A Dança das Lâminas Rubras escrita por João Emanuel Santos


Capítulo 4
O Caminho do Mar Parco - Parte Um.


Notas iniciais do capítulo

Agradeço por esperarem o capítulo :D

Esse demorou mais do que o normal pra sair, apesar de eu ainda não ter criado uma rotina para os lançamentos.

Sobre o mapa que está nesse capítulo, é o mapa do continente onde se passam minhas histórias. Não estou satisfeito com essa versão do mapa, mas atrasar o lançamento do capítulo por conta disso não faria muito sentido.

Espero que gostem o/



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Três dias após o incêndio em meu povoado, nós continuávamos nossa viagem pelo campo norte de Alvaterra. Até então eu decidira não fazer perguntas sobre a jornada de Gregório e Sabrina, não por cortesia, mas por estar com a mente preenchida pelo luto. Pois a morte de minha mãe ainda era recente, e assombrava minhas noites.

Nós havíamos deixado para trás os terrenos mais inférteis do norte de Alvaterra, e seguíamos em direção ao Rio Vermelho.

Eu caminhava olhando para baixo, evitando pisar nas partes enlameadas da estrada de terra. O sol estava escondido atrás de várias nuvens cinzentas, sinal de que uma chuva cairia em breve. Apesar disso, o ar do campo era surpreendentemente prazeroso, diferente de meu povoado.

–Drystan, sabe por que o chamam de “Rio Vermelho”? – perguntou Gregório, pondo a mão esquerda em meu pequeno ombro.

Olhei para ele.

Gregório era um homem jovem, tinha vinte e seis anos, mas carregava um ar de confiança e sabedoria que poucas pessoas, até entre as mais velhas, carregavam. Seus cabelos lisos e castanhos estavam mais bagunçados do que o normal, caindo por todos os lados de sua cabeça. A barba era cheia e pontiaguda, tornando-o mais velho em aparência. Assim que olhei para ele, percebi um brilho incomum em seus olhos verdes. Não era um brilho provocado por reflexos do ambiente, era um brilho próprio, muito discreto.

–Drystan, está me ouvindo? – ele perguntou, com serenidade.

–Ah, desculpa, estava pensando – eu disse.

–Como eu dizia. Estamos caminhando em direção ao Rio Vermelho, sabe o porquê do rio ter esse nome? – ele perguntou.

–Por quê?

–Existe um grande território após a margem esquerda do rio, esse território está sempre sendo disputado por Alvaterra e Sudelor – disse Gregório.

–Então, essa última guerra foi por causa desse território? – perguntei.

–Sim, e como você sabe, Alvaterra recuperou o território, mas ainda assim é um lugar perigoso, por causa da tensão entre os moradores que vieram de Sudelor e os nativos de Alvaterra.

–Mas se Alvaterra ganhou a guerra, por que não expulsaram as pessoas que vieram de Sudelor? – eu disse.

Gregório parou de falar por alguns instantes, pensativo.

–Você acha que seria justo? – ele perguntou.

–Guerra é guerra, certo? – eu disse.

–É mais complicado do que você pensa, Drystan, muito mais. Espero que você entenda isso com o tempo.

Franzi o cenho, aborrecido.

–Mas, já que o assunto “entender isso” surgiu, você sabe ler e escrever? – Gregório perguntou.

–Claro que não! – retruquei.

–Nesse caso, durante nossas viagens, vou te ensinar. Procuraremos por livros ou pergaminhos na próxima cidade – ele disse.

–Por que devo aprender a ler e escrever? Isso é coisa de nobres – eu disse.

–Se você vai viajar conosco, precisa aprender a cuidar de si mesmo. Saber ler e escrever pode te ajudar de uma forma que você nem imagina – disse Gregório, sorrindo.

–Tudo bem – fiz uma pausa – Mas até agora não entendi o porquê do rio se chamar “Rio Vermelho”.

Gregório riu.

–Me desculpe, eu costumo desviar dos assuntos iniciais com muita frequência. Enfim, ele tem esse nome por conta das inúmeras batalhas que já ocorreram em suas margens. É comum que a água do rio se torne vermelha após as batalhas, por causa do sangue dos soldados.

