Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 5
O Primeiro Centauro que Conheci




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Acordei no dia seguinte com a impressão de que tudo tinha sido apenas um sonho, mas as cortinas vermelhas ao redor de minha cama trouxeram-me de volta à realidade.

Elizabeth dormia na cama ao lado. Emily estava na da frente, e ao seu lado dormia minha outra colega de quarto, Maísa. Liz, que era como Elizabeth preferia ser chamada, já estava em seu segundo ano em Hogwarts, e contou para mim e Emily como as coisas costumavam ser por aqui. Há pouco tempo, semideuses e bruxos não se “misturavam.” Hogwarts era apenas uma escola de magia e bruxaria, e muitos dos alunos nem sabiam da existência de deuses olimpianos - muito menos de seus filhos meio-humanos. Quando a escola mudou o sistema, passando a aderir semideuses e matérias mitológicas no plano curricular, muitos bruxos e semideuses não aceitaram.

Apesar de bruxos como Dumbledore, John e a própria Liz nos tratarem como iguais, a maioria dos bruxos ainda não aceitava a ideia, e não achava que pessoas como Emily e eu éramos dignas de estudar ali. Bruxos como Maísa.

Maísa era uma bruxa escocesa de cabelos castanho escuros e olhos claros que já cursava o terceiro ano. Diziam as más línguas que ela mal aceitava sua origem mestiça, então não era de se admirar que ela mantivesse distância da mistura entre humanos e deuses. Foi ainda por causa de bruxos como ela que os dormitórios deixaram de ser divididos por ano ou espécie. Uma boa tentativa para promover a aceitação e o relacionamento entre os alunos, mas não funcionou em todos os casos. Até mesmo alguns semideuses que foram para Hogwarts não gostavam de se “misturar” com os bruxos, e o clima tenso aumentava gradualmente.

Emily Benson, por outro lado, era um amor de pessoa. Tinha um estilo tranquilo, usando saia longa e colares grandes, e seus olhos castanhos brilhavam. Logo que chegou no dormitório, apenas alguns minutos depois de mim, e viu sua bolsa sobre uma das camas, sorriu e disse:

– Ah, aí está você! - E virou-se pra nós com sua coroa de rosas no cabelo castanho cacheado. - Esse lugar é psicodélico, cara!

Algum tempo depois, descobri que “psicodélico” queria dizer “estranho”.

Nós tínhamos mais em comum do que se poderia imaginar. Ambas tínhamos 18 anos, éramos semideusas que não conheciam seus pais olimpianos - no caso dela, sua mãe olimpiana -, acabamos de chegar em Hogwarts e estávamos apavoradas e ansiosas para o 1° dia de aula.

.

Naquela manhã, nós três seguimos juntas para o Salão Principal. Sentamos à mesa da Grifinória, e em meio ao farto café da manhã, percebi asas batendo sob nossas cabeças. Levantei os olhos e vi corujas entrando pelas janelas.

– São corujas!

– É o correio-coruja, passa todos os dias pela manhã - esclareceu Liz.

– Pode crer - disse Emily, suspirando ao observar as corujas com a cabeça escorada em uma das mãos.

O correio era fascinante, mas o café chamou-me mais atenção, e mal percebi quando uma das corujas passou rapidamente por nós, jogando um envelope em minhas mãos.

– Olhem só, recebi uma carta!

– Não é uma carta - Emily já segurava um pergaminho aberto. - É o horário das aulas.

Desenrolei meu pergaminho rapidamente, ansiosa para saber que tipo de matéria seria ensinada naquela escola.

– Nossas aulas são as mesmas - disse, enquanto comparava meu horário com o de Emily.

– É porque nenhuma das duas sabe quem é o seu pai deus-do-olimpo ainda - respondeu Liz. - Depois vocês podem mudar algumas matérias, de acordo com as habilidades que tiverem.

– Pra uma bruxa, até que você saca bem essa parada de semideuses! - Riu Emily.

