Metamorfoses Voláteis escrita por Cupcake Says


Capítulo 5
Capítulo 4




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Na manhã do dia seguinte, permaneço na enfermaria, mas ouço o comandante falando com os homens no salão principal. Ouço enquanto a voz dele reverberar pelas paredes, da enfermaria vazia, parece calmo... sempre calmo.

Tão diferente dos outros, nos olhando de cima, com vozes ríspidas, cheirando a sangue e ossos, apenas...

Sou desperto de meu coma com o silêncio instaurado ao meu redor, seguido dos ruídos de passos, coisas sendo arrastadas, botas no chão de mármore... Então silêncio. Sentarei a mesa da enfermaria, escreverei os relatórios dos quatro homens mortos, papéis que enviarei ao comandante mais tarde ainda hoje.

Meus olhos ainda ardem, mas não digo nada, apenas suspiro, olhando os arredores pálidos da minha área de trabalho antes de sentar e me colocar a fazer os relatórios dos homens caídos na fronteira. Eu e o som da caneta tinteiro no papel.

Cerca de uma hora mais tarde, o suspiro da porta automática da enfermaria se abrindo e fechando seguida pela voz do meu superior me arrancam de meus delírios pessoais sobre o que diria ele para as famílias para conforta-las diante da perda inexorável de um de seus integrantes.

– Doutor.

– Senhor. – respondo quase de imediato, olhando para ele, sentado em minha cadeira, a mancha vermelha em seu braço direito se destaca contra o tecido da camisa branca de mangas longas, agora dobrada até o cotovelo, manchada de um carmim escorrido e úmido, carregando o casaco no braço intacto.

– Os homens entraram numa briga de facas, um deles queria desistir e o outro o chamou de covarde e... – ele suspira, passando a mão esquerda pelos olhos, cansado. – Estou vendo que terei muito trabalho aqui... De qualquer modo, pode dar um jeito nisso aqui, doutor? – ele indica a grande linha talhada a faca em seu braço exposto, escorrendo e pingando liquido escarlate por seus dedos.

– Claro... – desvencilho meus olhos dele e vou até a gaveta, pegar um punhado de gaze e algo para esterilizar a ferida, o ar da enfermaria se enche com aquele cheiro forte de humanidade que corre nas veias dele... Me pergunto se ele também teria gosto de morte.

Um arrepio silencioso corre minha espinha de baixo para cima.

Encharco um algodão com iodo, me aproximando de novo dele, tomando seu braço ferido nas mãos, o olhar dele é vago e sai pela janela, junto com seus pensamentos, olhos tão longe daqui... De mim.

Estranhamente me sinto ofendido, mas não digo nada, sei que isso nada tem a ver com o comportamento dele.

Limpo a ferida em silêncio, mas ela parece profunda, talvez precise de pontos, concluo para mim mesmo, limpando o iodo com cuidado, mas ele não parece notar nem a ferida, nem o iodo, nem a mim... então por um momento me dou ao desfrute de olhar o vermelho daquelas veias, fluindo e escorrendo.

Meus olhos vagam em silêncio, me aproximando devagar da ferida aberta, meu cabelo anuncia pouco antes de minha língua serpentear pela dimensão lacerada na ferida exposta.

Eu estava enganado...

Os olhos deles se voltam imediatamente na minha direção, mas ele não faz menção de repulsa, ou tenta se soltar, apenas me olha de cima em silêncio, eu deixo que o braço dele caia ao lado do corpo, já que ele também não faz menção nenhuma de segura-lo no lugar.

Me afasto alguns passos para trás, uma das mãos cobre minha boca, mordo uma das juntas do meu indicador com força, seria bom dizer algo... Qualquer coisa.

Ele observa a ferida aberta estancar... Se fechar... Sem deixar nenhum ao menos uma cicatriz, mas continua em silêncio... Porque ele não diz nada?

Minha respiração vacila na garganta, eu tenho que dizer... eu preciso...

