Dreamy - Sonho Simulado escrita por NuttyOkari32


Capítulo 6
Mizushima recusa chances 1


Notas iniciais do capítulo

Me desculpem mas esse capítulo é meio paradinho, não vai ter ação :(
Mas eu prometo voltar o mais rápido possível com a trama principal. Estava pensando em expor um pouquinho mais os outros personagens antes de dar continuidade à viagem de Kyaro >u0
Esse capítulo faz a primeira grande referência, uma série que eu joguei bastante quando mais novo (Harvest Moon [SNES e Back to Nature]).
Espero que gostem do capítulo (^u^ )
VictorNutty ~



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/527678/chapter/6

O vento estava batendo contra a janela límpida e transparente à parede esquerda da sala, apenas observei os gramados do campus da escola apoiando meu rosto sobre minha mão. A brisa continuou a percorrer o local balançando meus cabelos, mas parece que eu não estava nem aí pra isso, até porque eu tava em um de meus momentos pensativos, coisa que raramente outros presenciavam.

—...

As árvores ao redor dos gramados dançavam em harmonia com o fluxo da troca de ar quente por frio, algumas pessoas passavam pelo pátio, ao lado da fonte, fugindo de suas obrigações. A aula chata me motivou a entrar nesse estado, esperando por algo que realmente desviasse a minha atenção.

—Professora, com licença, posso falar com Mizushima-san?

—Oh, claro. Mizushima-kun, alguém deseja conversar com você.

Surpresa, eu observei a pessoa que estava à porta, Shiho era a pessoa que solicitava minha presença. Imagino o assunto como fiz antes, mas tento me conter para não a irritar do mesmo jeito.

Fora da sala, Shiho planejava dizer algo, mas não conseguia se expressar direito preenchendo a conversa com “hum” ou “é...”. Isso às vezes me dá uma raiva... Ao meu sinal de confiança, ela começou a conversar normalmente:

—Preciso de uma ajuda...

—Bem, você me fez vir até aqui, então acho que eu não tenho outra escolha a não ser ouvir. — Disse com um sorriso discreto ao final da frase.

—Sobre os novatos, o que você acha que deveríamos fazer para realizar o desejo do Kyaro-senpai?

—Desejo... Desejo...? Não estou me lembrando dessa parte.

—O de tornar a Kachiharu-san mais sociável e aberta às outras pessoas.

—Tá a fim de ajudar?

—Não que eu realmente esteja, afinal somos um clube de música, e não uma corporativa de babás.

—É, tem um fundo de razão... Mas, eu acho que lidar com a mente de uma pessoa é difícil em todas as situações, talvez a gente deva expor ela um pouco mais às outras pessoas, não?

—Mas ela poderia se sentir pressionada.

—Poderíamos ser sutis e mesmo assim discretos.

—Expor ela às pessoas, certo?

—Isso, mas nós podemos pensar em outras coisas também.

—Mas a melhor ocasião pra se fazer isso é...?

—Não sei, mas e se nós, durante as atividades do clube, fôssemos aos gramados pra tocar e fizéssemos ela cantar na frente de todo mundo?

—Isso tem altas chances de dar errado...

—Não custa tentar, não é mesmo?

—Mas levantando os prós e contras...

—Esquece os prós e contras! A gente tem um objetivo que é fazer as coisas lá, não é?

—“Fazer as coisas lá”? Como assim?!

Peguei na mão de Shiho e com a outra, segurei a cintura dela, e, por mais estranho que pareça, começamos a dançar no corredor, algumas pessoas olhavam à distância, confusas, porém, rindo da situação.

—Y-Yuuka? O que você tá fazendo?

—Fazendo você acreditar em mim! A gente vai conseguir, calma.

“E eu vou ficar realmente feliz se a gente conseguir.”

...

Olá, eu sou Mizushima Yuuka, este é meu segundo ano aqui na Teacher Gary Benson. Como você pode ver eu sou a melhor amiga da Shiho e tento torná-la numa pessoa melhor, mesmo que não consiga meus melhores resultados. Eu queria que o mundo fosse perfeito e tento tornar todo ambiente animado com meu jeito de ser, e parece que as pessoas ficam felizes quando ajo assim.

Ao terminar minha conversa com a Shiho eu voltei pra sala, e advinha só? Tinha um monte de coisa pra eu fazer... Bem, digamos que eu não sou das alunas mais dedicadas, mas eu tento dar meu jeito por aí.

Mesmo que eu esteja com toneladas de exercícios pra resolver, vou continuar trabalhando num projeto meu, mas isso é segredo, não posso contar pra ninguém. Vou tornar público no tempo certo, dependendo do que ocorrer no futuro.

Quando as aulas terminaram, eu guardei meus papéis com cálculos e linhas de código (nos ensinam informática, pelo menos o básico dela). Saí da sala, passei pelos corredores sorrindo e acenando para algumas pessoas que conhecia dizendo um animado “até mais!” para que fossem para suas casas motivadas, afinal, não é todo dia que todo mundo volta da escola com um sorriso no rosto.

Andei em passo apressado até a sala do clube, não fazia a mínima ideia de como realizar nosso plano. Ofegante, suspirei pensando em como colocar isso em prática. Fiquei com medo de não conseguir dar argumentos convincentes e ser ridicularizada por Shiho. Abri a porta.

—Yo! Yuuka! — Kenji me cumprimentou enquanto sentado no chão segurando um violão.

—Kenji-kun? Cadê os outros?

—A Hiyari cancelou as atividades do clube de hoje, e como eu tava entediado, fiquei aqui tocando um pouquinho.

—Ah... entendi. Posso ficar aqui com você?

—Claro, claro, senta aqui! — Disse ele dando tapas no chão ao seu lado.

Andei a passo lento até o local indicado, ele me observou e depois voltou sua atenção para o violão tocando algumas cordas no trajeto, dobrei minha saia para me sentar e passar o tempo ali com nosso membro de tempinhos atrás.

Ele era uma pessoa legal, descontraída e várias vezes esquecido, se perdia com facilidade e não gostava de admitir isso. Estava tocando algumas notas pra testar o violão, como se fosse uma espécie de relacionamento paciente-médico. Eu olhava atenciosamente o movimento de seus dedos sobre as cordas e a madeira, algo que me faz cair em transe. Eu estava cansada e, mesmo que estivesse fraca, a luz alaranjada que entrava na sala do clube era demais para minhas exaustas pálpebras, tanto foi que comecei a cochilar, e cochilar, até que adormeci caindo para trás. Pena que não havia nada pra amortecer a queda...

—Ouch! — Bati a cabeça no chão... Que patético.

—Hey, você tá bem?

—Ah! Com certeza! Eu senti a suavidade das almofadas bordadas a linhas de ouro agora mesmo!

—Então tá tudo bem. — Ele simplesmente voltou para seu violão.

—Vai me ignorar assim é?

—Ignorar? Mas você não está bem?

—Mas é claro que não! Eu tava sendo sarcástica.

—Ah... Desculpa, eu não percebi.

—Percebeu sim! Vamos, me ajuda a levantar.

—Ok, ok.

Ele se levantou e dobrou seus joelhos estendendo sua mão direita pra mim. Me segurei e ele me puxou. Só que, um pouco demais. Mas esse um pouco, quer dizer... O suficiente pra envolver minha cintura com seu outro braço. Me surpreendi um pouco, confesso, mas já era de se esperar vindo dele.

—Você é um garoto muito ousado. — Olhei fixamente em seu rosto.

Kenji apenas sorriu em resposta.

... Às vezes eu penso: Será que ele é a fim de mim ou só tá de brincadeira? Porque... Quem faz isso com uma pessoa, pode fazer com mais, né? Pode ser que seja só zoeira, mas eu tenho minhas dúvidas, até porque, ele nunca recusa aquelas propostas que eu faço, parecidas com a do baile de ontem.

Bem... Cada pessoa deve ter suas doideiras, assim como eu, então, “suportemo-nos uns aos outros”.

—Matsumoto-kun... É... Eu não me sinto confortável desse jeito, você pode me soltar, por favor?

