Tudo por Nico di Angelo escrita por Mariana Pimenta


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

Obrigada a todos que estão comentando e acompanhando a história. Vocês me deixam tão feliz!
Leia as notas finais, por favor.
Boa leitura!



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Uma coisa eu já sabia desde o início: isso não seria fácil.

Corri por poucos minutos até chegar a uma estrada com mato em volta. De acordo com meu mapa, se eu andasse naquela direção, para frente, eu chegaria em Louisville, e de lá, eu poderia ir para Pooler, que fica na costa, e seguir apenas pela costa, até chegar em Charleston.

Usei todo o meu conhecimento sobre estrelas e pontos cardeais para não me perder. Eu não tinha bússola.

Andei sem parar por umas duas horas, minha raiva de Madrasta e minha agitação por ter conseguido dar o troco nela sendo minha maior fonte de energia. Finalmente, coloquei a mochila em baixo de uma árvore e recostei as costas na casca grossa. Arfei, esgotada. O céu estava estrelado. Fez com que eu me lembrasse das noites que passava no telhado. Eu havia feito isso uma última vez havia quase 24 horas. Não sabia se voltaria a ver aquela casa, quanto mais subir no telhado a observar o céu enquanto refletia.

Peguei uma das garrafas de água e bebi metade. Tentei novamente tirar o sangue do meu antebraço com a água, mas não adiantou. Nem no casaco.

Bem, agora que eu estava sozinha, eu posso tirá-lo, certo?

Amarrei as mangas em volta da minha cintura, como sempre fazia quanto não tinha onde colocar o casaco. Olhei para o alto e vi que a árvore tinha galhos grossos espalhados por todo o tronco. Eu já devia estar bem longe e estava exausta.

Reunindo minha última carga de energia, coloquei a mochila nas costas e subi na árvore, agarrando fortemente os galhos.

Havia um galho um pouco mais grosso que os outros e que era grande o suficiente para mim. Ficava quase na copa. Escalei até ele e me sentei. Da para ver o céu mais perfeitamente agora, sem folhas e galhos no meio da visão, e, na linha do horizonte, montanhas.

Abri a mochila e, depois de um tempo procurando, tirei a foto de lá de dentro. Parecia ter sido tirada há mil anos, mas fazia só um pouco mais de um mês. Pela posição da lua, era meia-noite.

Naquele exato momento, estava fazendo um mês e um dia que me meu pai foi atingido pelo carro. Já que foi a meia-noite, já conta como dia seguinte; e eu também estava olhando para o céu quando fez um mês de sua morte. Mas estava no telhado, em casa, em Denvan; não encima de uma árvore com todos os meus pertences necessários dentro de uma mochila. O que as duas noites têm em comum além de eu estar olhando para o céu em um lugar alto? Eu estava olhando a foto.

Senti meus olhos umedecerem e uma única lágrima cair do meu olho esquerdo. Limpei-a automaticamente e respirei fundo. Não vou chorar. Disse a mim mesma. Não vou. Mesmo que meu antebraço esteja sangrando incontrolavelmente, mesmo que eu posso nunca mais voltar a ver a casa onde eu cresci com meu pai, mesmo que hoje faça um mês de sua morte e eu esteja olhando para a foto mais recente que se tem dele.

Consegui fazer com que as lágrimas não caíssem. Percebi que nunca havia chorado tanto na minha vida quanto no dia em que o policial chegou lá em casa. Naquele momento, percebi que era muito improvável que eu fosse chorar desse jeito novamente, ou até mais.

Eu não sabia o quanto poderia estar enganada.

.......

Acordei no dia seguinte abraçando a mochila, ainda em cima da árvore. Pisquei, espantando o sono, e abaixei a cabeça para não ser cegada pela luz do sol na minha cara. O capuz do casaco cobria minha nuca e meus cabelos caiam pelos ombros. Lembrei que tinha recolocado o casaco antes de dormir.

Coloquei a mochila nas costas e desci do galho cuidadosamente e continuei descendo, me segurando nos outros galhos. Quando estava à altura de mais ou menos um metro e meio, pulei para o solo.

