Diário de Uma Semideusa escrita por Lúcia B Wolf


Capítulo 17
Lá e de Volta Outra Vez




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Seus olhos estavam arregalados, fundos e desfocados, o rosto sujo de sangue seco proveniente de um corte recente e fundo na testa. Deitada no chão, ela segurava o braço ferido pela flecha, com a respiração rasa e entrecortada.

– Pelos deuses! - Gritei ao largar o arco e corri até ela, ainda caída ao chão. - Emily! Emily, está me ouvindo?

Mas ela continuava com o olhar perdido e embaçado, como se não pudesse nos ver ou ouvir. Meus olhos se encheram de lágrimas, e algumas me escaparam pelas bochechas. Liz também começara a chorar, tapando o rosto com as mãos para abafar os soluços. John e Log vieram até nós.

– Ela está muito machucada…

– Você deve curá-la, Cice.

Fiz que sim e toquei a flecha em seu braço, tentando arrancá-la, mas Emily gritou novamente. Mais uma vez foi um grito alto e estridente, nos assustando. Comecei a chorar de verdade agora, com ela nos braços. Foi então que Emily pareceu notar a nossa presença, e seus olhos desfocados olharam para mim.

– V-você…

– Sou eu, Emily! Cice! Viemos te salvar!

A garota se sentou com dificuldade, depois ficou de pé, sem tirar os olhos de mim. Foi então que percebi que a pancada que abrira aquele corte fundo em sua testa também lhe roubara a lucidez. Logan me colocou de pé lentamente e me afastou um pouco dela.

– Cice, ela não está nos reconhecendo.

– Emily - falei mais alto. - É a Cice! Se lembra? Eu posso te ajudar!

Ela continuou olhando para mim, sem esboçar reação. Desvencilhei-me de Logan e me aproximei dela. – Vamos voltar pra casa, Emily. Eu vou te curar.

– C-curar? - Ela falou com uma voz estridente. Seus olhos pareceram entrar em foco pela primeira vez. - Cice?

– Isso! Sou eu! Eu posso te curar - estava a um passo de distância dela agora. - Eu tenho o Dom da Cura, se lembra?

Estiquei os braços, mas não cheguei a tocá-la.

– NÃO! - Ela berrou naquela voz fina, e seus olhos perderam o foco mais uma vez. Foi tudo muito rápido. Num só movimento, Emily arrancou a flecha de seu braço e a empunhou como se fosse uma faca, e a cravou em mim. Senti minhas pernas bambearem e caí de joelhos. A dor no peito era insuportável, e eu já não via ou ouvia mais nada.

***

Logan, John e Liz gritaram ao mesmo tempo, mas foi Logan quem correu até o corpo de Cice primeiro. Ele chorava. Emily estava parada no mesmo lugar, os olhos arregalados fitando-os.

– CICE! - Logan gritava ao sacudir os ombros da garota. - Cice! Cice, acorda! Por favor!

– Não adianta, Log - a voz de Liz era trêmula e fraca, - ela se foi.

– NÃO! NÃO! - Logan continuava a gritar. Ele via a flecha atravessando o peito de Cice, o sangue dela sujando suas mãos, mas não acreditava. Não podia.

– Você a matou - o rosto de John era sombrio, sua voz era grave e suas bochechas estavam molhadas pelas lágrimas. - Olhe o que você fez! - ele gritava para Emily. - Você a matou!

Emily, por sua vez, não mexia um músculo. Estavam todos tão absortos que só perceberam na chegada de um homem quando ele ajoelhou-se ao lado de Logan.

– Ela era linda, não era? - O homem passou a mão pelos cabelos ruivos de Cice. - Se parecia comigo.

Ninguém disse nada. Apenas Logan sabia quem ele era.

Apolo era alto, loiro e tinha a pela bronzeada coberta por sardas. Seus olhos eram grandes e castanhos como os de Cice. O deus do Sol se colocou de pé e foi até Emily.