A imagem de Sabrina caminhando entre os corpos dos vinte homens de Senhor Brandon retornou a minha mente, me fazendo sentir um calafrio. Apesar de ela estar fazendo justiça por meu povoado e por minha mãe, eu não podia deixar de sentir medo de Sabrina.

Olhei para a mercenária, que estava caminhando vários passos à frente. Os grandes cabelos negros de Sabrina balançavam de um lado a outro sempre que ela dava um novo passo. Ela era alta, mas não possuía ombros largos. Um grande saco de pano estava preso em suas costas, com metade de nossa bagagem. Eu carregava a outra metade.

Gregório percebeu meu olhar assustado indo em direção a Sabrina assim que ele mencionou o sangue dos soldados.

–Você está distante, Drystan. Eu compreendo que a dor ainda esteja forte, mas você está distante de nós, principalmente de Sabrina – ele disse.

–Não estou distante. Só estou cansado de carregar sua “Besta” por aí – resmunguei, pois a arma de Gregório de fato pesava muito.

Ele riu.

–Desculpe-me pelo trabalho. Mas, deixe-me contar sobre o dia em que fomos caçados por um grupo de bandidos que usavam tapa-olho – disse Gregório.

–Não mude de assunto! Além disso, todos os bandidos usavam tapa-olho? Que invenção é essa? Quer que eu acredite numa bobagem dessas? – exclamei, fazendo com que Gregório risse novamente.

E assim prosseguimos durante todo o trajeto até o Rio Vermelho.

Após algumas horas, estávamos na margem.

As duas margens do rio eram cobertas por grama curta, com apenas algumas árvores distribuídas do nosso lado. O terreno a nossa esquerda se abaixava aos poucos, até chegar numa grande descida por onde uma cachoeira passava. Na outra margem, havia grandes pedaços de rocha cinzenta espalhados num certo ponto, ruínas de alguma construção antiga.

–O que é aquilo? – perguntei a Gregório.

–Uma ponte. Derrubaram a maioria das pontes com o passar dos anos, com exceção de uma. Mas nós não vamos até lá agora, temos que parar antes que comece a chover.

–Ei, Gregório. Por que Alvaterra e Sudelor lutam por aquelas terras? – perguntei, olhando para a outra margem do rio.

–Prata. Existe um grande trecho que está cheio de minas com prata, ele começa após o Rio Vermelho, e termina em um dos reinos de Terlos – ele respondeu.

Sabrina se aproximou de nós.

Apesar da brutalidade que mostrava em batalha, a mercenária era uma bela mulher. Seu rosto carregava olhos escuros, sob duas sobrancelhas arqueadas. O nariz era arrebitado e fino. A boca era naturalmente vermelha, e tinha o lábio inferior mais grosso que o superior. Seus longos cabelos negros caiam por suas costas e por seus dois ombros pequenos.

–Souverain, tem um lugar onde podemos passar a noite, próximo à cachoeira -- disse Sabrina, com seu “r” arrastado.

A mercenária havia tomado distância antes, para procurar um lugar onde nós três poderíamos acampar.

–Ótimo – Gregório se virou para mim - Drystan, depois que chegarmos à cachoeira, eu posso carregar sua bagagem – disse Gregório.

–Mas a bagagem é sua! E quando chegarmos lá, nós vamos montar acampamento! Você está tirando vantagem da minha situação! – eu disse.

–Você tem razão – Gregório fez uma longa pausa, como se ponderasse sobre minhas reclamações – Eu estou tirando vantagem – ele terminou, rindo.

–Seu. Seu. Seu explorador de crianças! – exclamei, fazendo com que ele risse novamente.

Andamos através de uma pequena trilha marcada por pedras, que ficava próxima ao Rio Vermelho, e após algum tempo, chegamos até a descida que levava a cachoeira.

No fim da descida, nós três nos viramos para a direita e vimos a grande queda d’água. O topo era delimitado por várias pedras pontiagudas que direcionavam o caminho do Rio Vermelho até uma queda com a altura de no mínimo cinco homens. A água que caía do terreno superior fazia muito barulho ao atingir a parte baixa, mas ainda assim, o som era tranquilizador. E entre a descida e a cachoeira, havia uma grande rocha que saia do terreno superior e se projetava para frente, como uma continuação do campo. Havia um grande espaço abaixo da rocha que poderíamos usar para nos abrigar da chuva e acampar. E foi lá que passamos a noite.