Pela posição do sol, deviam ser umas dez da manhã. Fui para a direção sudeste.

Enquanto caminhava, peguei uma garrafa e deixei-a a mão. O sol estava quente, eu estava de casaco, caminhando sem parar por florestas. Finalmente, depois de um bom tempo, achei uma rodovia com uma placa que apontava a direção Louisville. Sorri, aliviada. Eu estava no caminho certo.

Continuei andando pela beirada da estrada. Não me importava que estava parecendo uma ladra com o capuz e a caminhada um pouco rápida. Só queria chegar à cidade mais próxima e começar a traçar exatamente o caminho que eu faria. Fora que seria bom traçar no meu mapa o caminho que eu estava fazendo e comprar alguma revista com quebra-cabeças para passar o tempo. Afinal, não posso ficar caminhando o dia inteiro.

Consegui chegar a cidade por volta das onze e meia. Estava exausta.

Não prestei muita atenção à aparência das casas, prédios ou coisas do tipo. Cheguei a um centro turístico que tinha por lá e vi a passagem mais rápida pela cidade.

Fiquei mais um tempo caminhando. Já estava quase na ponta da cidade quando parei para almoçar. Claro, tirei o capuz da cabeça assim que entrei no restaurante.

Quando finalmente me sentei, coloquei a mochila na cadeira ao meu lado e puxei o mapa e um lápis de lá de dentro. Tracei uma linha que ia do ponto em que dizia “Denvan” até o ponto em que dizia “Louisville”. Guardei minhas coisas e comecei a comer. Não havia comido nada na noite anterior, andei por muito tempo e não tinha tomado café da manhã. Estava morta de fome.

As pessoas me encaravam e olhavam em volta, provavelmente esperando que alguém se sentasse em uma das duas cadeiras extras da mesa. Mas, é claro, não veio ninguém.

Acabei de comer, paguei e sai.

A partir daí, as coisas foram iguais: por volta da meia-noite eu ia para o meio do mato, de uma floresta ou qualquer lugar que estivesse um pouco longe da cidade; subia em uma árvore, de preferência alta; dormia; e de manhã, começava minha caminhada. Eu deixava uma garrafa de água sempre em uma das minhas mãos. Algumas poucas vezes, parava em um restaurante para almoçar ou jantar. Mas era mais normal abrir um dos pacotes de salgadinho. Entrei em muitas bibliotecas e fiz mais algumas anotações no meu caderno. Às vezes, sem que ninguém percebesse, arrancava folhas dos livros e colocava no caderno, no compartimento para folhas soltas.

Não gosto de machucar os livros desse jeito, mas eu precisava.

Procurei em mapas e fiz um longo trajeto. Ainda na Geórgia, eu só passei em Louisville e em Pooler, como havia marcado no mapa. Na Carolina do Sul, passei em Charleston, Georgetown e Myrthe Beach. Carolina do Norte, Wilmington e New Bern. Virgínia, Chesapeake, Richmond e Washington. Passei direto por Maryland.

Marquei cada um dos lugares em que estava indo. Finalmente, depois de uma semana desde que sai de casa, cheguei na Pensilvânia.

Eu tinha prometido a mim mesma que quando chegasse na Pensilvânia, eu ia me hospedar em um hotel e passar uma semana lá. Minha última garrafa de água estava pela metade, meus pacotes de biscoitos e salgadinhos tinham acabado, dormir sentada em árvores não é confortável, e tinha uma semana que eu não tomava banho. O mais próximo de um banho que eu havia tomado nos últimos dias, foi no mar de noite, de roupa e tudo. Tentei proteger a mochila para não danificar o que tem dentro com a água.

As marcas não saíam do meu braço nem com areia. Desisti de tentar tirá-las. Desnecessário dizer, mas tinha magia nessas marcas. E eu não estava gostando disso. Mas isso não era o pior sobre as marcas. O pior era que elas ainda estavam sangrando.

Entrei pela porta do primeiro hotel que vi. Algumas pessoas se viraram para mim. O homem no balcão me encarou com um olhar espantado quanto me aproximei.