– O que aconteceu com você, filha de Deméter? - Ela ainda fitava Cice com os olhos parados. O deus ponderou por alguns segundos, até que segurou o rosto de Emily com as duas mãos. Ela gritou, como se só tivesse percebido a presença de Apolo agora, e caiu no chão, desmaiada.

Quando a semideusa voltou a erguer a cabeça, já não havia nenhum corte em sua testa, seus braços já não tinham arranhões ou ferimentos de flecha, e seus olhos se focaram mais uma vez. Emily viu Logan ainda chorando, abraçado ao corpo de Cice.

– Ela… está…?

– Graças a você - a voz de Logan era uma pedra de gelo, serena e fria. Emily disparou a chorar.

– Cure ela, senhor! - Ela agarrou as mãos de Apolo. - P-por favor… cure ela! Por que ela não se curou...?

Foi a vez de Apolo permanecer impassível.

– O Dom da Cura ainda poderia salvar o corpo de minha filha, mas sua alma agora pertence a Hades.

Emily olhava de Logan e Cice para Apolo, tentando colocar os pensamentos em ordem. Então engoliu o choro e se recompôs. – A parada é a seguinte: apenas a morte pode pagar pela vida. Se Hades quer uma alma, ele vai ter. Mas vai ser a minha alma, não a dela.

John, Logan e Liz prenderam a respiração.

Apolo não esperava por aquilo. Trocar uma alma por outra estava muito além de suas habilidades, já que não era o deus da Morte. Mas ele escolhera Cecília a dedo para ser a portadora do Dom da Cura, e estava disposto a tentar de tudo para trazê-la de volta.

– Isso pode ser feito, senhor… deus? - Liz perguntou entre soluços.

Ele não respondeu imediatamente.

– É possível.

– Então tente - Logan ficou de pé, com Cice nos braços. - Por favor, tente.

Semideus e deus trocaram um olhar. Apolo assentiu.

– Afastem-se.

O que aconteceu em seguida não ficou claro para nenhum deles. Só o que Logan, John e Liz conseguiram ver foi um clarão muito forte que perdurou por alguns minutos. Quando a luz finalmente se apagou, Apolo ainda estava lá, de pé, mas Cice e Emily estavam deitadas no chão, imóveis.

– Funcionou? - Sussurrou John.

***

Abri os olhos. Por um momento não me lembrava de nada, só sentia uma paz dentro de mim e ao meu redor, e o mundo estava silencioso e coberto por uma névoa branca. De repente, percebi que uma voz me chamava baixinho, e dois focos de luz azul-claríssimos apareceram na minha frente. Era Log.

– Bem-vinda de volta, baixinha.

Ele sorriu e me abraçou forte. Retribuí o abraço enquanto o mundo voltava a entrar em foco. Do meu lado, Emily tinha o rosto sereno, quase sorrindo em seu descanso eterno. Meu coração apertou.

– O que aconteceu? - Perguntei, mas John, Log e Liz se entreolharam e não responderam. Entendi que aquele seria assunto pra depois. Lutei contra as lágrimas. - Vamos enterrá-la.

.

Encontramos uma planície não muito longe dali, cercada por flores coloridas. Era o lugar perfeito. Eu chorava silenciosamente enquanto abríamos uma cova. Ninguém falou. Até mesmo os monstros e animais da ilha pareciam tristes, quietos. Entalhamos uma pedra com os dizeres “aqui jaz Emily Benson, guerreira e amiga.”

Todos concordamos em montar o acampamento mais cedo naquele dia, então voltamos para a beira do rio logo após o enterro. Liz e John entraram na barraca, enquanto Logan e eu ficamos do lado de fora.

– Ainda não consigo acreditar no que aconteceu, que ela se foi. Como foi que eu acabei sobrevivendo e ela não?

Log passou um braço sobre meus ombros e suspirou.

– Tem algo que eu ainda não te contei. Apolo esteve aqui.

Meus olhos brilharam. – Apolo?

– Ele apareceu e curou a Emily. Ela estava ciente quando escolheu trocar a vida dela pela sua.

– Estive no Submundo e voltei. “Uma vida por outra será levada."

– Exatamente.

