Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 15
Novo lar




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Luna observava sua sósia caminhar ao seu redor, permaneceu sentada, sem mexer um músculo sequer, mas isso só pareceu irritar a outra ainda mais.

 

— Em quantos problemas você vai nos meter antes de engolir esse orgulho bobo e voltar pra casa?

 

Apesar de serem iguais, aliás, praticamente a mesma pessoa, a voz da sósia era mais arrogante e tomada por um tom mais firme. Luna virou o rosto, para poder olhar nos olhos dela, por mais repugnante que fosse o arrepio que tal gesto provocava.

 

— Aquela não é a nossa casa. Não é a minha casa. — falou devagar — Eu achei que você não fosse mais aparecer…

 

— Eu sou você, minha querida. Seus desejos e pensamentos mais obscuros… O colar só fez me despertar. — A sósia sorriu com certo deboche, se sentando na frente de Luna e fazendo questão de ficar perto o bastante para que seus joelhos quase se tocassem. — Sem ele, você me privou da liberdade, apenas isso.

 

— Você não vai ganhar nada aparecendo assim. Eu não vou deixar você me controlar de novo… — A feiticeira ameaçou se levantar, mas foi contida pela mão da outra em seu braço.

 

— Você acha mesmo que pode escapar? Nada além de miséria e desespero nos aguarda no caminho que você escolheu seguir anos atrás… Já é tarde pra mudar, muito tarde.

 

Luna a encarou, vendo seus olhos brilharem em um azul que pouco a pouco se tornava mais escuro. Em um movimento rápido, puxou seu braço de volta, acariciando onde a pele havia ficado marcada pelo aperto com a mão oposta.

 

— Sou eu quem decide se é tarde ou não. Contente-se.

 

Sua sósia a encarou com ódio, se levantando de um salto e pulando sobre ela, derrubando-a com força no chão enquanto forçava as mãos ao redor de seu pescoço...







Luna abriu os olhos com o susto, puxando o ar com violência de volta para seus pulmões e produzindo um som oco e desesperado no processo. Se sentou, apoiando as mãos no chão atrás de si, e ainda arfava quando sentiu uma mão suave em sua perna. O olhar perdido se dirigiu para a pessoa ao seu lado, encontrando uma Maia preocupada.

 

— D-desculpe… — conseguiu sussurrar com a voz ainda trêmula.

 

— Eu sempre tenho pesadelos, está tudo bem.

 

A elfa se sentou com calma ao seu lado, encarando-a com atenção antes de tirar alguns fios da sua face com cuidado. A feiticeira a encarou surpresa, mas só recebeu um sorriso gentil como resposta.

 

— Você… Você é boazinha demais, Maia. — Deixou escapar enquanto sorria de canto.

 

— E eu não deveria ser? — Ela inclinou a cabeça um pouco para o lado com um olhar confuso.

 

— Não, quer dizer… As pessoas boas raramente se dão bem nesse nosso mundo.

 

— E só por isso eu deveria ser alguém ruim? — riu baixo — Acho que é mais um motivo para eu ser boa, é do que o mundo precisa. De bondade.

 

Luna a encarou, ponderando sobre suas palavras antes de assentir, concordando com sua posição. Enquanto ficava se sentindo superior e achando que todos ali não passavam de tolos, era ela quem se revelava cada vez mais tola e manipulada pelos ideais distorcidos que haviam se espalhado com o Caos.

 

— Mal amanheceu. Vou fazer um chá pra você…

 

Maia ameaçou se levantar, mas a feiticeira a deteve, segurando em seu pulso com um gesto rápido mas, ainda assim, hesitante.

 

— Como… Vocês conseguem? — Ela evitava olhar para a elfa, mantendo seu rosto baixo — Quero dizer… Como conseguem só “viver” ignorando tudo o que acontece ao redor? Todos os perigos, todos os riscos que estão correndo…

 

Maia riu baixo, voltando para seu lugar e inclinando sua cabeça para poder olhar o rosto de Luna.

 

— Nós temos plena consciência do que está acontecendo com o mundo. Da crueldade sem limites a qual todas as raças estão propensas.

 

O tom da elfa era baixo, calmo, mas ele possuía uma autoridade e uma certeza enquanto transmitia aquelas palavras que fez com que a feiticeira a encarasse curiosa. Fazia ainda menos sentido saber disso. Se eles sabiam o risco que corriam, por que se arriscar? Por que nadar contra a corrente que forçava todos a se adaptarem ao novo mundo?

 

— Mas nós escolhemos não nos privar de nossas vidas por isso. É nosso direito como criaturas do grande Pangu, não abrir mão da dádiva da vida com a qual ele nos presenteou.