– Preciso de um quarto. Qualquer um. Desde que tenha uma cama e um banheiro com água.

Ele desviou o olhar de mim e foi checar o computador, mas ainda me olhava pelo canto do olho.

– Quanto tempo pretende ficar?

– Uma semana.

– De acordo com o sistema, nós temos um quarto do jeito que a... – ele me examinou – senhorita quer. Quantos anos você tem?

– 12.

– Tem uma autorização dizendo que pode se hospedar?

Eu o encarei e pisquei. Uma autorização. Olhei por cima das lentes dos óculos e me esforcei para falar normalmente apesar da raiva.

– Desculpe, acho que não entendi. Pode repetir o que falou? – perguntei entre os dentes.

Ele arregalou os olhos e fez uma expressão de medo. A boca tremeu um pouco quando abriu.

– E-eu só disse... – engoliu em seco – que pode ficar. S-só preciso que assine alguns p-papéis.

Peguei a caneta no balcão e preenchi os papéis para alugar o meu quarto. Ele me deu uma chave e perguntou se tinha mais alguém comigo ou se tinha mais alguma mala. Balancei a cabeça, negando. Subi as escadas, ignorando os olhares de todas as outras pessoas que me olhavam do saguão.

Cheguei na porta do quarto, no terceiro andar do prédio, e a destranquei. Empurrei a maçaneta e me deparei com um quarto espaçoso. À minha esquerda a porta de um banheiro; à minha frente uma janela que dava para a rua; encostada na parede à minha esquerda uma cama de casal com um edredom vinho, a frente desta, um armário com duas portas, a direita uma mesa de cabeceira e um móvel com algumas gavetas.

– É o bastante.

Tranquei a porta atrás de mim e deixei a mochila em cima da cama. Dentro do banheiro todo branco, havia toalhas, sabonetes e pequenos frascos com xampu e condicionador. Fiquei aliviada. Não havia trazido nada disso.

A primeira coisa que eu fiz foi tomar um banho. Vinte minutos mais tarde, enrolada em uma das toalhas, achei um roupão branco do hotel dentro do armário. Vesti-o e dei uma lavada nas minhas roupas. Peguei a outra toalha que estava no banheiro, estendi sobre o chão onde o sol entrava pela janela e deixei minhas roupas secarem ali.

Esvaziei minha mochila em cima da cama. Fiz as contas e percebi que, com o dinheiro que eu gastaria para pagar o hotel, quase todo o dinheiro que eu havia pego de Madrasta teria sido gasto.

Também havia passado em algumas papelarias ao longo do caminho e minha mochila também tinha pequenos livros de palavras-cruzadas e outros quebra-cabeças, em diversas línguas. Apenas algum passa-tempo.

Só para ter mais espaço, joguei fora alguns livrinhos. Tinha pego uma folha vazia do caderno e começado a escrever palavras e frases em grego antigo. Elas vinham na minha cabeça às vezes, ou eu lia em livros. Folheei meu caderno e lá tinha várias anotações, não só em grego, mas também sobre os monstros, os deuses, os semideuses e outras criaturas.

Até agora, meu facão não foi necessário. Estava sempre a mão, mas não foi usado. Contudo, eu não ia torcer para encontrar um monstro para matar. Talvez, eu ficasse muito surpresa em ter encontrado um e ele iria me matar antes que eu pudesse me lembrar qual é o monstro e como derrotá-lo. Ou eu fosse me esconder até a surpresa passar.

Depois de algum tempo, voltei a vestir minhas roupas normais e fui ajeitar minhas unhas. Havia feito elas um dia antes de sair de casa e elas estavam horríveis. Peguei minha lixa e comecei a trabalhar.

Então eu vi a foto e a boneca, lado a lado. Deixando a lixa de lado, peguei as duas, cada uma com uma mão, e examinei. Não tinham mudado nada. Os últimos presentes do meu pai.

Uma coisa eu já havia percebido: ele sabia o que ia acontecer na viagem, ele sabia que ia morrer. Mas agora, olhando para dois dos quatro objetos que ele havia me dado em sua última noite, eu comecei a pensar: e se isso tivesse a ver com aquela coisa que eu tenho de diferente?

