Vinculum Aeternum escrita por Kiri Huo Ziv


Capítulo 1
Capítulo I: Recordatio


Notas iniciais do capítulo

Essa fanfiction é parte de uma série. Ela terá uma estrutura similar a de "Once Upon a Time", com uma história em Storybrooke, no tempo presente, e outra - em flashbacks - na Enchanted Forest.

Serão quatro capítulos. Em Storybrooke, quatro pontos de vista diferentes (um diferente a cada capítulo); em flashbacks, apenas os pontos de vista do Rumpelstiltskin e da Belle.

A segunda fanfiction, sequencia direta desse, terá oito capítulos e um epílogo. Os flashbacks terão pontos de vista mais variados, assim como Storybrooke.

As falas estão entre aspas, os pensamentos em itálico.

Boa leitura!



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Daylight, I must wait for the sunrise
I must think of a new life
And I mustn't give in
When the dawn comes
Tonight will be a memory too
And a new day will begin*

Gold saiu de sua casa grande e confortável naquele dia com uma sensação em seu íntimo há muito não sentida. Ele parou à soleira da porta sentindo algo no ar, um sutil presságio de mudança, de novidades que se esgueiravam pelas ruas de Storybrooke. Gold podia sentir algo se aproximando – ou seria afastando? Ele não tinha certeza.

Embora dotado de uma euforia que ele não lembrava sentir uma vez sequer em toda a sua vida, Gold saiu de sua casa e prosseguiu com a sua rotina como se nada estivesse acontecendo. Sabia que, caso fizesse algum movimento diferente do esperado, atrairia atenções indesejadas para a sua pessoa. Atenções indesejadas? De onde surgira aquele pensamento? Não havia ninguém naquele lugar que ele temesse.

Mas Gold era um homem que tinha por hábito seguir seus instintos – ele sabia que eles eram confiáveis – e, por sorte, aquele era o dia de recolher o aluguel dos estabelecimentos que pertenciam a ele, isso o manteria em movimento e talvez, apenas talvez, o distraísse da ansiedade que começava a surgir dentro dele. Portanto, ele fez prosseguiu como anteriormente planejara.

No meio do dia, como de costume, ele rumou para sua loja para almoçar e lá permaneceu até o final da tarde, de algum modo sabendo que ninguém apareceria. Era estranho como o pensamento de que nunca tivera um cliente sequer jamais ocorrera a ele e ainda mais estranho que estivesse ocorrendo naquele dia.

Enquanto escurecia, Gold se viu trancando a sua loja como alguém que observava de fora, perguntando-se porque sempre a fechava no mesmo horário ou mesmo porque a mantinha, levando em conta que nunca tivera clientes. Estranho como esses pensamentos continuavam a lhe ocorrer.

Ignorando-os, ele continuou rumo aos lugares aos quais não havia visitado pela manhã a fim de recolher o restante dos aluguéis para que no dia seguinte... – bom, ele não estava certo a respeito do que faria no dia seguinte, provavelmente nada muito diferente. Ou talvez não, se o presságio de mudança estivesse correto – e ele não sabia se acreditava nisso, pois a idéia de que algo poderia um dia mudar era espantosamente surpreendente.

Sua última parada ocorreu exatamente às oito horas e quinze minutos da noite, quando cruzou a soleira da única hospedaria de Storybrooke. Algo no fundo de sua mente se agitou: normalmente, ele cobrava os impostos durante a manhã na hospedaria, quando tinha mais chance de achar a dona irritada – ele sabia que sua presença a irritava ainda mais, e isso o agradava profundamente. Era a primeira vez em meses – talvez, mesmo anos – em que ele ia àquele lugar à noite.

Ele parou à soleira da hospedaria, pois percebeu que ouvia vozes que não reconhecia vindas de dentro. Absurdo, ele conhecia todos naquela cidade, e todos o conheciam e temiam – como deve ser! –, e com isso em mente, ele entrou no recinto.