– Seria bom se você me explicasse o que é isso. – ele diz antes de mim, mas eu não quero falar disso, muito longe disso, eu tenho só um assunto em mente.

Os olhos dele sustentam-se com suspeita sobre mim, tão frios.

– Eu estava enganado. – minha voz sai quebrada, um tanto mais alterada do que eu gostaria. – Você não tem gosto de morte... Tem gosto de guerra... – tomo um fôlego falho, minha respiração instável, atropelada, incerta.

Ele abre a boca para me responder, seu cenho se franze numa expressão confusa, mas parece demorar tanto, por que ele não me responde? Por que ele não diz nada?

O que eu espero de resposta?

– Perdão. – a voz dele é calma, e me olha nos olhos, com a mesma calma, ainda que confuso, cauteloso talvez, talvez apreensivo sobre minha sanidade.

Tanta calma... Por quê?

Por que tanta calma quando eu... Como ele está se...

Meus olhos caem nervosos para os cantos da sala, me apoiando numa das pilastras em busca do ar que me falta, da tranquilidade que me escapa, das palavras escorrendo pelos meus dedos como areia, como fumaça.

– Não... – minha voz treme. – Eu não... Não é uma crítica... Eu gosto... Gosto muito.

Eu pisco algumas vezes, chacoalho a cabeça em silêncio, tomando uma única grande respiração.

Como de repente eu me sinto tão instável? É verdade que ele me afeta mas... Não assim... Não num nível tão básico.

Os olhos dele me desafiam a dizer algo mais, a me humilhar um pouco mais, eu posso fazer isso... Eu não me importo, eu me sinto tão... É tudo tão... Eu quero...

Quero preencher o silêncio com alguma coisa, qualquer coisa, qualquer uma.

– Doutor, precisa de alguma coisa?

– Não. – respondo de imediato, o arrependimento é também imediato. – Eu só... Isso foi muito inapropriado... Perdão eu... Eu não sei o que-

Ele não me deixar tentar me explicar, ele sai da bancada onde estava e para a minha frente, os braços cruzados no peito, sério... Tão sério... Sinto-me tão pequeno... Tão...

Não faz sentido ele é só... E eu...

– Senhor?

Ele me pega pelos ombros, me guiando até o corredor, mãos nos meus ombros. Eu não acho que isso seja... Apropriado...

Atravessamos em silêncio o corredor lustroso da enfermaria, ele me arrasta até o meu quarto. Como ele sabe onde... fica?

– O que nós-

– Vá tomar banho. – ele tranca porta automática com o pequeno cartão que ele carrega no colar em seu pescoço.

– Mas os soldados estão-

– Eles vão viver. – ele cruza os braços sobre o peito, apoiado no batente da porta, me olhando de cima... tão sério.

Minhas mãos tremem, eu as fecho em punho.

– Senhor, eu...

– Porque tem um espelho no seu box? – ele pergunta, vago, nem sequer está mais olhando pra mim...

Por que isso?

De uma forma ou outra faço como fui instruído, me distrair por estar sendo ignorado, sem responder a pergunta que me for dirigida, diante do meu silêncio ele volta a olhar pra mim, enquanto meus dedos trêmulos tentam desfazer os botões da camisa sete oitavos que eu decidi pela manhã que parecia uma boa ideia usar.

Ele suspira em face da minha incompetência, eu parecia estar sempre disposto a me humilhar mais, diante do superior que eu mal conheço.

Pelos pulsos ele afasta minhas mãos dos botões, me guiando para trás até a pia de mármore cor de creme. Engulo em seco e ele vai resolver meus problemas com os botões por mim.

Constrangido volto meus olhos na direção do espelho do box, respirando em falso quando por vez ou outra os dedos dele tocam, por uma fração de segundo, a pele do meu peito.

Contato estranho que me faz engolir o ar com certa surpresa... A humanidade dele o faz tão mais quente que eu...