– Por quê? Por que eu pude viver e ela não?

– Emily quis assim. Você não é uma pessoa qualquer, Cice. Apolo te escolheu dentre todas as outras pra carregar um dos poderes mais raros e poderosos do mundo. Ele faria qualquer coisa pra te salvar. E você morreu tentando salvar a Emily, foi um ato nobre.

Encolhi os ombros, sentindo as lágrimas brotarem novamente.

– Eu não queria que tivesse sido assim.

– Não se preocupe. Com certeza ela está nos Campos Elísios.

– Campos Elísios?

– É um lugar no Submundo, o que os humanos normais chamam de “paraíso”. Nos Campos Elísios, as almas repousam dignamente após a morte, rodeadas por paisagens verdes e floridas. Lá só entram as almas dos heróis e santos.

Meu coração se alegrou um pouco ao ouvir aquilo. – É o tipo de lugar que a Emily adoraria.

Ele apenas sorriu, e ficamos em silêncio por algum tempo.

– Queria ter visto o meu pai - falei. - Conversado com ele.

Log encolheu os ombros. – Ele me falou algumas coisas.

– Que coisas?

– Algumas boas notícias. Daphne e Blackjack virão nos buscar quando for a hora.

– E quando vai ser a hora? Devíamos ir embora logo desse inferno.

Log bufou, impaciente.

– Ainda temos muito o que fazer aqui. Não sabemos por que essas fúrias te perseguem, ou o que elas querem. Se formos embora agora, sem terminar isso, tudo terá sido em vão.

Ele estava certo, é claro. Não havia o que argumentar. Suspirei.

– O que mais Apolo disse?

– Me disse pra cuidar de você - ele olhou para mim e sorriu. - Você se parece um pouco com ele.

Dei uma risadinha. – Aposto que ele não tem as minhas sardas.

Log ergueu meu rosto com uma mão. – Cada uma delas - e me beijou.

***

Quando entramos na barraca, Liz e John estavam conversando à mesa.

– … não queria ter que andar de pégasus de novo - Liz ia falando.

– Você não tem que se preocupar com isso agora, não estamos indo embora ainda, não é?

– Não, não estamos - Log e eu nos juntamos a eles.

– O que faremos agora? - John perguntou.

– Temos que descobrir por que as fúrias queriam Cice aqui - Liz respondeu.

– Quanto a isso eu já tenho uma ideia - falei. - O que temos que saber é se a lenda é real.

– Que lenda?

– A lenda que Quíron me contou. Os McClivert eram uma família de bruxos poderosíssimos que dividiam a ilha de Drear com o clã dos MacBoon. Um duelo de bêbados entre Dugald McClivert e Quinto MacBoon, os líderes dos clãs, terminou na suposta morte de Dugald. Os McClivert, por vingança, transfiguraram os bruxos MacBoon em Quintípedes. Como monstros, os MacBoon ficaram infinitamente mais poderosos e foram capazes de matar quase todos os McClivert. Dugald, como o grande bruxo que era, não pereceu no duelo. Ficou escondido por muitos anos, tentando retransformar os monstros em humanos, mas os Quintípedes são criaturas fortes demais. Para se proteger deles, Dugald transfigurou os morcegos da ilha em Fúrias. Foram estas fúrias que me atacaram a vida inteira, e foi uma delas que trouxe Emily para cá.

– Tá - disse John, - mas por que esse bruxo mandaria as fúrias dele para te atacar?

– Quíron acha que Dugald pode estar à beira da morte, precisando ser curado.

Logan assumiu um tom sombrio.

– Depois de tudo que passamos, devíamos deixar que ele morra.

– Eu sei - respondi sentindo um gosto amargo na boca e, inconscientemente, levando a mão à cicatriz em forma de garra em meu ombro. - Uma das fúrias dele matou a minha mãe. Mas nós não somos assassinos.

– Cice está certa - disse Liz. - Não temos que matá-lo ou esperar que ele morra, ou isso não acabaria nunca. Vamos encontrá-lo e levá-lo para Hogwarts. Vamos fazer justiça.


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