—Claro. Como a senhorita quiser.

—Por que você é assim? Todo cheio das manias?

—Sei lá, só sou. E você? Por que você é assim?

—Assim como?

—Uma hora você é ligada nos 220, na outra fica mais entediante que uma brisa batendo num cata-vento.

—Olha... Todas as pessoas tem altos e baixos né? Hoje eu não tô muito a fim de gastar tanta energia como nos outros dias, afinal tem um ano inteiro pra eu queimar cabeça estudando.

—Quer jogar um pouquinho pra descontrair?

—Jogar? Você tem um portátil com você? Eu tenho o meu aqui—

—Não, não, você não trouxe o seu Dreamy pra cá ontem? Então, hoje eu trouxe o meu. Eu não sei se você vai gostar do meu jogo preferido, mas se eu não perguntasse a resposta sempre seria “não”, certo?

—Teoricamente. Então tá, vamos lá, deixo minha diversão nas suas mãos a partir de agora Matsumoto Kenji-san. — Disse pegando suas mãos.

Fomos ao armário no canto da sala, cada um pegou seu Dreamy, vestimos as roupas especiais e colocamos o capacete. Tudo estava pronto, mas antes de logar, me virei para Kenji.

—A gente só vai poder ficar por um tempinho, a escola fecha às 20:00.

—Relaxa, o fluxo de tempo do jogo é mais rápido do que o da vida real.

—Mais rápido... Mais ou menos quanto?

—Um dia é uma hora.

Depois desta última declaração, eu olhei para o visor de hologramas que se formou à minha frente, Kenji conectou o cabo DTD pra compartilhar o jogo de que falava. Uma janela de diálogo perguntou se eu queria receber o sonho de outro aparelho. Confirmei. E então meus olhos se fecharam. Eu parei de sentir o que meu corpo na vida real sentia, agora, tudo o que sentia era controlado e reescrito pelo videogame em minha cabeça e tórax.

Lá estava eu, naquele espaço vazio, preto e obscuro. Minha roupa era o uniforme da escola, mas ao sinal da primeira pincelada de cenário, meu vestuário mudou para o de uma fazendeira. Botas pretas, um macacão azul com uma camisa de botões branca e vermelha xadrez e um pedaço de palha na boca. Não sei como, mas o pedaço de palha tinha um gosto doce, que me fazia não querer tirá-lo da boca, vai ver era um jeito de fazer você ser obrigado a entrar no clima de roça... Vai saber...

Olhei para o céu através das folhas de uma árvore, estava deitada na grama, havia uma colmeia nesta árvore, mas as abelhas não saíam de perto dela. Desabotoei a gola de minha camisa para me sentir mais a vontade, Kenji logo apareceu, ele estava com um macacão azul também, uma mochila laranja nas costas, uma camisa branca por baixo e um lenço vermelho no pescoço, assim como um boné azul e laranja virado para trás, o que o deixou mais engraçado foi a exagerada mecha de cabelo que saía pelo buraco do boné.

Me levantei do gramado e olhei ao redor, o sol estava brilhando bastante, havia uma casa bem grande à minha esquerda com uma caixa de correio ao lado e uma outra caixa maior fixada no chão com uma plaquinha escrita “Para vender”. Olhando em frente, eu via um curral para ovelhas e vacas, (isso porque ouvi o barulho delas). Havia também uma casa de cachorro do lado do curral com um silo, e advinha, o simpático cachorrinho logo veio me receber (na verdade ele me derrubou no chão!), ele parecia bem feliz ali e lambeu meu rosto várias vezes enquanto eu sorria e o acariciava. Logo, um cavalo chegou, Kenji tirou uma escova de sua mochila e começou a escová-lo e a dizer que ele seria um ótimo cavalo no futuro fazendo-lhe vários elogios. Ambos, eu e o cachorro olhamos para ele, observando-o. Segundo o relógio no canto de minha visão, eram 10:00 AM.

Quem diria... O cachorro em meus braços, Kenji cuidando de seu cavalo com a máxima atenção, o sol brilhando forte conosco debaixo da grande árvore no que parecia ser a fazenda de Matsumoto. Parecia uma cena de anime shoujo do interior. A vida aqui parecia tão feliz, que eu poderia ficar aqui por toda a eternidade... Tudo era tão vívido e feliz.

—Você parece bem à vontade aqui.

—Não sei... É diferente do que eu já tinha visto até hoje. Qual é o nome desse jogo? Acho que já ouvi alguma coisa sobre ele.

—Harvest Moon na Natureza do sonho feliz.

—Harvest Moon... Harvest Moon... — Murmurava comigo mesma tentando lembrar.

—É um jogo em que durante três anos você administra uma fazenda abandonada depois da morte de seu avô, e tem que revitalizá-la enquanto cria plantações e animais. E nesse meio tempo você também tem que se dar bem com os moradores da vila aqui do lado, se não, no final do prazo eles te expulsam da vila por não ter sido um fazendeiro tão bom quanto o avô.

—Ah! Meu pai jogava esse jogo quando ele era pequeno! Mas... naquela época não tinha Dreamy, como isso é possível?

—Na verdade, a versão “Na Natureza do Sonho Feliz” é um Remake da versão “De Volta à Natureza” lançada pro antigo console de Playstation 1. A antiga companhia que criou a franquia vendeu-a pra uma empresa mais moderna que recriou o jogo dentro do Dreamy, o jogo saiu ano passado, não vendeu lá essas coisas, mas foi bem aceito.

—Ah, que pena... Tenho que comprar e mostrar pro meu pai, acho que ele vai ficar bem feliz de reviver isso de um jeito mais real!

—Bem, mudando de assunto, hoje é o último dia do verão, o ano desse jogo é formado por quatro estações, cada uma com a mesma quantidade de dias de um mês normal. Me ajuda a colher a última safra?

—Safra? Então você também planta?

Kenji chamou o cavalo para um pouco mais longe do meu campo de visão e então eu pude ver a grande plantação. Os frutos estavam refletindo a luz do sol com a água que parecia ser de um regador, as folhas de todas as plantas estavam num verde vivo e convidativo.

—Ajudo... Mas... De que tamanho é essa plantação?

—Olha... Ela é bem grande, mas eu tava com uma meta de só usar metade dela até o fim desse ano. Então não é grande coisa.

—Mas o que eu tenho que fazer?

—Eu vou te dar um cesto e uma foice, só colha os frutos e coloque eles no cesto, daí corte a planta com a foice. Se o cesto encher antes de terminar de colher cada seção da plantação, esvazie ele dentro daquela caixa grande com a plaquinha, okay?

—Entendi...

Com isso, fomos nós dois, eu e Kenji, colhemos bastantes milhos e tomates, ele também tinha plantado abacaxis, que, segundo ele, demoravam o mês todo pra nascer, mas o pagamento era uma beleza depois de vendidos. É claro que reservamos parte da colheita pra nós mesmos e como a colheita rendeu! Brincamos de pega-pega e esconde-esconde na plantação, no galinheiro e nos currais onde colocamos comida para os animais e limpamos eles. Kenji ordenhou as vacas, eu cortei a lã das ovelhas, e nós dois recolhemos os ovos das galinhas. Fizemos até maionese com os ovos!

Ao meio dia, lá estávamos, sentados debaixo da mesma árvore, comendo milho cozido que Matsumoto havia preparado em casa. Estava uma delícia, embora a simulação de paladar do Dreamy não seja perfeita. O cachorro e o cavalo estavam dormindo juntos ao nosso lado, todos sob a sombra daquela árvore.

—Ah! Esse jogo é maravilhoso! Faz eu me sentir tão bem.

Olhei para o garoto ao meu lado, sereno, tranquilo, observando os terrenos limpos, lá se foi a plantação de verão.

—... Amanhã começa o outono... — Disse ele com melancolia.

Reparando um pouco mais de perto em sua mochila, percebi uma espécie de pena azul. Estranhei e resolvi avisá-lo sobre o objeto já que ele tava caindo.

—Hey... O que é essa pena azul que tá caindo da sua mochila?