Gregório acendeu uma fogueira e começou a preparar uma refeição. Naquela noite ele havia me dito que era um ensopado de peixe, mas algo no sabor me fez desconfiar que fosse carne de coelho outra vez.

–Ei, explorador de crianças, vocês já viajaram por Sudelor, certo? – perguntei a Gregório.

–“Explorador de Crianças” é bem rude, não acha? Apesar de ser merecido – Gregório riu – Mas sim, Drystan, em nossas viagens passamos por três países, sem contar minha terra natal.

–Então, como é Sudelor? – perguntei. Eu tinha muita curiosidade sobre o país que constantemente entrava em guerra com meu reino.

–Espere um pouco, mesmo depois de eu dizer as palavras “minha terra natal” e fazer um grande mistério sobre isso, você não quer saber mais sobre o assunto?

–Não.

–Você acaba com minha autoestima, Drystan – disse Gregório, rindo.

–Você é muito esquisito. Mas então, como é Sudelor? – perguntei novamente.

–Ah, Sudelor é um país muito belo! Famoso por seus vastos campos, por seus cavaleiros de armadura que competem em justas, por suas belas mulheres, por seus homens que adoram crescer bigodes, e também pelas roupas. Eu realmente nunca estive num lugar onde as pessoas fossem tão vaidosas. Em algumas cidades, plebeus se vestem como nobres, e nobres se vestem como, bom, com roupas tão extravagantes que parecem ter sido feitas para pavões usarem.

–Os pescadores diziam que era um país sem homens de verdade – eu disse.

–É apenas normal que as pessoas de Alvaterra odeiem as pessoas de Sudelor, e vice-versa, por causa das guerras. Mas não se deve subestimar aquele país, Drystan. Existem grandes forças por lá que não devem ser desafiadas. E se um dia você for até lá, não se meta com a corte, os nobres são perigosos, acredite em mim.

–Se “eu” for? Por que só “eu”? Vocês não vão lá outra vez? Mas você veio de lá, não é, Sabrina? – perguntei, olhando para a mercenária, que polia a lâmina de suas espadas com óleo.

–Não podemos voltar lá – disse Sabrina.

Gregório adotou o silêncio, como se perdesse o ânimo.

–Souverain, eu vou andar um pouco – disse Sabrina, recolhendo o manto negro do chão e cobrindo seu corpo.

–Sim, tome cuidado – disse Gregório, se sentando em seguida.

Esperei Sabrina tomar distância para voltar a falar.

–Ei, Gregório, mais cedo, você disse que não achava justo que as pessoas de Sudelor fossem expulsas do território que recuperamos com a guerra. Por quê? – perguntei.

–Drystan, as cidades de Sudelor estão lotadas, e os campos não tem mais lugar para novos trabalhadores. O reino prosperou muito em tempos antigos, e por causa disso, a população cresceu. Mas agora existem muitas pessoas miseráveis por lá.

–Então, o Rei de lá mandou essas pessoas pra nossas terras?

–Se você ainda vivesse em seu povoado, e tivesse uma oportunidade de se mudar para um lugar melhor, você não o faria? – disse Gregório.

Claro que sim!

–Certo, então digamos que você tenha conseguido se mudar para esse lugar melhor, e tenha vivido por lá durante dez longos anos, constituindo família e prosperando cada vez mais. Você gostaria de ser expulso de suas novas terras, por causa de uma briga entre dois Reis?

–Não. Não gostaria – eu disse.

–Exatamente! As pessoas que se mudaram de Sudelor para Alvaterra, são agora habitantes desse país, tanto quanto os pescadores do seu povoado. O Rei tem poder para tirá-los daqui, mas não seria sábio, nem justo.

–Entendi.

–Entendeu mesmo?

–A maioria das coisas – eu disse, fazendo Gregório suspirar.

Comemos o ensopado de “peixe” que ele havia cozinhado, até que o som de um trovão ecoou pela rocha.

–Drystan, você se importa de ir procurar Sabrina? Faz algum tempo que ela saiu, e vai chover logo – disse Gregório.

–Tudo bem, eu vou.

–Eu poderia ir, mas tenho um bom motivo para permanecer no acampamento – ele disse, com um ar pensativo.

–Que motivo? – perguntei.

–Preguiça.

–Você não tem vergonha? – exclamei, fazendo com que ele risse.

