Gregório e Sabrina.

Não consegui pensar em como fugir. O litoral estava próximo, mas eu não conseguiria nadar com o ombro machucado. Tudo o que eu podia fazer era permanecer onde estava.

A fumaça e a dor começaram a atrapalhar meus sentidos. Caí no convés, olhando para as chamas que dançavam e engoliam o barco.

Quando eu estava prestes a perder a consciência, dois grandes pedaços de pano negro atravessaram o fogo. E de dentro dos mantos negros, saíram os dois mercenários, correndo até mim.

Gregório envolveu meu torso com seu braço esquerdo e jogou meu peso para trás, me apoiando e segurando em seu ombro, enquanto Sabrina pegava nossa bagagem.

–Aguente firme! – disse Gregório.

De repente comecei a me sentir leve, como se estivesse flutuando. Os dois mercenários haviam saltado do barco.

E enquanto nós caíamos no Mar Parco, eu vi o Corvo de Estio em chamas, enquanto várias pessoas gritavam em agonia.

O barco se tornou cada vez mais distante, até que nós três caímos na água gelada.

E minha visão escureceu.


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Notas finais do capítulo

Uma nota sobre os barcos. O "Colosso", se espelha nos grandes Quinqueremes, que foram barcos de guerra usados no Período Helenístico, mais especificamente nas Guerras Púnicas entre a República Romana e Cartago. Esses barcos eram realmente muito grandes, e de fato possuíam a tal "ponte" que o Colosso mostrou nesse capítulo. Mas confesso que, em minha história optei por aumentar as proporções tanto da ponte quanto da impressão que alguém teria ao olhar o barco.
Espero ter descrito com clareza a imagem que visualizei ao pensar nessa parte da história. Pois pra mim é realmente complicado escrever sobre barcos.


Obrigado por ler e acompanhar. Toda crítica será bem vinda o/


Próximo Capítulo: A Carruagem no Vale - Parte Um.