—Huh? Ela tá caindo? Pera aí que eu vou pegar. É... Como eu explico isso? Bem, essa pena é o item usado nesse jogo pra pedir meninas em casamento. Como nós estamos na versão masculina do jogo, na vila tem cinco garotas, dependendo da quantidade de presentes que eu dou pra cada uma ou converso com elas, elas tem mais ou menos afeição por mim, e quando isso chega no nível máximo eu peço a garota em casamento com essa pena!

—Eh... Que estranho, pedir alguém em casamento com uma pena azul...

—Eu também estranhei no início, mas depois acostumei.

—Quem são as garotas?

—Uma é a Ann, a filha do Doug, o dono da pousada, ela é bem animada e muitas vezes age como um garoto, mas é muito simpática, só tenha cuidado com o que pergunta, a mãe dela morreu e tem sido um trabalho duro pro pai dela cuidar dela sozinho. Também tem a Popuri, a filha da dona da Poultry Farm aqui do lado, ela é uma pessoa meio mimada, mas é uma boa pessoa também, se você avistar ela e o irmão dela brigando, corra! Corra para as montanhas! É o fim do mundo!

Ambos rimos.

—Depois que você me falar sobre elas, eu quero que você me apresente a todas, okay? Continue.

—Certo. Temos a Mary, ela cuida da biblioteca perto da casa do prefeito e de vez em quando te recomenda uns livros, ela é tímida, então não é legal forçar ela a conversar, nem dar muitos presentes de uma vez só. A Elli trabalha junto com o doutor na clínica da cidade, ela vive com o irmão Stu e a avó Ellen, ela é muito educada e gentil, mas, se ela te oferecer sanduíches, tenha certeza de que ela já fez um antes pra alguém, porque se for a primeira vez, você vai conhecer o terror de uma comida mal preparada!

—Mas... Com qual delas você vai se casar?

—Com a última. Eu não disse que tinham cinco?

—E quem é a quinta?

—O nome dela é Karen, ela é a filha dos donos do supermercado da vila.

—Eh... Filha de comerciantes, família rica?

—Mais ou menos, a mãe dela parece uma dessas senhoras de roça milionárias.

—Mas o que te chamou atenção nela?

—Já que ela é só uma NPC, eu fui mais pelos guias do jogo que diziam que ela é a melhor garota pra se casar, mas, nas minhas conclusões, ela não cozinha bem, não gosta muito de coisas relacionadas ao interior, mas é uma ótima pessoa pra se conversar, é esforçada e sempre ouve seus problemas.

—Não! Isso não pode ser asism!

—Wha?! Que susto! Não grite assi—

—Você não pode tratar essas pessoas como “simples NPCs”!

—Mas são isso que eles são, não são?

—Agora, você está jogando esse jogo certo?

—S-Sim?

—Mas você está sonhando também! Se a garota da sua vida aparecesse num sonho seu, você ia tratar ela desse jeito? Com essa indiferença toda?

—Não, mas num sonho eu poderia nunca mais vê-la a partir da manhã seguinte.

—O fato de ela não poder mais ser vista é o que a faz especial?

—...

—Não estou defendendo que você tem que se apaixonar por alguém que não existe, mas, sério, se você tá aqui pra se descontrair, então pelo menos entra no clima.

Kenji apenas me olhou, vidrado em minhas palavras, ele não sabia o que dizer. Começou a rir e aplaudir meu grande discurso em defesa aos NPCs oprimidos. Ele se levantou e me disse para acompanha-lo, iria me mostrar a cidade.

Saímos da fazenda, o primeiro prédio que avistamos foi o do ferreiro, uma casa com uma torre ao lado, pequena, Kenji me disse que ali moravam Gray e seu avô, o ferreiro, Gray era um de seus rivais e pretendente de Mary.

—Ali do lado da casa do ferreiro nós temos a casa do Duke e sua esposa Manna, eles trabalham na adega da cidade e cultivam uvas.

—Hmm... Falando nisso, quanto dinheiro eu tenho?

—Dinheiro, você é uma convidada, acho que não tem. Diga “Menu do jogo HM”. Deve ter o quanto você tem lá.

Fiz assim como ele mandou, o mundo parou, inclusive as folhas que o vento levava pela rua, porém, o tempo continuava correndo. Uma janela flutuante apareceu à minha frente com vários dados sobre minha personagem.

—Se não me engano, o preço do suco de uva é 200G cada unidade...

—Oh! Então eu vou comprar um pra mim e um pra você!

—Você tem dinheiro? Quanto? — Ele estava surpreso.

—2000G! — Disse toda contente apontando para o número ao lado do ícone de um saco de moedas de ouro.

Eu corri pra frente da casa do tal Duke e bati na porta. Esperei um pouco e um senhor de cabelo curto espetado e mechas brancas com uma camisa branca e um colete roxo por cima de gravata borboleta veio me atender.

—Ora, ora, uma forasteira...!

—Não, não Duke, ela é uma amiga minha que também veio da cidade.

—Meu nome é Yuuka, prazer em conhecê-lo Duke!

—Bem, o que vocês querem aqui na minha modesta adega?

—Ela queria comprar dois sucos de uva.

—Oh! Vai dar um de cortesia pra ele mocinha?

—Ah, sim, sim!

—Mas veja só, o nosso Kenji sempre fazendo sucesso com as garotas, isso que é juventude não é meu rapaz? Entrem, entrem, eu e Manna estávamos conversando sobre algumas coisas, juntem-se a nós!

No mesmo instante em que Duke disse o nome de sua esposa, esta apareceu à porta. Uma mulher muito bonita de cabelos lisos e negros, com uma saia longa azul e uma camisa com aba preta de listras amarelas, em seu pescoço havia um lenço assim como o de Kenji, porém branco.

—Eu ouvi meu nome! O que vocês estão falando de mim?

—E falando nela... — Disse Duke meio desapontado.

—O que foi querido? Temos visita? Ah! Que maravilhoso! Uma menina nova! Ela é sua amiga Kenji?

—Sim senhora, veio da cidade também.

—A mocinha aqui vai virar fazendeira também? — Manna me cutucou de modo indiscreto com seu cotovelo, estava insinuando alguma coisa.

—Vou buscar o suco da nossa nova visitante, se deem bem vocês. — Duke saiu de cena deixando-nos a sós com Manna.

Nós conversamos sobre muitas coisas, falamos sobre a vila, sobre como era a vida na cidade, sobre minha relação com Kenji, sobre o casamento dele, até que chegou no ponto final, a esta altura, eu e Matsumoto já tínhamos o suco em mãos e estávamos quase nas despedidas.

—A propósito Kenji, você poderia nos ajudar na colheita no outono?

—Sim Duke, pode contar comigo.

—Pode trazer alguém pra te ajudar também, não precisa se importar com o pagamento, prometemos ser recompensador.

—Deixa isso comigo Manna. Bem, temos que ir agora.

—Obrigada por tudo e adeus Duke, tchau Manna!

—Adeus, voltem sempre! — Disseram os dois ao mesmo tempo.

Continuamos o caminho em frente e passamos pela casa da tal Mary da biblioteca e sua família, era bem grande. Segundo o que Kenji me contou, Mary morava com os pais, a mãe uma senhora de beleza estonteante e o pai um aventureiro que passava grande parte do tempo nas montanhas.

—A mãe dela deve estar ocupada e o pai deve estar fora de casa a esse horário. Vamos dar uma passada na biblioteca então.

—Okay, essa vai ser a primeira menina certo?

—Isso mesmo, mas lembre-se, ela é bem tímida, não force muito.

Ele foi na frente e abriu a porta com uma placa de horários. Entrei vagarosamente imaginando o que havia lá dentro, era um prédio com base circular, em todas as paredes havia estantes e, no centro, uma escada para um segundo piso onde havia mais livros empilhados em prateleiras, ao lado da escada estavam mesas, e, numa delas estava ele. Gray, o primeiro rival lendo um livro, ele usava um boné e aparentava ser ruivo, usava roupas pesadas que pareciam agasalhos.