– Desde que vocês não contem isso pra ninguém…

Terminamos o desjejum entre risos e fomos em direção ao Hall de Entrada. Passei pelas portas do Salão distraída, e nem percebi que John Reed conversava com um grupo de rapazes mais velhos.

– Cecília! - Ele exclamou ao me ver - Tem alguém que quero te apresentar…

– Não precisa se dar ao trabalho - falou a voz de um dos rapazes do grupo. - Eu mesmo faço isso. Finn Reed.

– O prazer é meu, Finn - respondi, enquanto ele beijava minha mão e a de Emily. Liz ganhou um beijo no rosto.

Só de olhar já era fácil identificá-lo como irmão de John. Eles eram muito parecidos, mas Finn tinha os olhos de um verde mais escuro e o rosto livre de sardas, enquanto John possuía algumas tímidas no nariz. Finn também era uns bons 5cm mais alto que John e um ano mais velho. As garotas suspiravam por onde ele passava, e minhas novas amigas não ficaram atrás.

– Cuidado pra não se perder por aí - John disse à mim, enquanto Liz e Emily se entretinham com Finn. - As escadas mudam de lugar, e você não vai querer ir parar numa sala escura, sozinha… Nunca se sabe quem ou o quê pode estar escondido por aí.

Ele sorria, com os olhos brilhando de malícia. Finn pode ser o mais bonito, mas John é o cara-de-pau da família, pensei. Aquilo me divertiu.

– Não se preocupe, eu não tenho medo do escuro. Mas… as escadas mudam mesmo de lugar?

Hogwarts ficava cada vez mais interessante. O bruxo riu com a minha surpresa, como se ele já tivesse visto de tudo em seus 19 anos de experiência.

– Achei que garotas como você não se surpreendessem com esse tipo de coisa.

– Não há garotas como eu. Só eu.

Aquilo, eu percebi, surpreendera-o. Homens como Finn e John estavam acostumados a receber risinhos e flertes como resposta pra tudo. Até mesmo Logan, quando ele resolvia conversar com alguém. John olhou pra mim de uma maneira diferente, com certa admiração. Aproveitei a deixa da minha frase de efeito para puxar Emily pelo braço e ir em direção ao jardim. Finn e Liz já subiam as escadas para os andares superiores.

– Até logo, ruiva - disse John, enquanto eu o deixava apenas com um sorrisinho.

***

– Pelo deuses! - Emily cantarolava enquanto íamos para as estufas para a aula de Herbologia. - O rosto daquele Finn Reed foi esculpido pelos deuses! E aquele furinho no queixo!

– Meu Deus - eu ri. - Não vá me dizer que foi amor à primeira vista!?

– Ah, corta essa. Mas quando eu vir ele de novo…

Foi impossível não rir ou não amolar Emily pela sua paixonite repentina.

– Por falar em caras bonitos - continuou ela, - onde é que tá aquele amigo seu?

– Logan? Eu não sei, não o vi desde o jantar ontem.

– Tá afim de ir dar um giro depois? Talvez a gente esbarra nele por aí.

Concordei, rindo mais uma vez. Ainda não me acostumara com as gírias de Emily.

.

A Professora Sprout estava de pé no fundo da estufa n°3, aguardando a chegada dos alunos com um sorriso e um chapéu esquisito.

– Bom dia a todos - começou ela -, e bem vindos à Hogwarts!

Não creio que tenha sido proposital, mas a turma se dividiu em dois grupos. Havia alunos da Grifinória e da Lufa-Lufa, mas a divisão não era entre casas, e sim entre espécies. Muitos trocavam olhares rancorosos.

A professora pigarreou um pouco, mas prosseguiu, tentando ignorar o clima.

– Gostaria de iniciar dando alguns avisos. Todos vocês têm alguns horários vagos durante a semana, especialmente os semideuses. Eles serão dedicados ao treinamento com armas, no arsenal…

– Você sabe usar alguma arma? - Perguntei à Emily, baixinho.

