Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 2
Quando uma Porta se Fecha...




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Abri os olhos lentamente, tentando me acostumar com a luz do sol que entrava pela janela do quarto. Sentei-me com certa dificuldade e lancei um olhar para o espelho na parede, ao lado da cama. A garota de cabelos cor-de-fogo do reflexo olhou para mim com olhos castanhos muito confusos.

Levei a mão ao topo da cabeça - que doía muito. Um galo tímido começava a nascer por ali.

– Bom dia, Bela Adormecida! - Marlí entrou no cômodo, estendendo um copo d’água na minha direção. Era quatro anos mais nova, mas uns bons 10cm mais alta que eu. - Como você está?

– Minha cabeça dói. Não me lembro muito bem… O que diabos aconteceu ontem? Acho que alguém acertou minha cabeça.

Marlí riu.

– Ninguém te acertou, Cice. Você bebeu demais, se enroscou nos fios do som e caiu, batendo a cabeça no chão. Acho que depois você apagou.

Franzi as sobrancelhas. Não me lembrava de nada daquilo.

– Mas… e quanto àquela coisa que estava atacando a gente? O que era aquilo?

– Cice - Ela me olhou com um pouco de curiosidade e muita preocupação. - Era o cantor da banda pulando em cima das pessoas. Tá vendo só, eu disse que você bebeu demais. Promete pra mim que foi a última vez.

Mas eu achei que tivesse bebido só um copinho…

.

Marlí me acompanhou até a mesa da cozinha, para que eu tomasse o café da manhã. Todos já haviam feito o desjejum na mesa principal. Pelo visto, eu dormi mais do que deveria devido aos acontecimentos da noite passada, seja lá quais eles tenham sido. Depois do café e do banho, voltei ao quarto.

Era grande o suficiente para uma pessoa viver confortavelmente, mas meio apertado para Marlí e eu dividirmos. Meu lado do cômodo era bagunçado, pintado com cores descombinadas - eu sempre arrumava uma tinta para pintá-lo, mas nunca o bastante de uma cor só, nem mesmo para a metade do quarto. É difícil para um órfão conseguir emprego em Londres, principalmente se o órfão for tão problemático quanto eu. Então, sem dinheiro para bancar uma decoração decente, eu fazia o que dava. Fui até o guarda-roupas de madeira antiga e puxei minha mala de um dos compartimentos altos. Era de um azul desbotado, pequena e gasta - perfeita. Todas as minhas roupas caberiam ali dentro.

Enquanto arrumava a mala, pensava em minha formatura. Será possível que eu tenha imaginado tudo aquilo? Meu diploma estava sobre o criado mudo, ao lado da cama, apesar de eu não me lembrar de tê-lo posto lá. Então nem tudo foi um sonho.

O toque do celular interrompeu meus pensamentos.

– Cice - era Logan. - Como você está?

– Oi, Log, estou bem.

– Fiquei preocupado quando bateu com a cabeça. Chega de bebida pra você.

Ele também com essa história?

– Não, Logan, eu não bebi tanto assim. Alguma coisa aconteceu lá, e alguém acertou minha cabeça. Tinha… alguma coisa atacando as pessoas e…

– Deve ter sido só um pesadelo - ele me interrompeu, impaciente. - Vou passar aí ao meio-dia pra te pegar.

Lancei um olhar para o relógio: 10:20. Isso significava que não teria nem duas horas para me despedir. Melhor assim; odeio despedidas.

– Tá bem. A gente se vê mais tarde.

Tentei parar de pensar na noite passada enquanto terminava de arrumar a mala, mas era difícil. Tudo estava tão claro em minha mente… mas, ao mesmo tempo, era tão confuso.

***

Desci as escadas, de volta ao salão do orfanato, e Joe veio correndo em minha direção.

– Cice! - Ele gritou, enquanto pulava em meu colo. Era um garotinho magricela de apenas 4 anos de idade, tão dócil quanto uma criança carente pode ser. Abracei-o fortemente, enquanto percebia quanta saudade eu iria sentir daquele lugar. - Você vai embora?

– Vou, meu anjo. Mas venho te visitar quando puder, tá?

– Não! Não vai embora! - Joe se agarrou ao meu pescoço, chorando alto. A Irmã Lorelai veio correndo saber qual o motivo de tanto choro, e parou na soleira da porta da cozinha ao ver a cena. Fui até ela.

– A que horas ele vem te buscar?

– Meio-dia - respondi. A Irmã deu um sorriso triste, fez um carinho na cabeça de Joe - que parara de chorar um pouco, agora - e nos deu as costas para esconder as lágrimas. Coloquei o garotinho no chão, e abracei-a.

– Vou ficar bem.

– Eu sei que vai, querida. Te criei muito bem, não foi? - Fiz que sim com a cabeça e a abracei mais forte.

Todos naquele orfanato eram irmãos mais novos para mim, e eu os amava. Uns mais, outros menos, mas da mesma forma que se ama um irmão de sangue. Apesar de odiar despedidas, fiz questão de abraçá-los todos, e dizer para cada um o quão importante eles eram para mim.

Fui ao meu quarto mais uma vez, e pela última vez o chamaria de meu quarto. Uma nova vida estava começando agora, eu tinha certeza disso, e não pude deixar de me sentir feliz. Ajoelhei-me ao lado da cama e puxei uma caixa de sapatos lá de baixo; era onde guardava meus tesouros. Passei a mãos pelos papéis amarelados escondidos ali dentro: uma foto do casal que me adotou aos 6 anos, a carta que minha mãe rabiscou no dia em que morreu - eu tinha 4 anos; e dois cartões de aniversário, mandados pelo Sr. Peterson, o único professor que já gostou de mim.

Olhei para o relógio, mas os números começaram a dançar, saltando do visor. E a dislexia ataca novamente, pensei, frustrada. Com esforço, percebi quer era meio-dia e alguma coisa. Guardei a caixinha e desci as escadas correndo.

– Ele já chegou? - Perguntei à Marlí, que vinha ao meu encontro. Ela fez que sim nervosamente, agitando o cabelo curto cor de palha e tentando conter as lágrimas. Abracei-a mais uma vez. - Não chora, loirinha.

Mas eu também estava chorando. Ela era minha melhor amiga, sempre contávamos segredos uma pra outra antes de dormir, aconselhávamos quando a outra precisava de conselhos, xingava quando precisava ouvir xingos. Eu ainda não acreditava que, a partir de agora, não iria mais dividir o quarto com ela.

Fomos até o portão, e lá estava Logan, escorado num táxi. Seu cabelo preto tinha um brilho azulado à luz do dia, e escorria liso pela testa. Ele nos olhava com aqueles olhos azuis e frios como blocos de gelo, e sua pele era quase tão branca quanto a minha. Marlí suspirou ao meu lado, mas eu não soube dizer se era por causa do choro ou de Logan; ela sempre suspirava quando o via. Log veio até nós.

– Deixa que eu guardo para você - disse ele, pegando minha mala e a levando para o táxi.

Soltei o braço de minha amiga e fui até a Irmã Lorelai.

– Obrigada por tudo, Irmã. Você foi a melhor mãe que eu poderia ter. - Nos abraçamos mais uma vez, enquanto ela dizia para eu ter juízo e sempre ouvir a voz do coração.

Caminhei até o táxi, segurando os soluços, e Logan gentilmente abriu a porta do carro pra mim. Enquanto ele dava a volta para entrar do outro lado, acenei para minha família. Lá no fundo, eu sabia que aquela seria a última vez.


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