Ao balcão, à direita da entrada, estava Mary, nos olhando com um pouco de medo em seu olhar. A garota tinha cabelos compridos e presos em tranças que percorriam suas costas, seus olhos eram protegidos por grandes óculos de fina armação, seu vestuário consistia nas cores branca da camisa, azul de uma espécie de camisa regata e saia, e preta do laço de linha sob a gola de sua camisa.

—B-Boa tarde, o que os d-dois procuram?

—Boa tarde Mary, eu só estava passando por aqui pra ver como andam as coisas. Boa tarde Gray!

O rival apenas respondeu com um ajeito de boné.

—E... Quem é essa menina que veio com você hoje?

—O nome dela é Yuuka e ela veio da cidade também.

—Muito prazer em conhecê-la Mary!

Estendi minha mão esperando um cumprimento, pena que ele não veio...

—Igualmente senhorita Yuuka...

—E então Mary? Muita gente tem vindo aqui?

—O mesmo de sempre, meu pai sempre escreve novas coisas sobre as plantas das montanhas nos livros que o doutor vem ler pra preparar medicamentos, o prefeito vem pra ler livros de administração, Gray sempre lê os livros de ficção que eu indico, Sasha veio pra pegar um livro de economia emprestado... No fim são sempre as mesmas pessoas, mas eu gosto desse lugar porque é tranquilo.

—Bem, se você está gostando, não temos nada contra. Enfim, vamos continuar nosso passeio, tchau Mary.

—Até mais Mary!

—A-Até...

—Falou Gray! Nos vemos mais tarde!

Assim saímos daquela biblioteca para continuar o meu tour pela pequena vila mineral, o sol estava bem quente e remoer pensamentos era meio complicado com tanto calor como tava naquela hora queimando minha cabeça.

“Mas... parando pra pensar, as interações com os NPCs desse jogo são bastante realistas, não parece algo totalmente mecânico como nos jogos de antigamente, deu pra perceber isso no modo como Mary escondeu suas mãos atrás de si e desviou o olhar ao me ver. Do mesmo modo, foi bastante natural o modo como Gray respondeu à saudação de Kenji. E... esse Gray... ele é tão legal... tão discreto...”

Quando me dei conta, estava pensando só em Gray. Pois é, eu, Mizushima Yuuka tenho uma queda por caras do tipo dele...

—Yuuka...! Yuuka! Hey Yuuka! Você tá bem? Ficou estranha de uma hora pra outra do nada.

—Eu tava pensando sobre os NPCs desse jogo, eles são meio... Realistas.

—É, a empresa investiu bastante em inteligência artificial pra fazer esse jogo.

—Mas mesmo assim eles ainda não são perfeitos no modo de pensar né?

—Sim, ainda estão sendo feitas pesquisas pra melhorar esse campo.

Passos e passos, chegamos à casa de Ellen, ali moravam ela, Elli e Stu, seu pequeno irmão, Ellen estava numa cadeira de balanço pouco ruidosa e Stu estava brincando no quintal da casa procurando por insetos. Quando o pequenino nos viu, só faltou usar um alto-falante.

—Uma forasteira!! — Gritou como se não houvesse amanhã.

—Stu! Não seja mal educado! Ora, quem vem lá? Kenji e sua amiga?

—Olá Ellen! Quanto tempo. Como andam as coisas por aqui?

—Ah meu filho... andam bem calmas ultimamente, Elli vai pra clínica todos os dias pra ajudar o doutor e eu fico com o Stu quando ele não vai brincar com a May. E quem é essa ao seu lado meu filho? Ela é uma mocinha linda!

—Minha amiga da cidade, o nome dela é Yuuka.

—Muito prazer em conhecê-la senhora Ellen.

Não preciso dizer em detalhes que a partir dali nós conversamos com a família e Elli apareceu para se juntar a nós. Depois que nos despedimos, visitamos a igreja, a casa do prefeito, a praça da cidade, a Poultry Farm, a fazenda onde morava May e seu avô criador de vacas e ovelhas, a pousada, a praia e o cais, e, por último, o supermercado. Já havíamos conversado com Doug e sua filha Ann, com o carteiro, com Won (o vendedor de utilidades), com Popuri, Rick e a mãe deles, com o pastor Carter, com o prefeito Thomas e o policial. Só faltavam Sasha e a tão esperada Karen.

O supermercado tinha uma cara simpática com uma grande placa escrita com seu nome, Kenji entrou primeiro e cumprimentou Jimmy, o caixa. Ele parecia estar passando mal e forçava um sorriso enquanto massageava seu estômago. Nos disse para aproveitar e levar o que quisermos (desde que pagássemos, é claro). Preocupada com ele, perguntei:

—Hey... você tá bem?

—Eu tô, meio mal, mas o doutor aqui do lado já tá fazendo um remédio pra mim.

—Mas você não acha que a situação pode piorar?

—Que isso moça? Pode deixar, eu me viro!

—Então tá, você é bem confiante hein?

—E como! Mas então, quem é você? Meu nome é Jeff!

—Huh? Jeff?

Olhei para Kenji desconfiada, ele fazia vários gestos dizendo que havia se esquecido do nome dele e falou que achava ”Jimmy” o que mais vingava. Me apresentei e conversamos um pouco, mas eu vou te contar, esses NPCs conversam até demais, vai ver gente da roça é assim...

Enquanto conversávamos sobre negócios, entrou Sasha no ambiente, uma mulher muito bonita de cabelos loiros presos com um grande vestido branco e azul com bordas douradas. Ela nos cumprimentou e se dirigiu a Kenji perguntando “É hoje, não é?”, este apenas respondeu com um sim, não havia entendido muito bem, mas acho que foi uma referência à pena azul que ele planeja dar pra Karen.

—Ela não está aqui hoje, mas com certeza ela vai estar no cais hoje a noite.

—Com certeza todos estaremos.

Segurei a manga de Kenji quando ele disse isso, me senti uma criança que é apresentada a parentes que não conhecia antes. Só faltou eu me esconder atrás dele. Sasha continuou conversando com a gente até que ele fechou a conversa comprando várias sementes para a fazenda. Seguimos caminho pela vila de volta à fazenda, nós dois estávamos com sacos de sementes nas mãos, voltando silenciosamente, eu estava meio tensa, não suportava o silêncio, e ele bem relaxado, como o usual.

—O que vai ter no cais hoje a noite? — Perguntei tentando trazer uma conversa.

—É uma surpresa, e você vai ser minha convidada. Mas antes, tem um lugar que eu quero te mostrar.

Passamos pela entrada da fazenda, guardamos as sementes dentro do baú na casa de Kenji, lá tinha várias ferramentas. Ele fez duas porções de arroz pra comermos, estávamos famintos. Já eram quatro da tarde, o céu começava sua primeira linha laranja no horizonte.

Nesse momento saímos da fazenda, mas para o lado oposto ao da vila, pelos fundos da propriedade, lá começava a floresta, subimos uma pequena escada e a primeira coisa que vi foi uma cachoeira que descia do lago logo acima pra formar o riachinho que cortava a fazenda, me agachei próximo à ele para observar os pequenos peixes que ali estavam.

Quando olhei pra trás, tomei um susto, havia uma fonte termal, fazia muito tempo que eu não ia a uma. O vapor estava subindo bem devagar e as folhas das árvores ao redor estavam caindo na água por detrás da parede do bambu que conferia um mínimo de privacidade.

—Quer entrar? — Perguntou Kenji na maior tranquilidade.

—Eu? Mas agora?

—Temos bastante tempo por agora, relaxa.

—Mas você vai entrar também?

—Claro.

—Mas é uma seção só! Não tem duas.

—E daí? Nenhum dos NPCs ligam pra isso.

“Aposto que esse jogo foi feito pra uma pessoa só jogar...”

—Ah! Tá bem, vamos lá.

Eu fui primeiro e fechei a pequena cabana de troca de roupas, perguntei a ele como se fazia isso e ele respondeu citando o menu do jogo, quando o abri, eis a surpresa, ou eu ia de biquíni ou só de toalha. É claro que eu optei pelo mais seguro, e logo depois percebi que Kenji fez o mesmo usando uma bermuda preta pra ficar ali.