– De boa, eu tô que tô.

Fiquei o resto da aula pensando sobre o que aquilo poderia significar.

O outro aviso da professora foi que poderíamos cursar matérias extra-curriculares, para acumular mais pontos para a nossa casa e não sei o quê. Não era o tipo de assunto que me interessava, e eu já estava parada ali há tempo demais para prestar atenção em mais alguma coisa. Afinal de contas, eu sou hiperativa.

Como se não bastasse a falação inicial da professora, ela resolveu nos dar uma aula “light” sobre o tipo de vegetação da Floresta Proibida. Se não fosse pela minha preocupação com o próximo horário, que passaríamos no arsenal, e Emily falando na minha cabeça sobre plantas, eu teria dormido feliz ali.

Acabada a aula de Herbologia, Emily, eu e alguns outros semideuses fomos para o arsenal. Eu estava nervosa e ansiosa, mil borboletas voavam em meu estômago. Nunca havia pegado em nenhuma arma antes, nem mesmo em espadas de brinquedo - veja bem, cresci em um orfanato, e esse não é o tipo de coisa que eles dão para as crianças brincarem. Não acredito nisso, pensei, vão rir de mim mais uma vez.

– Você tá legal? Tá mais branca que uma Gardênia.

– Tô bem. Eu não sobrevivi à tanta coisa pra vir morrer num arsenal. Mas tô bem.

– Para com essa chacrinha, Cice. A gente só morre quando o senhor Hades nos convoca.

Chacrinha?

Gostaria de saber o que aquilo significava, mas outra coisa me chamou a atenção. Em frente ao arsenal, um centauro fazia um discurso. Por mais que eu estivesse cansada de blá-blá-blá, queria saber o que ele estava falando. Eu entendia pouco de mitologia e seres mágicos, mas sabia que centauros são, digamos, tímidos. Seres sábios e muito na deles, de modo que se aquele centauro estava fazendo um discurso, era porque tinha algo a dizer.

– ...mariquinhas fazendo corpo mole - ele ia dizendo quando nos aproximamos. - Isto aqui é sério. É onde vocês aprenderão a se defender na prática, e precisarão disso aqui pra sobreviver no mundo lá fora.

Engoli em seco, e pude ouvir outras pessoas fazerem o mesmo.

– Os alunos mais experientes serão seus mentores, então obedeçam, inspirem-se e aprendam com eles - continuou o centauro, e parecia ter finalizado quando voltou-se para nós novamente. - Só mais uma coisa: tentem não se matar.

Dito isso, ele nos deu as costas e saiu pela lateral do arsenal. Senti o suor frio escorrer pela minha nuca, e nem percebi quando o círculo de semideuses se formou próximo de onde Emily e eu estávamos, nos deixando de fora. Até nas pontas dos pés, tudo o que eu conseguia ver eram corpos na minha frente.

– Ué, o que está acontecendo?

– Parece ser uma parada com espadas - disse Emily, que tinha a altura certa para pessoas da nossa idade.

– Uma “parada”? Tipo uma luta?

– Pode crer. Se eu não estivesse enxergando tanto quanto uma coruja de dia, eu diria que o cara lá é o seu amigo.

– Logan?

Não esperei resposta. Cheguei mais perto do círculo, tentando me infiltrar na pequena multidão. Ouvi gritos, xingos, incentivos, o barulho inconfundível de pessoas caindo ao chão, mas não enxerguei nada. Consegui empurrar umas pessoas e dar dois passos - um deles terminou em cima do pé de alguém.

– Meu pé não é tapete - disse uma voz grave acima de mim.

– Sinto muito! - Disse rapidamente, mas quando olhei pro alto, o rapaz sorria. - Eu só queria ver o que está acontecendo.

– O lugar dos baixinhos é lá na frente, ninguém te avisou não?