O problema era que eu não fazia a menor ideia do que poderia ser.

Voltei a guardar minhas coisas. Sinceramente, eu estava exausta. Ainda eram umas duas da tarde, e eu não tinha almoçado. Mas o cansaço venceu. Tirei meus tênis e me deitei na cama, deixando a mochila ao meu lado, no chão. Caí no sono alguns segundos depois.

Eu me vi em uma sala escura. A primeira coisa que vi foi um trono, mas não um trono comum e bonitinho, como você vê em castelos de contos de fadas. Este era feito de ossos, e estava em contraste com as paredes escuras. Um homem pálido com roupas escuras estava sentado no trono, e parecia entediado.

O lugar parecia familiar. O homem no trono parecia familiar. Então olhei em volta e percebi: o trono, ossos, escuridão...

O homem na minha frente era Hades, o deus dos mortos.

Ele nem pareceu me perceber. Uma figura encapuzada com mãos esqueléticas apareceu do nada com o que pareceu ser um pergaminho ou algo do tipo e falou com o deus em voz baixa. Hades assentiu e um sorriso leve passou por seus lábios.

– Perfeito. Mande-o entrar.

Atrás de mim, portas enormes se abriram e outro homem apareceu. Este era um pouco transparente, como se eu o estivesse vento por um vidro fino e levemente embaçado. Ele ergueu o queixo, que até aquele momento estava encostando no peito, e pude ver seu rosto. Me esforcei muito para não gritar.

O segundo homem era meu pai.

Estava exatamente do mesmo jeito que morreu. A camisa social do trabalho, agora um pouco amassada; os cabelos loiros penteados; o rosto perfeitamente barbeado. Mas agora, a expressão de divertimento havia sumido dos seus olhos e ele encarava Hades sério.

Percebi que nenhum dos dois estavam me vendo. Os dois se encaram por poucos segundos, então Hades sorriu.

– Heitor, meu amigo. Doze anos se passam rápido, não? E como estou vendo, você cumpriu sua promessa.

Meu pai não respondeu.

– E como ela está? Nosso pequeno experimento já sabe da verdade? Você prometeu que não iria contar nada sobre isso para ela.

– Está chamando minha filha de experimento? – era a primeira vez em mais de um mês que eu ouvia a voz dele, e me esforcei um pouco para não deixar uma lágrima cair – Depois do que fez com ela, ousa chamá-la assim na minha frente?

Hades ergueu uma sobrancelha.

– Eu chamo quem eu quiser do jeito que eu quiser. Eu sou um deus. E você concordou com isso para ela não morrer. Nenhum de nós conhecia os riscos. E talvez ela seja mais poderosa do que os outros filhos de Atena.

– Tirou dela todas as chances de ter uma vida minimamente normal.

– Você devia me agradecer por eu ter concedido minha bênção. Não é qualquer um que ganha esse tipo de coisa. Não é comum eu ter pena de semideuses, mas tentar e ver o que acontecia não custava nada, não é mesmo? Ela está viva, saudável, e indo para o acampamento pelo que me falaram.

Benção? Como assim benção?

– Você concordou em seguir os termos. – prossegui Hades – Concedo minha benção; ela vive normalmente, tão normalmente quanto se é possível sendo uma semideusa com a benção de Hades, e vai para o acampamento com doze anos, como a maioria; você conta tudo a ela, exceto sobre a benção; e para que ela possa se desapegar da casa, da vida e de tudo para ir para o acampamento, você morre e permite que Mariana viva sua vida de semideusa. Tudo está seguindo como o planejado.

– Como o planejado. – repetiu meu pai, assentindo.

Comecei a andar para trás até encostar na parede de mármore. Uma das minhas mãos voou para minha boca, enquanto a outra estava grudada na parede impedindo que eu caísse.

– O lado ruim, é que ela vai ser diferente de seus irmãos, tanto fisicamente quanto mentalmente. E tivemos que deixá-la descobrir sozinha. É uma pena. – comentou Hades, sem um pingo de solidariedade verdadeira na voz.