Primeiro, coloquei um pé na água pra ver se tava boa, e realmente, me sentei no chão da fonte toda sorridente e aliviada, aquilo era uma beleza! Fechei meus olhos e relaxei suspirando. O vento soprou fraco e me fez descer um pouco mais a fundo a fim de cobrir meu exposto corpo abaixo da água.

—Ah... Que verão lindo... não... espera...! Verão?!

—É uai, nós estamos no verão.

—Então o que a gente tá fazendo aqui?!

—Não era você que queria entrar?

—Eu queria! Mas não tem sentido entrar numa fonte termal no Verão!

—Não esquenta, eu ajustei o clima interno da fonte pra se parecer com o do outono. Sabe aquele vento que passou agora há pouco? Era daquele jeito porque o sistema gerou como se fosse do outono.

—Ah, entendi.

“Pensei que ele tava se aproveitando da minha vontade de entrar pra me observar...”

—Mas, parando pra observar, você ficou muito bem nesse biquíni, não quer comprar um parecido amanhã no centro da cidade?

—Então você tava se aproveitando mesmo! Eu sabia! — Levantei apontando pra ele.

—Eu só fiz um comentário... — Disse ele xoxo com a ofensiva.

—Mas você tá se aproveitando da situação!

Kenji deu um tapa no próprio rosto de leve enquanto sorria, mostrando desapontamento. Num passe de mágica, vi que tinha estragado uma conversa, então tentei me recompor, me acalmei e voltei a me cobrir com a água morna que dançava em pequenas bolhas.

—Desculpa, eu tava pensando um monte de coisas agora, mas... sobre o biquíni, eles vendem roupa de banho também nesse jogo?

—Bem... vendem, mas eu não tava falando do jogo, tipo, eu e você irmos ao shopping no centro da cidade “lá fora” e comprarmos um biquíni parecido com esse pra você.

—Ah! Ahaha... Era disso que você tava falando. Quando você quer ir?

—Que tal depois de amanhã?

—No sábado? Ah, não, me desculpa, eu tenho umas coisas pra fazer no sábado.

“Isso vai me atrapalhar...”

—Então... Na segunda?

—Poxa... eu também tenho compromisso na segunda... Já sei! Quando eu estiver livre eu te falo, aí se você também estiver, a gente vai!

—Okay então, mas não se esqueça!

—Acho melhor a gente ir , não? Tá ficando cada vez mais tarde...

—É, tem razão, vamos lá que agora nós vamos subir a rota da montanha.

—Montanha? O que vamos fazer?

—Lá em cima tem uma vista linda, quero te levar lá.

—Então vamos, ainda temos que voltar lá para o cais, certo?

Tirei meu biquíni depois que Kenji já tinha saído da fonte, era vermelho com listras pretas e brancas, coloquei minhas roupas de roceira de volta, tenho que confessar, elas eram meio pesadas, mas mesmo assim parecia que meu corpo estava muito mais leve, o garoto comigo disse que a fonte te deixava assim, então poderíamos ficar ativos mais tempo noite adentro, ou pra trabalhar mais, por isso subimos o caminho das montanhas correndo, passamos sob o túnel de árvores que deixavam suas folhas caírem com o bater da brisa que circulava a montanha pelos arredores e pela parte de cima. Andamos entre risadas e sorrisos, assim como animadas conversas, avistamos flores e coloquei uma sobre minha orelha que fez Kenji me olhar admirado, deitamos na grama pra descansar debaixo de uma árvore de idade secular. Ele me disse que já estávamos quase no lugar que queria me mostrar. Andamos por mais um pouco e subimos uma pequena ladeira com árvores floridas e algumas com folhas velhas e alaranjadas, até porque o outono já estava chegando. Passamos por mais um túnel de árvores, porém, este era mais escuro, e quando estávamos pra sair dele, a luz do lado de fora parecia tão forte que não conseguíamos ver direito o que estava à frente.

Quando saí, cobri os olhos com as mãos para fazer uma passagem de adaptação mais gradual e suave, se não meus olhos iriam começar a doer, e todo mundo sabe que isso é muito desagradável. Mas... Quando conseguia enxergar perfeitamente, fiquei impressionada, a vista era linda, conseguíamos ver toda a faixa costeira, as nuvens e o sol no horizonte com o mar logo abaixo. Na beira do mar estavam a vila e as três fazendas, a casa do lenhador, a clínica, o supermercado, a biblioteca, a adega, o porto e principalmente a praça da vila onde um monte de pessoas se juntava nesse momento trazendo um monte de equipamentos em direção ao porto. Me sentei na grama ao lado de uma grande árvore, Kenji sentou-se também, porém, ousado como sempre, deitou sobre meu colo.

—Que pecado eu cometi pra ter que suportar isso?

—Me conheceu.

—Vou construir uma máquina do tempo e te matar então.

—Mas se você voltar e me matar, você não terá me conhecido.

—E daí?

—E daí que você não teria montado uma máquina do tempo, e então a sua eu do futuro deixaria de existir porque seria algo como uma “eu” que você não se tornou. Então o meu eu de agora, o meu eu do passado e o seu eu de agora sumiriam todos de uma vez.

—... O pior disso tudo é que fez sentido...

—Tá vendo? Ás vezes eu penso também.

—Mas só pra coisa inútil! — Disse sorrindo enquanto lhe dava um tapa na testa.

—Que horas são agora?

—Seis e dez da tarde.

—O evento começa às sete, daqui a uns vinte minutinhos a gente já devia ir descendo pra chegar lá na hora.

—É o suficiente pra mim apreciar essa vista...

Olhei ao redor, montanhas e florestas, alguns rios e estradas para as vilas próximas que exalavam pequenas colunas de fumaça de suas chaminés. Também vi algumas pessoas destas vilas vindo pra cá, acho que elas iam fazer parte do tal evento que vai ter na praia.

Balancei a cabeça de Kenji sobre meu colo, ele já tinha dormido.

“Ah... Você tá de brincadeira comigo...!”

—Hey... Kenji...! Acorda! Kenji!

“Não tá funcionando...”

Eu fiquei meio confusa sobre o que fazer, tínhamos que descer para o cais, mas Kenji não acordava de jeito nenhum.

“Acho que vou dormir também...”

Fechei meus olhos e tentei dormir, a cabeça de Kenji em meu colo estava um pouco pesada mas não era nada que causasse mal estar. De pouco em pouco acabei adormecendo.

...

—Yuuka...? Yuuka é o nome dela, certo? Ah, tá. Entendi. Yuuka, acorde, Yuuka!

“Quem...?”

—Yuuka! Acorda Yuuka! Já vai começar, a amostra já vai começar!

Abri meus olhos bem devagar, estava deitada em algum lugar onde havia uma brisa constante, estava numa cadeira de praia. Notei bem em quem me chamava, parecia que eram duas pessoas, um garoto e uma garota, tentei me lembrar de seus nomes, eram Rick, o irmão de Popuri, ele estava com sua usual faixa na testa. Mas quanto à garota, eu não a tinha visto antes por aqui na vila, ela tinha cabelos lisos e compridos, olhos verdes e duas mechas fortemente loiras como franja, usava uma camisa branca com uma blusa roxa pequena por cima e um short jeans.

—Ela acordou, chama o Kenji pra mim Rick. — Disse ela.

—Onde eu tô? — Perguntei zonza.

—Você tá na praia da Cidade Mineral, a gente vai ter uma amostra de fogos de artifício agora, isso acontece todo fim de verão.

—C-Cadê o Kenji?

—Ele foi buscar um copo de água com o Kai pra você.

—Ah...

—Mas, afinal, qual a relação de vocês?

—Nós somos amigos, viemos lá da cidade grande.

—Tem certeza? Não são nada mais que isso?

“Será que ela tá com ciúmes?”

—Sim, nada mais do que isso e eu posso te garantir.

—É que... Eu estava colhendo pedaços de bambu pro Jeff quando ouvi a conversa de vocês lá na fonte termal. E estranhei quando ele te trouxe nos braços pra cá.