–Só mais uma coisa antes de você ir – Gregório me olhou com uma expressão séria – Evite olhar para Sabrina do jeito que você tem olhado nesses últimos dias. Ela já percebeu.

–De que jeito?

–Com medo.

Acenei com a cabeça e me levantei, caminhando em direção à cachoeira. A verdade é que não fui até lá para procurar Sabrina, eu queria dar uma olhada na queda d’água antes de fazer isso. Mas por ironia, era lá que a mercenária estava.

Enquanto eu caminhava, senti pequenos pingos de chuva caindo sobre meus cabelos. Eu usava uma camisa de linho encardida e surrada, que cobria todo meu tronco e meus braços. Minha calça era cinza, com as bordas dos pés desgastadas. Meus pés estavam cobertos apenas por calçados simples, que estavam prestes a se desfazer. Uma onde de frio correu por meu corpo, fazendo com que eu me arrepiasse e sentisse vontade de espirrar, mas segurei o espirro com meu antebraço direito, limpando o nariz na manga em seguida.

Aproximei-me da cachoeira, com os ouvidos tomados pelo som da queda d’água.

Foi quando vi Sabrina.

Ela estava se banhando na cachoeira, de costas para mim. Assustei-me ao ver que ela não usava roupas e caí para trás, com vergonha. Meu primeiro impulso foi sair correndo dali, antes que ela me visse e pensasse que eu estava a espionando. Mas algo nas costas da mercenária me chamou atenção, e fez com que eu continuasse a olhar para ela.

A pele de Sabrina era clara, e seu corpo possuía curvas bem desenhadas. Ela estava debaixo da queda d’água, espremendo seu cabelo negro com as duas mãos, no lado direito do corpo.

Nas costas, havia uma marca que cobria um longo trecho de pele. Uma tatuagem negra. Um grande e longo lagarto erguido, com o corpo em formato de “s”. O lagarto possuía dois pares de patas com garras. As costas da fera possuíam espinhos grossos, e sua cauda terminava numa lâmina afiada. Seus olhos eram marcados de forma a parecerem chamas. Por fim, havia uma coroa aberta na cabeça do lagarto.

Permaneci alguns instantes olhando para a grande marca nas costas de Sabrina, até que senti um toque em meu ombro. Me virei para trás, assustado.

Gregório olhava para mim com um olhar zombeteiro, fazendo sinal para que eu ficasse em silêncio.

–Desculpa! Desculpa! Desculpa! – falei aos sussurros.

–Me siga – disse Gregório, levantando e indo para o acampamento.

E eu o segui. Apreensivo.

–Me desculpa Gregório! Eu não estava espionando a sua mulher! – eu disse, assim que chegamos ao acampamento, com medo de que ele me mandasse embora.

Gregório riu.

–Não, o erro foi meu. Eu devia imaginar que ela estava indo tomar um banho. Mas sabe Drystan, Sabrina não é minha mulher – ele disse, se sentando novamente.

–Como assim? Então por que vocês viajam juntos? – perguntei.

Gregório ficou em silêncio por um momento.

–Acho que está na hora de você conhecer nossa história, já que vai nos acompanhar daqui pra frente – Gregório coçou sua barba pontiaguda – Você viu o basilisco nas costas de Sabrina?

–Basilisco? – perguntei.

–O lagarto tatuado nas costas dela.

–Sim, eu vi.

–Aquela é a marca de um antigo grupo de mercenários especializados em assassinato, os “Basiliscos de Sudelor”.

–Então – fiz uma pausa – Sabrina é uma assassina?

–Não é mais. Mas foi assim que eu a conheci – disse Gregório.

–Você a contratou pra matar alguém? Ou pra te proteger nas viagens?

–Não, Drystan. Ela foi contratada para me matar – Gregório riu – Você não deve mencionar que tivemos essa conversa, está me ouvindo?

–Sim.

–Pois bem, eu conheci Sabrina em minha visita a capital de Sudelor, cinco anos atrás.

E eu me sentei, para escutar a história de como ele e Sabrina se conheceram e se tornaram mercenários. Para escutar a história da busca de Gregório pela Fonte da Magia Antiga.


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Notas finais do capítulo

Obrigado por ler, toda crítica será bem vinda :D

Próximo Capítulo: O Caminho do Mar Parco - Parte Dois.



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