– Como você acha que ela vai descobrir? – perguntou meu pai – Esse tipo de coisa não é comum, então não acho que alguém vá acertar.

– Pode deixar comigo. – Hades olhou em minha direção, como se soubesse que estava ali – Ela vai descobrir.

.......

Sentei na cama antes mesmo de perceber que havia acordado. Olhei para os dois lados, como se fosse atravessar a rua, e vi que estava no meu quarto, no hotel, na Pensilvânia. Minha mochila estava ao lado da cama, exatamente no mesmo lugar que antes.

Eu estava suada. Parecia que eu tinha acabado de sair de uma aula de karatê. Talvez agora não seja o momento certo para lembrar dessas coisas. Pensei.

Olhei pela janela. Já estava anoitecendo e minha barriga roncava incontrolavelmente. Saltei da cama, coloquei os tênis e peguei a chave do quarto, colocando a mochila nas costas. Saí do quarto e tranquei a porta, colocando novamente a chave em um dos bolsos da lateral. Levantei o capuz do casaco e coloquei meu cabelo para frente, dividido em dois e caindo pelos dois ombros, a mecha maior cobrindo parte do meu olho direito.

Desci as escadas e ao atravessar o saguão e ir em direção a porta, um homem com uniforme azul escuro se colocou na minha frente.

– Com licença. Está indo a algum lugar?

Pisquei. Que pergunta mais idiota.

– Claro, ou vocês esperam que eu fique dentro do quarto por uma semana? – fui para o lado para me desviar, mas ele se colocou na minha frente de novo.

– Eu a observei mais cedo e vi que sua única bagagem é essa mochila. Não prefere deixar seus pertences no quarto?

– Cara, sem querer ofender, mas eu não confio em ninguém para ficar com minhas coisas. Se quiser, eu posso te dar a chave do quarto e pegar de volta na recepção quando voltar. É o máximo que você vai conseguir tirar de mim.

Continuei encarando-o até que ele desistiu.

– Tudo bem.

Passei pelas portas da frente do hotel e virei à direita. Sabia que tinha uma lanchonete e uma biblioteca para aquele lado.

A lanchonete que eu entrei estava quase cheia. Esperei poucos minutos na fila e pedi um hambúrguer e um refrigerante. Estava quase desmaiando de fome. Só havia comido metade de um pequeno pacote de biscoito.

Sentei na primeira mesa que vi que estava vaga e suspirei, aliviada por ainda ter forças para comer.

Enquanto comia pensava no sonho. Pelo o que eu sabia, aquele era o palácio de Hades, no Mundo Inferior. O deus dos mortos não faz os julgamentos no palácio, tem o Pavilhão do Julgamento para isso. Então, meu pai estava ali para falar sobre mim, e não para receber sua sentença. Talvez isso já tivesse acontecido. Provavelmente os Campos de Asfódelos...

Enfim, aquilo foi estranho. Alguém pode me explicar o que é a benção de Hades? Torcia para que isso fosse algum tipo de código, mesmo sabendo que as chances eram zero. Mas e se isso fosse o que eu tenho de diferente? Hades disse que esse tipo de coisa não é comum.

Depois de sair da lanchonete, fui direto para a biblioteca, que ficava a uma quadra dali. Empurrei as portas de vidro e me vi em uma espécie de paraíso. Eu amo bibliotecas. E livrarias. Ver todos aqueles livros juntos, tanto conhecimento em um só lugar...

Foco, Mariana. Foco. Pensei. Passei um tempo olhando as estantes até achar uma só de mitologia. Passei os dedos pelos títulos na lombada dos livros ou abrindo-os e examinando o conteúdo, procurando alguma coisa sobre características especiais, poderes incomuns entre os deuses, histórias de heróis sobre bênçãos.

Por um bom tempo, a única coisa sobre bênçãos dos deuses gregos que eu achei era algo para ser usado durante a batalha, normalmente concedido de olimpiano para filho. Até que, no meio de uma estante, bem no alto, vi um livro um tanto velho, de capa azul e dourada. O nome era “Histórias e Mitos Pouco Conhecidos Sobre a Mitologia Grega”. Fazia parte de uma pequena coleção, e tinha o volume para mitologia romana, egípcia e nórdica. Retirei o livro que me interessava e me sentei em uma das cadeiras vagas, deixando a mochila no chão, aos pés da cadeira.