—Ele fez isso?!

Todas as pessoas que estavam ao redor nos olharam, e não eram poucas.

—É, ele fez. — Ela fechou seu punho e deu um sorriso sádico.

—Mas não se preocupe, não tem nada entre a gente.

Quando terminei de dizer isso, Kenji chegou correndo com um copo de água, se agachou e perguntou a Karen se eu estava bem, ela consentiu e eu bebi o copo de água, Kenji olhou várias vezes para a garota, mas em todas estas ela não deu sinal de confiança. O garoto estranhou os gestos da então namorada, e, a fim de conversar com ela, me deixou sozinha.

Eu olhei para o céu, cheio de estrelas, e então me confortei na cadeira onde estava deitada, logo, um garoto passou por mim e me percebeu, se aproximou e sentou numa cadeira ao meu lado.

—Olá, você é nova por aqui?

—Sim, estou só de passagem com meu amigo.

—Amigo? Que amigo?

—O Kenji, dono da fazendo do lado da casa do ferreiro.

—Ah! O Kenji, ele vende milho pra mim de vez em quando, ele é um cara muito gente boa, você se deu bem. Pena que ele já tá comprometido com a Karen, né?

—Não, eu não tenho intenções de namorar ele.

—Ah, entendi, então, depois que a amostra acabar, quer ir comigo ao restaurante do Doug pra gente conversar?

—Hahaha, mas eu nem sei seu nome direito! — Disse sorrindo.

—Ah! Me desculpe, meu nome é Kai. E o seu?

—Eu sou Yuuka, prazer em conhecê-lo. Mas eu vou ter que recusar, já que eu tô de favor na casa dele, não posso passar muito tempo fora de casa.

—Entendo, vamos marcar um dia pra nos conhecermos melhor, pode ser quando você quiser.

—Ah... Esqueci de dizer, eu estou indo embora amanhã mesmo... Desculpa.

—Poxa, que triste, por que não fica por mais tempo?

—Tenho que voltar para a cidade, tenho muitas coisas pra resolver por lá.

—Ah... A vida da cidade, tenho amigos que vivem desse jeito apressado também. Tá passando por aqui só pra aliviar o estresse?

—Isso mesmo, mas foi muito bom conversar com todo mundo, o povo daqui é muito simpático, me senti confortável o dia todo. Posso voltar um dia.

“Mas não vou.”

—Ah! Isso e ótimo! Então, quando você voltar, vamos marcar uma festa com todo mundo, pode voltar num dia de festival, aí já vai estar no contexto perfeito, okay?

—Não acho que precisa de tanto, afinal eu nem passei muito tempo com todos.

—Para com isso, eu só venho nessa vila nos verões e sempre sou bem recebido!

Nesse momento uma salva de palmas foi ouvida e olho entre as silhuetas das pessoas, procurando pelo motivo do acontecido, em meio a elas vejo Kenji ajoelhado à frente de Karen que parecia não acreditar na cena, Rick se mordendo de ciúmes chorava sobre a própria camisa pela derrota.

Ele estendeu à ela a pena e ela, trêmula, pegou com o maior cuidado de sua vida, abraçou-a e depois pulou em cima de Kenji, chorando de felicidade. Com isso, subiu ao céu o primeiro fogo de artifício, que, comprado por Sasha formou um coração vermelho no céu.

Várias flores de fogo coloridas e passageiras preencheram o céu cheio de estrelas, as pessoas aplaudiam, os casais se ajuntaram e uma música de uma banda local ecoava pelo local. Kai decidiu que ficaria ao meu lado até que os fogos terminassem, eu peguei sua bandana roxa e coloquei em minha cabeça sorrindo. Ambos conversamos enquanto aquele show acontecia, mas era algo em particular, quem diria, eu estava fazendo amizade com um processo de computador...

...

O último fogo foi lançado ao céu e com isso todos gritaram dizendo adeus ao verão, se abraçaram e conversaram mais um pouco antes de irem para casa. Mas, é claro, Karen e Kenji tinham que se despedir com algo a mais, isso mesmo, os dois se beijaram na frente de todo mundo. E eu aqui tive que ir lá consolar o coitado do Rick. E não foi fácil!

Voltando para casa e nos preparando para terminar o dia (isto é, sair do Dreamy), eu e Kenji andamos pelas ruas que levavam até a fazenda, sozinhos, em silêncio.

—Então você consegui... Quando vai ser?

—No fim do outono. Quer jogar junto comigo pra ver?

—Não, não precisa. Não temos mais nada pra fazer nesse dia e a escola já deve estar quase fechando, o que você vai fazer?

—Tenho que salvar o avanço do jogo.

—Mas você não pode fazer isso só de entrar no menu?

—Não, nesse jogo o único jeito de salvar é abrir um outro menu que fica dentro de um diário em cima de um criado mudo do lado da cama.

—Então a gente tá indo até esse tal diário.

—Isso mesmo. Obrigado por consolar o Rick, fiquei sabendo que você fez isso.

—Coitado, tava precisando. Ver a amiga mais próxima dele receber uma proposta de casamento não deve ser fácil.

—Parece que você também se deu bem com o Kai não é?

—É, mas ele é muito ousado, que nem você.

—E você não gosta?

—Não que eu não goste, mas eu priorizo mais outros tipos.

—Ah é? Que tipos?

—Não vem ao caso, vamos acabar com isso logo, a fazenda tá logo ali.

Passei pela entrada e abri a porta da casa, sentei-me em uma das cadeiras à mesa no centro da sala, enquanto isso, Kenji foi em direção a seu quarto dizendo um simples “volto logo”. Esperei por alguns minutos e ele voltou.

—Está tudo pronto, vamos embora?

—Já era hora, mas, antes disso.

Levantei da cadeira, pulei sobre a mesa e caí em cima dele, no chão, encarando-o olho a olho, disse:

—Obrigada por hoje, eu me diverti muito!

—Ah? Sério mesmo? (Ai!) Mas não precisava ter pulado em cima de mim!

—Mais importante, o que você e a Karen vão fazer depois do casamento?

—Nós vamos ficar juntos até o final do jogo ué.

—Só isso?

—O sistema do jogo se encarrega do filho sozinho.

—Entendi. Então? Vamos sair?

—Vamos.

Fizemos o comando de saída, e pouco a pouco, nossos personagens foram desaparecendo do cenário deixando apenas alguns focos brilhantes no ar. O céu brilhante de estrelas, como era lindo...

Vou me lembrar dele até meu último dia.

...

Acordei, naquela sala, a luz alaranjada já era muito fraca, estava tudo bem escuro e eu não conseguiria ver nada se não fosse o brilho das listras do Dreamy, levantei-me e tirei o cabo DTD enquanto Kenji não despertava, enrolei-o e coloquei ao seu lado.

“Essas roupas são meio apertadas, acho melhor tirá-las...”

Por fim, comecei a tirar aquelas roupas escuras e apertadas, entretanto, ao tirar o colete com a espécie de camisa, minha camisa de uniforme acidentalmente saiu junto, estava indefesa, porém tranquila, Kenji ainda estava dormindo, então não havia problemas.

—... V-Você tem um corpo b-bem modelado.

“O QUE?!”

Me virei rapidamente cobrindo minha roupa íntima com os braços pedindo que ele não olhasse, embora fosse em vão, ele me olhava envergonhado e vidrado ao mesmo tempo, me assustei e um calafrio percorreu meu corpo.

“Por que essas coisas têm que acontecer comigo?!”

—Obrigada, mas eu me sentiria melhor se você não olhasse...

—Tá bem...

Sem graça, eu e ele guardamos nossos consoles Dreamy, ou melhor estávamos levando-os pra casa, saímos da escola, descemos algumas ladeiras, e dessa vez, totalmente em silêncio, podia ouvir meu coração assim como ouvia meus próprios passos, estávamos próximos demais e eu não podia me afastar dele, era noite e eu queria ficar o máximo possível dentro de seu campo de visão antes que ele fosse embora. Estava envergonhada daquilo, mas não devia deixar isso me abater, tentei iniciar uma conversa.