Ele metodicamente ignora cada uma das minhas reações, a expressão cuidadosa até me livrar no ultimo botão e voltar os olhos na direção dos meus.

– Quer que eu o deixe sozinho?

Meus olhos perscrutam a expressão composta do meu comandante, meus olhos devem estar muito consternados, pois os olhos que me encaram de volta parecem preocupados... Quanto tempo passamos assim?

Minha respiração falseia de novo antes que eu pudesse cuspir um:

– Não. – e me atar ao pescoço dele. – Não, não faça isso, por favor...

Tão perto...

Cheirava a perfume... tinha aquele calor suave que os humanos geralmente tem.

Eu queria isso.

Eu precisava tanto disso...

De alguma coisa que aplacasse o frio que eu sentia impregnado nos meus ossos, no meu sangue.

– Por favor...

Ele ficou em silêncio... suspirou com calma... como se lidasse com uma criança, apoiado na pia atrás de mim. Com cuidado prestimoso ele remove meus braços do pescoço dele, devagar, olhando meus olhos apreensivos, sabia que tinha cruzado tantas e tantas linhas hoje...

Tão distante do apropriado...

As mãos dele nos meus pulsos, subindo devagar os dedos por debaixo das minhas luvas, levando-as com eles. Eu ia dizer algo, mas não sabia o que dizer... perto demais...

Aquilo era vergonhoso, intimidade demais para um médico ter com seu capitão, mas eu não conseguia me forçar a parar de olhar pra ele, nem quando ele jogou as luvas na pia, nem quando ele escorreu a camisa pelos meus ombros, nem quando os olhos dele vagaram pelas minhas tatuagens por um longo tempo, nem quando ele se livrou do resto das minhas roupas, nem quando ele me levou até o chuveiro, arregaçando as mangas, ligando a água...

Eu não consegui me obrigar a fazê-lo parar, eu sabia que eu podia...

Mas a vontade havia escorrido pelo ralo junto com a água.

Agora eu olhava meu reflexo no espelho, atônico, meus lábios entreabertos, o cabelo nos meus olhos, minhas mãos paradas ao lado do corpo as mãos dele circulando por toda parte. Em silêncio.

Com os dedos ele afastou o cabelo dos meus olhos, sua expressão parecia mais calma agora, agora em silêncio.

Eu gritava minha vida toda na minha mente.

Eu queria que ele soubesse.

Queria que ele visse.

Que ele entendesse.

Que ele julgasse minhas ações.

Mas só havia silêncio entre nós.

Afundei meu rosto na camisa branca dele, me inclinando sutilmente para frente e tomando o cuidado de não molhar mais nada além daquele ponto onde meu cabelo encharcado tocava o tecido branco de algodão. Ele desligou a água, jogando a toalha nas minhas costas, não se importando com o fato de eu estar encharcando sua camisa de trabalho.

Quando ele falou foi baixo, cauteloso.

– Como se sente?

Minhas mãos se ataram a cintura dele, prensando o tecido entre os meus dedos, pálidos e molhados.

Os lábios dele desceram devagar até o meu pescoço, quentes e úmidos, reclinei minha cabeça para o lado, um suspiro discreto me abandonando quando eu não mais cabia dentro de mim.

– Eu preciso voltar... – ele disse, pesaroso. – Mas antes disso eu quero saber...

Meus olhos vagavam pesados, acompanhando a movimentação dos lábios dele com muito interesse.

– O que você quer, doutor?

Não respondi de imediato.

Alguns segundos de silêncio pesado se passaram.

– Klaus. – a voz dele era firme, tão calma.

Tão calma...

Mais um arrepio quente e frio correu minha espinha debaixo para cima.

– Tudo o que você quiser me dar... – eu disse, fechando os olhos.


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Notas finais do capítulo

bem, mais um capítulo na espiral focada na mente do Klaus
pois é, pois é
Me digam o que acharam, k? :3



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