 

— Mas…

 

— Nós somos uma família. Nós nos defendemos e protegemos com unhas e dentes se preciso… E temos vivido assim por muito tempo.

 

Luna a encarou sem saber o que dizer. Não entendia direito o sentimento que invadia seu peito, mas se fosse chutar, diria que era algo como inveja.

Ter alguém por quem lutar e que lute por você de volta, era assim que uma família devia ser. Não teve a sensação de hierarquia ou a visão deturpada de “família” que os mercenários haviam forçado em sua mente desde que chegara entre aquelas pessoas. Claro, a mais velha dali, Lilian, era visivelmente a mais respeitada, mas não como um líder era. Era mais como… uma mãe.

 

— Por que você não se permite tentar?

 

Maia a surpreendeu com a pergunta repentina, ainda com um olhar esperançoso em sua face. Não era como se não quisesse tentar, se permitir uma chance de ter uma vida digna pela primeira vez em muito tempo… Mas… A cada vez que considerava aquela proposta sua mente viajava até as atrocidades nas quais seu nome já havia sido envolvido no passado. Não era alguém digna de ter uma segunda chance, muito menos da confiança de ninguém.

Com um suspiro doloroso, abaixou sua face e encarou as próprias mãos repousadas em seu colo. Ela tinha feito sua escolha e muitos sofreram com isso, incluindo ela própria. Não havia nenhuma garantia de que o episódio não voltaria a se repetir… Não havia nenhuma garantia de que aquelas pessoas estariam seguras em sua presença.

 

— Eu perdi a chance de ter uma vida, Maia. Era egoísta e mimada, então joguei fora a chance que o grande Deus me deu de ser merecedora de uma família. — Luna não conseguia erguer sua face, abatida pela vergonha e pelo nojo que sentia de si própria.

 

— A redenção existe para todos que a procuram, Luna. Nenhum pecado é tão grande que não mereça o perdão… — Maia estendeu sua mão até as mãos dela, afagando-as com calma — Claro, alguns pecados extrapolam os limites, mas… Acredito que você não tenha cometido nenhum deles. — Antes que pudesse ser interrompida, deu leves tapinhas na mão da feiticeira — Acredite, eu já vi homens completamente corrompidos pelo Caos, cuja alma já habitava o vale das trevas antes mesmo de ter desencarnado… E você não me lembra nem um pouco nenhum deles.

 

Luna respirou profundamente, tentando acreditar naquelas palavras que ofereciam, além de conforto, um pouco da esperança há muito perdida. A elfa lhe lembrava seu velho amigo, Salovar. Talvez o único que realmente havia se preocupado verdadeiramente com ela até então, que havia se arriscado tantas vezes apenas para mantê-la segura e faria o que fosse possível por ela… E apesar de ser seu único amigo, ela havia o levado diretamente para a guerra e para a morte. Sequer sabia se ele havia conseguido sair ileso da batalha contra os alados, muito menos se ele havia sobrevivido a ela.

 

Se Maia estivesse certa, seus pecados poderiam ser perdoados e ela tinha o direito, não, o dever de buscar ter uma vida melhor. Mas seria certo dar as costas pra guerra e fugir enquanto o caos continuava a se espalhar de forma voraz? Os mercenários ficavam mais fortes e numerosos a cada dia e já não podia ignorar sua contribuição para aquela nova realidade.

Não fosse por seus poderes e pela versão de si própria que tanto odiava e atormentava, até hoje, seus pensamentos, talvez fosse mais fácil combatê-los.

 

Antes, os mercenários nada mais eram do que um grupo de ex-guerreiros ou desafortunados que saqueavam pequenas vilas e tentavam se expandir, mas eram facilmente contidos por ataques regulares das outras raças. Mas, depois da chegada de Luna, as coisas mudaram de forma brusca. Agora eles tinham uma feiticeira a sua disposição, uma feiticeira egoísta e magoada que só queria agradar a quem lhe tinha recebido tão bem… A ascensão rápida do que antes era apenas um grupo de arruaceiros, espalhou medo e ainda mais desordem no mundo já caótico, não permitindo que os reinos fossem capazes de criar uma estratégia de contenção rápido o bastante para poder impedi-los.

 

Luna não podia deixar que o mundo sucumbisse de vez ao caos. Não podia interferir nos desejos sádicos dos deuses nem deter suas ações, mas podia dar um fim no que ela própria havia começado. Precisava dar um fim naquilo. Devia isso à todos cujo sangue manchavam suas mãos, direta ou indiretamente.

Mas… Como?

 

— Esse olhar… — Maia atraiu-a de volta para a realidade. — Eu disse algo importante, não é?