Procurei no sumário e vi um capítulo grande sobre os poderes dos deuses. Abri nele e procurei qualquer coisa que me pudesse ajudar, até que eu vi a palavra “benção” em um dos textos. Parei de folhear as páginas e li.

Uma coisa que as pessoas não sabem sobre os deuses, é que eles podem conceder bênçãos aos semideuses, talvez até aos heróis e mortais. Existem dois tipos de benção concedidas por um deus:

A primeira é a mais conhecida, que é a benção concedida por um deus como uma recompensa, e pode ser usada em momentos de aflição e necessidade, como um instrumento que pode ser usado uma só vez. O outro tipo é uma coisa esquecida e era bem rara de acontecer, que é a benção dada a uma criança.

O segundo tipo é perigoso, pois pode dar poderes a pessoa que a recebe. Essa pessoa fica com características que normalmente é peculiar aos filhos do deus que concedeu a benção. E é mais comum os deuses darem esse tipo de benção para os filhos mortos, para terem sorte na outra vida. E o poder pode ser explícito ou não. Por exemplo, a sabedoria de um filho de Atena, ou as mãos manuais de um filho de Hefesto, ou a mira de Apolo. São exemplos de poderes concedidos a semideuses por genética ou através da benção.

Porém, o privilegio de ser abençoado por um deus pode trazer consequências. O semideus poderia ser excluído dos seus iguais. Não é algo comum. Ás vezes, as bênçãos eram consideradas maldições.

Acabei de ler o texto e fiquei encarando a página. Minha mão direita tapou minha boca, que percebido que estava aberta. Senti lágrimas se formarem nos meus olhos, mas limpei-as antes que caíssem.

Meus dedos taparam minha boca novamente e, puro impulso e raiva, fechei o livro com a mão esquerda e ele fez um pouco de barulho. Empurrei um pouco para frente e apoiei meus cotovelos onde antes estava o livro. Coloquei o rosto entre as mãos, pressionando a testa contra meus dedos, pois a droga dos óculos não deixavam eu encostar nos meus olhos.

Nem liguei para as poucas pessoas que me olhavam, provavelmente se perguntando se estava tudo bem comigo.

Não! Eu queria responder. Não está tudo bem! Além de eu ter que ser diferente por ser uma semideusa, ainda tenho que ser uma semideusa diferente, por causa dessa droga de benção de Hades! Me esforcei para não gritar isso no meio da biblioteca.

Peguei o livro sem olhar para a capa novamente e o coloquei de volta na estante, segurando a alça da mochila no meu ombro. Corri para a porta e a empurrei, mas quando a atravessei, um garoto esbarrou em mim. Só o que eu consegui ver foi um capuz azul escuro de um casaco levantado, cobrindo seu rosto.

– Desculpe. – falamos juntos.

Eu podia estar nervosa e tremendo, mas parei na calçada. Eu conhecia aquela voz. Olhei para trás, mas ele já havia desaparecido entre as estantes.

Não pode ser ele. Pensei. Como ele teria chegado aqui tão rápido? Balancei a cabeça, deixando isso para lá e refiz o caminho para o hotel.

Chegando lá, passei direto pelo saguão, enquanto mais algumas pessoas me olhavam, e subi as escadas. Tirei a chave do bolso da mochila, destranquei a porta e entrei no quarto. Tudo estava exatamente como antes.

Depois de trancar novamente a porta, fui para o banheiro. Fiquei olhando para o meu reflexo no espelho, com os punhos fechados sobre a bancada.

– Isso não é real, isso não é real. Tem que ser um sonho. – dizia para mim mesma. Arranquei os óculos do rosto, liguei a torneira e joguei água na cara com as mãos. Tudo o que eu queria era acordar em cima da cama e ver que eu inventei aquele negócio no palácio, mas não era um sonho. – Sonhos de semideuses são ruins, mas a vida deles tem que ser pior? – sequei meu rosto com uma toalha e voltei a colocar os óculos, enquanto sentava na cama.

