Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 3
… Outra se Abre




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– Pensei ter entrado num táxi.

Só prestei atenção à minha volta alguns minutos depois, quando parei de chorar nos ombros de Logan. O que vi, porém, não foi o interior de um carro: era um ônibus. Grande, bagunçado e nada convencional, mas ainda assim era um ônibus no qual eu, com certeza, não tinha entrado. Havia janelas enormes, uma escada de madeira que dava acesso aos andares superiores, e camas escorregavam de um lado para o outro.

– Log, tenho certeza que entrei num táxi. – Eu estava ficando realmente assustada, enquanto Logan apenas dava um meio sorriso zombeteiro.

– Tenho algumas coisas pra te contar, Cice…

– Pode começar me contan... – O interrompi. Grave erro.

– Não. Não me interrompa. - Assenti. Logan tinha uma personalidade extremamente forte, e deixá-lo bravo... Era realmente uma péssima ideia. Ele prosseguiu. – O mundo que você conhece não é nem metade do que ele é de verdade. Seres mágicos, como bruxos, elfos, centauros e semideuses existem. Os humanos não sabem de nada, por segurança; são muito fracos para lidar com isso. E também por segurança, nós, semideuses, somos enganados durante um tempo. Fazem a gente pensar que somos pessoas normais, com dislexia e hiperatividade, mas mais cedo ou mais tarde a gente acaba descobrindo tudo.

Dei uma risada alta; aquilo era brincadeira, só podia ser. Tudo bem que eu era estranha e não me encaixava no mundo, mas isso já era demais. Logan, porém, olhou para mim daquele jeito. Aqueles olhos azuis claríssimos que pareciam enxergar meus sentimentos, minhas memórias, minha alma.

E Logan nunca brincava.

– Você… Isso não é brincadeira?

– Aqueles seus sonhos - continuou ele, ignorando-me - não eram apenas sonhos, eram lembranças. Os ataques, a morte de sua mãe… É tudo real. Eu não sei quem é seu pai, mas ele é um deus e está vivo, lá no Olimpo. Você é uma semideusa, assim como eu.

Esperei que ele prosseguisse, mas Log não disse mais nada. Seu rosto foi ficando cada vez mais embaçado à medida que meus olhos se enchiam de lágrimas. Abaixei a cabeça, levando a mão ao ombro esquerdo. De certa forma, eu sempre soube que era diferente. Engoli o choro; não queria demonstrar ainda mais fraqueza.

– Por que eu? Já não bastava ser disléxica e hiperativa?

– Está tudo interligado, Cice. Todo semideus é disléxico; nosso cérebro não consegue ler essas palavras, pois é adaptado para a língua dos deuses, o grego antigo. A hiperatividade não nos deixa parados em batalha, e são nossos reflexos que nos mantém vivos.

– Batalha?

Ele sorriu.

– Ah sim, muitas batalhas.

Engoli em seco. Será que isso pode piorar?

– Você ainda não explicou como vim parar em um ônibus.

– Nunca foi um táxi - disse Logan, dando de ombros. - É a Névoa, serve para esconder a magia dos humanos. As vezes confunde os semideuses também, especialmente aqueles que ainda não sabem de nada.

Meu Deus, era muito para digerir. Minha mente, que nunca foi muito organizada, deu um nó.

– Bom, se acabaram as perguntas… - Ah, com certeza não acabaram, Logan, não mesmo. – Vou subir para descansar um pouco. Venha também, quando quiser.

Log virou-se de costas e subiu a escada em espiral, no fundo do veículo. Quanto a mim, estava mais confusa agora do que quando entrei no táxi - ou melhor, ônibus. Talvez eu devesse ir descansar também.

Levantei-me para ir até uma das camas que escorregavam pra lá e pra cá, mas uma voz alegre e estridente me deteve.

– Bem-vinda ao Nôitibus! - Virei-me sobressaltada, e um rapaz, cujas espinhas transformaram seu rosto num Chokito, sorria alegremente. Forcei um sorriso.

– Obrigada…

– Finalmente aquele cara parou de monopolizar você. É seu namorado?

– O Logan? - Ri da ideia. - Nem pensar. Somos só amigos.

– Ah, achei que fosse. Sou Lumpkin, o maquinista! - Ele apertou e sacudiu minha mão.

– Prazer, Lumpkin, me chamo Cecília.

O maquinista assentiu com a cabeça, murmurando meu nome, como se fosse esquecê-lo se não o repetisse várias vezes. Tive que rir daquilo; ele era uma figura. Foi aí que algo finalmente me ocorreu:

– E então, Lumpkin, pra onde estamos indo?

– Pra onde estamos indo?! - Seus olhos escuros brilharam como os de uma criança fazendo travessura. - Ora, pra Hogwarts!

***

– O que é Hogwarts? - Perguntei. Logan só acordou quase uma hora depois que cheguei ao segundo andar do ônibus.

– É uma escola de magia e treinamento - respondeu ele, esfregando os olhos. - Tem todo tipo de seres mágicos lá. Você vai gostar.

Não esperava menos.

– E essa tal Academia para Disléxicos Hiperativos? Por acaso existe?

– Existe - disse Logan, ignorando meu sarcasmo, - só que eles nunca ouviram falar de nós. Você conseguiu dormir?

– Nem um cochilo. Minha cabeça está uma bagunça - estava exausta psicologicamente, mas não conseguiria descansar tão cedo. Ele permaneceu em silêncio. - Log, alguma coisa aconteceu na nossa formatura, não foi?