 

A elfa sorria de forma doce, ansiosa, o que fez a feiticeira rir baixo.

 

— Mais ou menos. Eu só… Pensei em algo que já deveria ter pensado há um bom tempo. — suspirou, fitando-a nos olhos — Obrigada, Maia.

 

A loira apenas assentiu, confusa, mas satisfeita com a mudança de humor da outra.

 

— Aceita o chá agora? Logo Kaya virá te procurar.

 

Foi a vez de Luna assentir, permitindo que Maia se levantasse e fosse até onde guardava suas ervas, selecionando algumas com calma. O silêncio mais uma vez se instaurou, sendo cortado apenas pelos sons discretos que a elfa provocava enquanto preparava o chá, mas, ao contrário do ambiente, a mente da feiticeira estava barulhenta. Tentava buscar uma solução para seu mais novo problema, encontrar uma forma de destruir o reinado de terror que os mercenários vinham estabelecendo por toda PanGu. Mas não havia nada que pudesse fazer naquele momento.

Ela não tinha força para detê-los sozinha, muito menos poder. Chegou a considerar ir atrás do colar que havia escondido quando foi capturada, estava disposta a se entregar uma última vez àquela parte de sua mente que tanto odiava e que tanto a atormentava. Mas seria muito fácil para eles lidarem com ela, além de ser arriscado. E se fosse feita prisioneira novamente e fosse forçada a ajudá-los mais uma vez? Não. Não podia fazer algo tão inconsequente…

Respirou fundo e colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha, não chegaria a solução nenhuma daquele jeito.

 

Luna se levantou, sentindo-se incomodada com o tecido do vestido amassado e apertado contra seu corpo. Estalou a língua em desaprovação enquanto passava as mãos pela roupa tentando dar um jeito naquilo.

 

— Precisamos arrumar algo melhor pra você vestir. — Maia afirmou, sem nem se virar para ela — Acho que você não faz muito o tipo que usa vestidos e laços…

 

— Esse tipo de roupa não é nada prática… — suspirou — Mas não é algo para se preocupar, eu consigo me acostumar com ela.

 

— Nada prática? — Finalmente ela se virou um pouco, encarando Luna por sobre o ombro com uma risada — Você devia ver o que usamos na vila élfica…

 

— Eu já ouvi alguns boatos. — Meneou a cabeça negativamente. — Dizem que chega a ser… Indecente.

 

— Não é como se andássemos nus. Mas é quase isso.

 

Maia deu uma risada, com a face levemente corada. Ela deixou a pequena chaleira sobre o fogo e se virou para a feiticeira.

 

— Quando me mudei para a Cidade das Espadas, foi bem difícil de me acostumar — lembrou — Várias camadas de roupa, espartilho, sapatos… Até hoje não sei como conseguem.

 

— Bem, acho que é um sacrifício necessário…

 

— Claro, mas é muito injusto. Não acredito que ninguém fora da vila élfica aprecie sentir o ar fresco da manhã ou do fim da tarde.

 

— Mas para isso usamos as roupas de verão. — A feiticeira explicou, um pouco confusa. — Elas são bem frescas…

 

— Mesmo assim, não deixam o ar fresco chegar nas pernas, no peito, na…

 

— Entendi, entendi…! — Luna agitou as mãos, interrompendo Maia.

 

— Não me julgue antes de experimentar. — A elfa deu de ombros com um tom casual.

 

— Vou recusar, obrigada. — Riu sem graça.



Maia deu de ombros, não entendendo o porquê de suas palavras terem causado uma expressão tão estranha na face da feiticeira.

 

— Você também é alguém fora dos padrões, quer dizer, feiticeiras vivem nas florestas. Devem usufruir do que a natureza dá e correr nuas entre as árvores…

 

— O quê?! — Luna praticamente se engasgou, sentindo um calor subir a sua face ao se imaginar naquela situação

 

— Ao menos foi o que ouvi. Se bem que… — A elfa encarou-a, como que a analisando por alguns segundos, antes de dar de ombros. — Você não é uma feiticeira comum, acho que não costuma correr por aí como veio ao mundo.

 

— Mas é claro que não…! — exclamou envergonhada, afundando o rosto nas mãos — Acredito que nenhuma feiticeira faça isso, aliás.

 

— Sério? — indagou, verdadeiramente surpresa. — Então todas são como você?

 

— Hum… Não exatamente… — Luna voltou a encará-la. — Mas não é como se andassem nuas. Eu nunca estive frente a frente com uma feiticeira, mas duvido muito que sejam tão imprudentes.