Tudo isso era por causa da benção. Tudo. A minha aparência diferente, o fato de até Rúben me achar estranha. O que mais poderia ser culpa da benção? O fato de... eu só usar preto? Não. Já nasci gostando de preto, só comecei a usar mais para irritar Madrasta. O fato de... eu gostar tanto de ficar sozinha? Talvez, mas sempre fui solitária. Sem amigos, longe da família.

Às vezes, eu ouvia vozes na mina cabeça. Antes eu achava que eram pessoas que estavam próximas de mim conversando, talvez sussurrando. Como se eu estivesse ouvindo a conversa de alguém por trás de uma parede. Eu não entendia o que falavam. Parecia outra língua. Será que isso tinha alguma coisa a ver com a benção?

Não sei o que teria sido pior: eu morrer ou ter que viver com essa benção. Bem, não poderia ser tão ruim viver com isso, né? Mas ela não trouxe benefícios para mim até agora. Então por enquanto, é como no livro: é uma maldição.

.......

A boa notícia é que o hotel tinha café da manhã. Só precisei almoçar e jantar fora. Apesar de que nos dias seguintes eu não estar com muito apetite.

Não achei mais nada sobre isso em nenhuma das bibliotecas que eu fui. Andei a cidade inteira, mas não achei nada.

A semana passou rápido. Eu dormi e andei a maior parte dela. Tinha pesadelos às vezes. Nada como o táxi na Alemanha ou o palácio de Hades. Aliás, acho que também é culpa da benção eu ter tido esses dois sonhos, principalmente a da morte do meu pai.

Os funcionários pareceram quase aliviados quando paguei a conta do hotel. Revistei o quarto milhares de vezes e me certifiquei de que não estava esquecendo nada. Peguei até os vidrinhos de xampu e condicionador e um sabonete em barra minúsculo. Não ia pegar nada emprestado no acampamento até conhecer bem o pessoal de lá.

Coloquei mais duas garrafas de água na minha mochila. Também havia checado o mapa e vi uma rota mais rápida para Long Island, Nova York. Tinha um caminho por uma mata bem fechada que dava em Nova York em algumas horas.

Eu queria chegar ao acampamento o mais rápido possível. Então, a trilha era uma ótima ideia, certo?

Errado.

Não foi uma ótima ideia. Foi uma ideia razoável. A boa notícia? Havia mesmo uma trilha e eu iria mais rápido se eu fosse por ela. A má notícia? Sou filha de Atena e, apesar de ter a benção de Hades, só digo uma coisa:

Aranhas.


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Notas finais do capítulo

Então gente eu queria perguntar uma coisa para vocês. É o seguinte:
Quem leu "A Casa de Hades Capítulo Extra 79" - que para aqueles que não sabem é a história resumida deste livro, só que pela metade (curiosos, olhem na minha conta que vocês vão achar) - sabe bem o que vai acontecer e para não falar muito spoiler para aqueles que não leram, sabem que a Mariana vai ter que voltar para os EUA depois do que aconteceu, pois ela prometeu ao Nico.
Enfim, eu sempre estou na frente de vocês na história. Não é muita coisa, só um ou dois capítulos, para o caso de eu ficar muito tempo sem postar por falta de tempo, aí o próximo capítulo já está pronto. Só que eu queria saber o que você preferiram que acontecesse quando a Mariana voltar:
Opção 1: em uma revira volta, Mariana é sequestrada por Gaia e os semideuses do Argo II salvam ela (uma sugestão que eu queria muito mandar para o tio Rick para ele colocar em Sangue do Olimpo). E vai aumentar em uns três capítulos a história que eu havia pensado antes. Que seria a opção dois.
Opção 2: Mariana simplesmente volta e chega lá quase junto com o Nico - todos que leram A Casa de Hades sabem que o Nico está voltando com a Reyna, o treinador Hedge e a Atena Partenos para os EUA.
Comentem o que vocês acham. Aliás, comentem qualquer coisa. Adoro comentários!



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