Agora, ele estava rindo. Tinha um riso contagiante, mas não era o que mais chamava a atenção nele.

– Já tentou passar por uma muralha dessas?

– Não seja exagerada. Vou te mostrar como se faz. A propósito, sou Lee Campbell, e você?

– Cecília Guérisser, é um prazer conhecê-lo. Principalmente por que você é alto e vai me ajudar a chegar lá na frente.

Lee Campbell tinha os cabelos azuis.

Ele riu mais uma vez, me agarrou pelo braço e começou a abrir caminho pela multidão.

O cabelo dele parecia algodão doce.

– Aqui está melhor?

Eu estava tão concentrada pensando em que gosto teria aquele cabelo que nem percebi onde tínhamos chegado. Um rapaz caiu no chão aos meus pés, e foi aí que acordei de meu devaneio. À minha frente, só havia a luta.

Logan apontava uma espada para o rapaz no chão.

– É o Logan! - Gritei, sobressaltada.

Grave erro.

Logan surpreendeu-se com meu grito, erguendo a cabeça por tempo suficiente para o rapaz no chão desarmá-lo e atacar. Log, porém, recuperou sua espada rapidamente. O aço brilhava contra a luz do sol enquanto eles desferiam golpes um sobre o outro. O rapaz era muito bom, se esquivando dos golpes com a mesma facilidade com que somamos 2+2, mas Log era melhor. Antecipava os movimentos do rapaz, e sabia exatamente a hora de contra-atacar ou recuar. A luta seguiu assim por mais alguns minutos, até que Logan derrubou o rapaz mais uma vez e este se deu por vencido. Os dois apertaram as mãos enquanto os espectadores desfaziam o círculo, e eu fiquei parada ali esperando que fosse seguro me aproximar.

Ele lançou-me um daqueles olhares gélidos, e entendi que não seria seguro me aproximar dele tão cedo. Surpreendentemente, ele veio até mim, ainda com a espada em mãos.

– Desculpe… - Murmurei. - Não queria desconcentrar você.

– Só não faça de novo.

Pode deixar, não farei.

– Eu não sabia que você podia fazer aquilo! Sério, foi... Incrível.

– Obrigado - discretamente, ele sorriu. Logan levantou a espada, que devia medir mais de 1m. - Talvez você consiga fazer alguma coisa com isso. O que me diz?

– Hm… - Não, obrigada, era o que eu queria dizer, mas sabia que não era a resposta certa. Pelo visto, ganhar lutas o deixava de bom humor, e eu não estava afim de estragá-lo.

– Nada de “hm”, você vai aprender a usar uma espada. Mas temos uma coisa pra fazer, antes.

Logan fez sinal com a cabeça para que eu o seguisse, e assim fiz. Qualquer coisa pra adiar uma luta de espadas. Fizemos o mesmo caminho que o centauro fizera, até chegarmos nas forjas atrás do arsenal. Escutei os cascos galopando em nossa direção.

– Quíron - saudou-o Logan.

– Boa luta, Logan. Está melhorando. Quem é a moça?

– Quíron, esta é Cecília Guérisser.

Não entendi a ênfase no “esta”. Quíron, que antes não havia lançado mais que um olhar rabo-de-olho para mim, me avaliou da cabeça aos pés.

– Verdade? - O desapontamento na voz dele era palpável. Senti minhas bochechas corarem, e abaixei a cabeça.

– É um prazer conhecê-lo, senhor.

– Oh... - Quíron parecia avaliar bem as palavras antes de dizê-las. - Já nos conhecemos, senhorita.

Eu me lembraria de um centauro se já tivesse conhecido um.

– Acho que eu não sou quem o senhor procura…

– Você é Cecília Guérisser, filha de Carmem Guérisser, nascida em Londres, tem 18 anos e viveu num orfanato até que Logan a trouxe para cá?

P...Q...P.

– S-sim, senhor.

– Então você é exatamente quem eu procuro.


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