 

— Hum…

 

Maia parecia pensar seriamente em algo, encarando-a fixamente com uma concentração suspeita demais para ser considerada normal. Depois de algum tempo ela deu de ombros, se voltando para a chaleira atrás de si e fungando de forma discreta, para permitir que o aroma das ervas invadisse suas narinas.

 

— Espero que goste, é meu favorito. — Ela falou em um tom baixo, pegando o pano que havia deixado próximo para que não se queimasse ao pegar a chaleira quente. — Folhas secas de amora miúra com raspas de limão, é ótimo para começar o dia bem.

 

— Então é por isso que cheira tão bem… — exclamou surpresa. — Fazia algum tempo que não sentia esse cheiro adocicado da amora miúra…

 

— Eu encontrei com um comerciante na última cidade que passamos… Ele trocou algumas folhas secas por um traje élfico. Uma sorte eu ainda guardar alguns comigo, não é mesmo?! — Maia sorriu, animada.

 

— Você… não se preocupa?

 

— Com o quê?

 

— Não sei, meio estranho um comerciante trocar um artigo tão caro por um traje élfico. — Luna deu de ombros — Não acha?

 

— Hum… Não. — Foi a vez da elfa dar de ombros. — O que ele poderia fazer demais?

 

— Bem… — A encarou, sem saber como externar o que realmente pensava. Não faria diferença a essa altura, ambos haviam saído felizes e ilesos da troca… Então não era tão ruim assim. — Acho que… Nada.

 

— Você é muito cismada! — Maia riu, servindo um copo de chá com cuidado e estendendo-o à outra. — Eu tenho mais trajes, não vai fazer falta.

 

— Maia! — A voz de Kaya invadiu a tenda, fazendo Luna retesar com a surpresa. A pequena abriu um sorriso animado ao notar sua presença. — Luna também aqui!

 

— Bom dia, Kaya! — A elfa voltou a chaleira para o fogo baixo, virando-se para a tophyr.

 

— Dia! Lilian disse que Luna ir… Maia, faz ficar. Faz!

 

Nem a feiticeira nem a elfa conseguiram conter a risada, deixando Kaya aflita pela falta de resposta ao seu pedido. Era estranha a forma como ela havia se apegado a Luna, inexplicável até, mas ninguém mais parecia estranhar o fato. Talvez ela só fosse uma criança amável demais e aberta a novas amizades, o que era um terrível risco, mas só a tornava mais adorável aos olhos da feiticeira.

Luna a invejava, de certa forma, por estar cercada de pessoas que gostavam e cuidavam dela de forma sincera. Certamente Kaya cresceria e se tornaria uma mulher melhor do que ela própria jamais foi ou seria capaz de ser.

 

— Bom… Não sou mais a única pedindo. — Maia ergueu as mãos, em rendição, enquanto lançava um olhar divertido para a feiticeira.

 

— Por que é tão importante que eu fique? — Luna baixou o olhar para o copo em suas mãos, observando o líquido arroxeado, cuja fumaça esquentava sua face. — Vocês mal me conhecem.

 

— Você é uma boa pessoa, Luna. Pode nos julgar por confiar demais, mas não pode negar o que pensamos sobre você, não é mesmo, Kaya?

 

— Amiga nova! Amiga Kaya! — A pequena exclamou, batendo palmas animada. Arrancou outra risada da feiticeira.

 

— Se dê uma chance, Luna. Não precisa ficar pra sempre e nos encarar como uma família… Mas seria bom tê-la conosco, mesmo que só até você melhorar por completo.

 

A feiticeira suspirou, fechando seus olhos com força enquanto pensava mais uma vez nos riscos e nos benefícios caso escolhesse ficar. Não estava se sentindo pressionada, mas era como se a cada vez que repetissem o convite ficasse mais difícil recusar. Não por medo do que pensariam ou de estar sendo ingrata de alguma forma, mas por não encontrar desculpas boas e convincentes o bastante para fazê-lo.

Abriu os olhos e respirou fundo, levando seu olhar de Maia à Kaya e, em seguida, de volta para a primeira.

 

— Acho que ficar mais alguns dias não fará mal… Se não tiver nenhum problema. — murmurou, sorrindo de canto de maneira discreta.

 

Maia abriu a boca para dizer algo mas não teve tempo, Kaya foi mais rápida e correu até a feiticeira, envolvendo-a em um abraço desajeitado. Luna sentiu um pouco do liquido quente escorrer por seus dedos e pingar em sua roupa, mas não se importou realmente com aquilo.

Mesmo que por alguns dias, como previa seu plano inicial, ela teria uma casa de novo. Pela primeira vez, uma na qual era bem vinda e se sentia genuinamente confortável.


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