—Eu— — Fui interrompida por ele.

—Você... Você quer sair comigo algum dia desses?

—Ah...! — Estava surpresa, só que... Vindo dele, eu esperava algo mais dramático, que nem o Kyaro-senpai fez com a Tsumin.

—Se você não quiser, não precisa aceitar.

—Bem... Olha... É que, eu não posso aceitar.

—Eu posso saber o porquê?

—Infelizmente não.

—Ah... Desculpa então. Parece que é aqui que nos separamos.

Paramos na bifurcação onde geralmente cada um ia para sua casa, esse lugar era marcado por uma árvore de cerejeira, e, já que era primavera, o chão estava cheio de pétalas de flores cor-de-rosa, eu gostava daquela árvore, mas nessa situação, ela me atordoou um pouco.

As luzes dos postes, acesas, falhavam de vez em quando, peguei meu celular para ver as horas, espantada. 20:18 PM, realmente, era o horário em que nos separamos.

“Huh? Mas já? Eu nem notei que já tínhamos andado todo esse percurso...! Okay, mas vou dar um último gás nessa conversa!”

—Mas não desanime marinheiro! Eu não te odeio! Gosto muito da sua presença, e também acho que seria bem legal desfrutar minha juventude ao seu lado! Então não desista de mim, okay? — Essa última parte eu sussurrei no ouvido dele, você acha que ficou convincente?

A cara dele corou no mesmo instante, fiz um joinha e dei um sorriso de orelha a orelha pra não deixar ele triste. Ele entrou no clima, disse um alto “sim!” e saiu dali dando um grande “tchau” com o braço levantado.

Assim que ele sumiu do meu campo de visão, voltei minha atenção para a rua que seguiria sozinha, na verdade eu não tinha tanto medo da criminalidade quanto explicitei antes, mas, quanto mais protegido melhor, né? (Pais, não levem a sério demais.)

...

“Ainda não quero voltar pra casa... O que vou fazer?”

Andei pelas ruas escuras sozinha, passando poste por poste, olhei para o céu. Aqui ele não brilhava como lá, mas será que um céu daquele jeito existe mesmo? Chutei uma latinha de refrigerante que estava no chão várias vezes, e quando avistei uma lixeira, coloquei-a lá dentro.

“Será que estou fazendo coisas inúteis como essa latinha no tempo e no lugar errado? Mas mesmo que essa latinha seja inútil por um ponto de vista, ela pode ser bem útil a partir de outro, não?”

Andei em círculos em volta de uma praça até sentar em um banco ao seu centro, olhei para as árvores, os postes, a água que saia pela fonte e suas gotículas que caíam fora de seus limites. Voltei minha atenção para meu colo, passei minhas mãos de leve sobre minhas pernas. Ainda conseguia imaginar um pouco da textura do cabelo dele mesmo que o espesso tecido do macacão me atrapalhasse a senti-lo.

Suspirei e coloquei meus cabelos para trás da orelha direita, o mesmo local onde havia colocado a flor naquela maravilhosa tarde que passamos no topo daquela montanha. Abri minha maleta de estudos e tirei alguns papéis e um lápis. Fiz um monte de rabiscos e anotei algumas coisas, a folha de papel que risquei, de tão usada, já estava ilegível com minhas anotações, às vezes, nem eu conseguia entendê-las.

Guardei os itens dentro da maleta e suspirei novamente.

Tentei sorrir.

Tentei de novo.

Tentei mais uma vez, mas meu lábio tremeu...

—...

Me esforcei ao máximo, não queria que o que estava por vir acontecesse, mas foi inevitável, por mais que eu tentasse, não consegui esconder.

E então... Meu sorriso de desmanchou num choro.

As lágrimas escorreram por minhas bochechas e caíram sobre minha saia, eu tentava abafar minhas falas desconexas enquanto meu queixo não podia se manter parado. Abaixei minha cabeça deixando que minha franja escondesse meu rosto na tentativa de me conter, entretanto, tudo era em vão.

Parece que somos uma árvore de natal, com várias caixinhas de presentes aos seus pés, cada caixa é um sentimento e cada chama na lareira é um traço da felicidade, mas quando a noite cai, a festa acaba e todos vão embora, a lareira se apaga, e o que sobrou foram os presentes ruins, que vieram quebrados e não serviram, incapazes de fazer alguém feliz, que ninguém quis levar consigo. O que eu faço com meus “presentes”?

Não posso jogá-los fora, não posso tê-los o tempo todo. A única coisa que posso fazer é escondê-los, é não deixar que os vejam.

—... Eu não quero continuar assim!

E quanto aos presentes bons? Eles também vieram, e se foram, sempre assim, como o sol que nasce a cada dia, mas parece que estes ruins nunca somem, nunca me deixam, e eu tento me acostumar com isso.

Há anos eu tento me acostumar.

Então, já que não consegui, estou colocando em prática outros meios de acabar com essa aflição, quando terminar de tentar todos, e mesmo assim não obtiver os resultados esperados, vou colocar em prática meu plano infalível, mas vou deixa-lo por último, ele é muito perigoso, tanto pra mim como para os outros.

Mas por agora... Vou jogar tudo para o alto.

Chorei e chorei por bastante tempo. Estava frio e buscava consolo em meus próprios braços, mesmo sabendo que não podia fazer nada no momento por mim mesma. Tentei me acalmar, inspirei fundo várias vezes, engasgando no processo, mas no fim deu quase certo, estava quase tudo como deveria estar. Feliz e alegre de novo.

Tomei um susto ao ouvir um barulho estranho, não queria que ninguém me visse, muito menos nesse estado, nessa situação. Procurei pela fonte do som, mas não vi nada que a indicasse. Dando uma segunda olhada pelo local, enxuguei minhas lágrimas com as mangas de meu uniforme. Escondia meu rosto vermelho enquanto não voltava ao normal, tentei consertar meu cabelo, para ficar apresentável.

Levantei-me e perguntei se havia alguém ali, esperei pela resposta por um bom tempo, mas nada me deu um sinal de presença. Peguei meu SmartPhone no bolso de minha saia, olhei as horas, já era bem tarde.

Dei um tapa em meu próprio rosto, doeu, é claro, mas era um tentativa de me recompor, fechei meu punho e disse um convencido “pronto!”. Peguei minhas coisas, e saí correndo dali, estava com pressa de chegar em casa. Desci correndo por algumas escadas e quase caí em algumas, o vento fazia meu cabelo escorrer por entre si, podia sentir a brisa em meu rosto, gélida, meus olhos, antes encharcados, agora estavam secos, e precisava piscar com uma frequência maior, o que fazia-os arder.

Logo entrei numa vizinhança, casas simples de família de classe média me rodeavam, fui diminuindo o passo até parar na frente de uma casa, a minha. Flores vermelhas brancas e rosas me convidavam a entrar, abri o pequeno portão que fez ruídos metálicos anunciando minha chegada para os moradores.

Meu vizinho estava tocando um pouco de piano, a janela de seu quarto estava aberta. Quando ouviu o ruído de meu portão, parou de tocar e veio à vidraça para me ver. Ele acenou e eu respondi com um sorriso, se não me engano, ele é um pouco mais velho que eu e ama tocar, por isso sempre me pergunta se quero ouvir alguma coisa quando chego.

—Quer ouvir alguma coisa hoje?

—Quero!

—Qual?

—A que você puder tocar melhor! Pode ser a sua favorita!

—Mas... Tem certeza? — Ele me olhou confuso.

—Claro! Mas não precisa ser agora, vou tomar um banho e depois vou dar um sinal do meu quarto, enquanto isso pode continuar praticando.

—Ok, você é quem sabe.

Entrei em casa e fui logo em direção ao banheiro, tudo o que queria era relaxar, tirei meu uniforme, enchi a banheira e me olhei no espelho, estava com uma aparência desgastada, sem hesitar, entrei na água que por sinal estava muito boa.