Ele assentiu, ainda demonstrando cansaço.

– Uma fúria nos atacou. Ela não era das grandes, então foi fácil abatê-la e enganar as pessoas que estavam lá. Ninguém saiu gravemente ferido.

Eu sabia.

– E alguém acertou minha cabeça.

– Pois é, desculpe-me por aquilo, Cice.

Logan falou como se estivesse se desculpando por ter pisado no meu pé. A frieza em pessoa.

– Foi você?

– A Névoa não estava agindo, e você não podia saber de nada. Eu tinha que te tirar de lá rápido, o que eu podia fazer? - Ele teve a cara de pau de dar de ombros. Balancei a cabeça em descrença total. Como ele pode ser tão indiferente?

– “O que você poderia ter feito”? Você poderia ter feito qualquer coisa, mas escolheu me machucar! - Levantei-me e fui andando em sua direção, sem dar importância ao meu tom de voz. Logan sempre se enfurecia, mas aquela era a minha vez de ficar com raiva. E eu estava com muita raiva. - Sabe por quanto tempo eu fiquei apagada? Sabe? – Quanto mais perto chegava dele, mais eu via que a raiva o estava dominando também. Logan bufava, e parecia se segurar ao máximo para não explodir. Dessa vez, não me deixei intimidar por isso. - Achei que você era meu amigo, que podia confiar em você!

Já estávamos próximos o suficiente agora, e aproveitei a chance; com as duas mãos, o empurrei pelos ombros.

Outro grave erro.

Assim que o toquei, uma corrente elétrica percorreu meu corpo, e eu gritei de dor. Caí no chão. Logan permaneceu imóvel por um segundo, até que pareceu perceber o que acabara de fazer. Estendeu a mão para me colocar de pé, mas eu não queria tocá-lo de novo. Recuei.

– Você… me deu um choque?

Ele já havia me dado choquinhos de leve algumas vezes, o mesmo que tomamos ao apertar aquelas canetas de choque. Na verdade, isso sempre acontecia quando Logan estava irritado, e eu, inocente, acreditava quando ele dizia que era culpa da estática. Mas dessa vez era diferente, aquele havia sido um choque de verdade.

Logan abaixou a cabeça e respirou fundo. Os minutos seguintes de silêncio pareceram horas.

– Você tem que manter isso sob controle, cara - eu disse, finalmente. Log me olhou algumas vezes antes de responder.

– Eu sei. Você está certa. Sinto muito. Por isso, por tudo. Não quis te machucar, mas as coisas estão saindo do controle.

Pela primeira vez, senti que ele estava realmente se desculpando.

– Está tudo bem.

E pela primeira vez, senti que as coisas poderiam realmente ficar bem. Foi minha vez de estender a mão, e ele pareceu receoso em segurá-la e me machucar novamente, mas só por alguns segundos; Log puxou-me firmemente, me colocando de pé, e eu o abracei. Ele não gostava muito de abraços (ou qualquer contato físico), mas retribuiu.

– E você ainda diz que ele não é seu namorado - veio a voz de Lumpkin, no topo das escadas, nos surpreendendo. Logan me soltou na hora.

– Lumpkin! - Exclamei, meio constrangida. - O que está fazendo aqui?

– Ouvi uma gritaria danada vindo daqui de cima.

– É, foi eu… Desculpe-me. Está tudo bem agora.

– Aiai, semideuses… - Resmungando, ele nos deu as costas e desceu as escadas.

***

Algum tempo depois, o ônibus parou.

– É o nosso ponto - informou-me Logan. Pegamos nossas coisas e descemos numa rua escura, de modo que eu mal enxergava um palmo à frente do nariz.

– Espero que tenham feito boa viagem! - Disse Lumpkin, guardando no bolso algo que Log o entregara, provavelmente o pagamento pelas passagens.

– Até mais! - Disse para ele, enquanto as portas se fechavam e o Nôitibus sumia rapidamente na noite.

– Venha, é por aqui - Logan me pegou pelo braço, puxando-me rua afora.

– Onde por Deus nós estamos?

– Estamos em Hogsmeade, chegando à estação. Hogwarts é logo ali.

Olhei ao redor, ansiosa, mas não vi nem sombra de estação, castelo, ou civilização. Ouvi algo, porém; o trem.

Alguns minutos depois, tanto nós quando o trem - mais conhecido como Expresso de Hogwarts - estávamos na estação. Pessoas andavam agitadas de um lado para o outro, mas eu não conseguia enxergar muita coisa; minha visão parecia piorar durante a noite.

– O que é aquilo? - Perguntei à Logan, apontando para uma luz oscilante que se aproximava cada vez mais.

– Uma lanterna. É o Hagrid. Vamos seguí-lo, ele nos levará ao castelo.

Um grupo de pessoas fez o mesmo. Andamos por alguns metros, e as únicas coisas que eu conseguia perceber eram o caminho estreito pelo qual caminhávamos e a escuridão ao redor. Ninguém falou muita coisa, até que o castelo tornou-se visível ao longe; expressões como “oooh” e “aaah, é lindo!” escaparam de várias bocas impressionadas. Chegamos à beira de um lago, no qual vários barquinhos estavam a nos esperar.

– Acomodados? Então vamos! - Gritou Hagrid, e os barquinhos começarem a deslizar sozinhos sob o lago escuro.

Mais uma vez naquele dia, eu estava sem palavras.


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