Sentei-me no fundo da banheira e me recostei em sua borda curvada para cima. A espuma estourava suas bolhas em pequenos barulhinhos. Ingenuamente tentava agarrar as bolhas maiores pegando-as com minha mão por baixo da água. Reclinei meu corpo para frente e envolvendo minha nuca com ambas as mãos, joguei meu cabelo para trás na tentativa de obter um conforto maior.

De vez em quando, uma gota caía da torneira que encheu este lugar, seu singelo estalo percorria o local, aquilo me conferia segurança. Eu queria paz, e isso por meio do silêncio, mas não de um jeito tão exacerbado que me desse a impressão de abandono e solidão.

“A quem eu quero enganar...?”

Segurei meus ombros com minhas mãos enquanto dobrei minha perna esquerda, eu estava olhando para algum lugar de cabeça baixa sem mesmo prestar atenção em nada. Pode-se dizer que eu estava ali, mas ao mesmo tempo não estava.

“Shiho... Eu quero confiar nela, quero contar pra ela, mas...”

As gotas se acumulavam na parede pelo vapor que escapava da banheira. Os azulejos brancos que cobriam o chão e as paredes refletiam com pouca intensidade a luz branca que iluminava o ambiente.

Aquele foi o banho mais longo que tomei durante o mês.

...

Minha mãe ainda não havia chegado em casa, provavelmente estava fazendo hora extra na empresa que trabalhava. Meu pai, bem... Meu pai deve ter ficado o dia todo trancado em seu escritório aqui em casa. Não é fácil ser filha de um advogado e de uma bionanotecnóloga, principalmente porque os dois vivem se entendendo errado, parece que eles não estão muito felizes um com o outro, me pergunto se eu deveria intervir pra ajudar. Eu realmente não gosto de ver eles assim...

Mamãe vive enterrada em suas pesquisas, papai vive afogado em papéis e discursos mirabolantes de defesa, tanto um como o outro não têm mais tempo para cuidarem de seu casamento.

“Talvez, eu esteja sendo um incômodo para os dois...”

Percebi que estava ficando muito mal, pensando em coisas ruins de novo. Automaticamente tentei me livrar desses pensamentos jogando água em meu rosto, sacudi minha cabeça pra lá e pra cá tentando esquecer a bobeira em que havia pensado. Não posso ter esse tipo de coisa em minha mente, não por agora, se as coisas estão ruins então devemos melhorá-las não é verdade? Podemos reestruturar tudo o que está ao nosso alcance, certo? Afinal seres humanos têm inteligência e podem compreender muitas coisas e o que for necessário pra cumprir suas ações e assim alcançar seus interesses, estou errada?

“Mas e se eles não quiserem compreender? E se eles não tiverem mais interesses em comum? Isso pode ser o fim da minha linha.”

Nesse momento crítico meu celular tocou. Me assustei com a música retro que tocou do nada, saí da banheira e enxuguei minhas mãos numa toalha de tom rosa desbotado. Era uma sensação ruim sair do calor da água pra ser abraçada pelo frio do ar e das paredes, por isso envolvi meu corpo com a toalha, pra não ter um choque térmico tão grande. Desbloqueei o aparelho e vi no visor quem me ligava. Minha mãe.

—Alô?

—Yuuka? É você meu bem?

—Sim, sim, pode falar mãe.

—Eu vou ter que ficar por muito tempo aqui no laboratório, desculpe, mas posso contar com você pra cuidar da casa enquanto isso?

—...

Fiquei por um período em silêncio, eu sabia que devia apoiar minha mãe, mas isso me deixava triste, acho que ela devia passar um tempo mais extenso comigo e com papai. Sei que ela está dando seu máximo no trabalho, entretanto, isso não significa que ela vai atrair mais atenção, responsabilidades e expectativas e vai ficar mais ocupada e sem tempo pra gente? Sem querer, deixei escapulir uma pergunta que não queria ter feito.

—Mãe... Você gosta do seu trabalho?

—Huh? Por que isso de repente minha filha? É... Sim, eu gosto do que faço!

—Hmm... Por nada, eu só queria saber. Eu cuido da casa, pode ficar tranquila.

—Ah! Muito obrigad—

—Mas antes, me prometa uma coisa... Que quando você voltar, eu, você e o papai vamos sair todos juntos.

—...

Minha mãe ficou em silêncio por um tempo até ouvir um ruído e dizer que precisava ir. Sem me dar uma resposta clara, apenas me conformei. Ela desligou o celular e eu fiquei sozinha com o barulho de ligação encerrada, abaixei meu braço com o smartphone, sem esperanças.

Sequei meu cabelo e corpo com a toalha. Peguei a muda de roupas que estava dentro de um cesto e me vesti. Consistia em minhas roupas íntimas e uma grande camisa, sabe? Daquelas bem largas pra não dormir com sensação de aperto, mas era só isso.

Saí do banheiro e fui em direção ao meu quarto, no caminho passei pela porta do escritório do meu pai, ele havia dormido na frente do computador que estava com uma planilha de horários e um montão de documentos de texto abertos ao mesmo tempo, olhei em volta e percebi que numa poltrona ali perto havia um cobertor, fui até ela e peguei a peça de tecido espesso para cobrir meu pai, ele devia estar exausto. Depois de fazer isso, me despedi dele com um “boa noite” baixinho e um beijo em sua bochecha.

Andei pelo corredor e cheguei a meu quarto, abri a porta e desabei sobre a cama, meu vizinho ainda estava praticando seu piano, foi aí que me lembrei do que tinha combinado. Abri a janela do meu quarto e ele instantaneamente olhou pra mim, trocamos olhares por um tempo e então eu dei o sinal de confirmação pra ele.

O garoto trocou de partitura num instante e sua irmãzinha sentou-se ao seu lado, apenas olhando o que ele ia fazer, na verdade ela pegou uma cadeira de escritório e colocou ao lado do banco de piano, seu irmão mais velho estava na extremidade deste banco, ela deitou-se sobre a cadeira e o banco posicionando sua cabeça sobre o colo do garoto que começou a tocar sem dificuldade alguma.

Pra ser sincera, eu não devia ter pedido pra ele tocar a favorita dele, mas ele parecia tão concentrado e satisfeito com a escolha que não tive coragem de interrompê-lo. Eu estava na janela, e ele estava tocando só pra mim, seria falta de educação me deitar na cama justo agora.

Mesmo que... Mais tarde essa música me fizesse chorar na frente dele.

Meu vizinho era a pessoa em quem eu mais podia confiar pra contar meus problemas, ele sempre me ouvia sem me interromper, entretanto, nós dois sabíamos que no fundo ele não podia fazer nada, até porque eu não gostaria de envolve-lo com meus problemas pessoais. Mas todas as vezes que ele me ouvia, eu o agradecia, e ele sempre me disse que eu poderia voltar e pedir atenção novamente.

Ele mora aqui há bastante tempo, passamos pouco tempo juntos se tratando de tempo por dia, mas em anos pode se dizer que foi um tempo considerável. Somos quase melhores amigos, saímos uma vez ou outra pra um passeio e sempre conversamos sobre nossas vidas um para o outro.

O Senhor Vizinho é o melhor.

Assim que a irmã dele dormiu, ele pediu que eu esperasse na janela, levou-a ao quarto dela nos braços e voltou depois de um tempinho, olhou pra mim e disse:

—Quer que eu faça algo? Estou a seu dispor.

O sorriso que ele mostrava em situações assim sempre me aproximava dele. Era como se ele fosse minha solução pra tudo. Por isso, se eu fosse pedir alguma coisa, pediria apenas que ele ficasse um pouco mais comigo antes de ir dormir.

Ele é a única pessoa capaz de me defender de mim mesma.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo, apesar da Mizushima ser uma pessoa tão depressiva ;-;
Eu tava pensando em fazer o próximo capítulo sobre a Tsumi ou a Shiho já que nesse aqui eu já falei sobre o Kenji e a Yuuka ao mesmo tempo.
O estranho foi eu dar mais atenção ao "Senhor Vizinho" do que pra Yumi Sato (pra quem não lembra ela é a garota do clube de música que toca guitarra)!
Bem, foi só isso por enquanto, até a próxima!
VictorNutty ~



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Dreamy - Sonho Simulado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.