"Swan, Emma Swan.” Ele entreouviu, sentindo algo mudando drasticamente em seu íntimo.

Rumpelstiltskin. Maldição. Sua mente gritou, desestabilizando-o por cerca de meio segundo. Ele se recuperou o mais rápido possível – não podia demonstrar fraqueza, especialmente agora. Ele observou que havia três pessoas ali: duas que ele conhecia e uma que, para a sua surpresa, não conhecia. Emma. Snow White. Regina. Maldição.

Gold forçou uma expressão neutra, quase amistosa, em seu rosto enquanto bania aqueles pensamentos estranhos para uma parte de seu cérebro de onde poderia resgatá-los para análise mais cuidadosa em um momento posterior e em um lugar privado.

“Emma, que nome adorável.”

Ele pegou o dinheiro, incapaz de encarar a mulher mais velha que o entregava, e o colocou no bolso, apressado em deixar aquele estabelecimento antes que suas emoções o traíssem. Gold sentia os pensamentos estranhos persistindo dentro de seu ser como se tivessem vontade própria.

Rumpelstiltskin. Baelfire. Ele entreouviu, antes que conseguisse contê-los novamente. Havia algo definitivamente estranho ocorrendo tanto ao redor dele quanto em seu interior, isso era incontestável!

“Aproveite a sua estadia, Emma,” disse com cordialidade, antes de sair novamente para a rua e rumar para sua casa, onde ele esperava ter tempo e privacidade para pensar no que estava lhe acontecendo.

~~ // ~~

Belle nunca fora uma pessoa pessimista e, mesmo durante os momentos mais críticos da guerra, ela sempre se esforçara para não perder as esperanças e não permitir que os outros a perdessem. Nem mesmo a jovem, entretanto, era capaz de enxergar algo positivo em estar cativa do que muito bem podia ser a criatura mais terrível e poderosa daquele mundo – ou mesmo de todos os mundos.

“Eu salvei o meu povo, eles estão vivos e são livres para reconstruir as suas vidas. Minha liberdade é um preço muito pequeno diante de tamanho milagre,” ela dizia isso a si mesma todas as noites antes de cair em um sono agitado e cheio de pesadelos nos quais seu senhor e mestre, Rumpelstiltskin, exigia as últimas e mais preciosas posses dela: sua pureza, sua identidade, sua memória e sua vida.

Embora tivessem se passado quase três semanas desde que se entregara ao Senhor das Trevas, Belle ainda não sabia ao certo o que seu mestre esperava dela. Ela sabia perfeitamente que ele não precisava de fato de uma serva, pois tinha a capacidade de manter as coisas limpas e organizadas por meio de magia.

A jovem tinha medo de descobrir, entretanto, pois sabia que, vindo do todo poderoso Senhor das Trevas, que era conhecido por sua crueldade e sua falta de misericórdia, certamente não seria algo que a agradaria. Ela tentava não pensar muito nisso, entretanto, e ocupava o seu tempo realizando os seus deveres cotidianos da melhor forma possível.

Estes incluíam cozinhar três refeições diárias e servir um chá em meados da tarde ao seu mestre, limpar e organizar todos os cômodos do castelo – embora ela estivesse proibida de mudar o lugar dos objetos – e manter as roupas dele limpas e organizadas.

Eram tarefas longas e cansativas para Belle, que não estava acostumada a elas. Ela tinha conhecimento que, por nunca ter realizado serviços como aqueles, não os fazia tão bem quanto deveria, mas Rumpelstiltskin era um mestre paciente e parecia se contentar com o fato de que ela ainda se encontrava lutando para aprender – o que aumentava os seus temores, em lugar de tranqüilizá-la.

Embora houvesse muito que fazer, a jovem não podia deixar de se sentir entediada. Belle agradecia o fato de ser forçada a realizar um trabalho braçal que a cansava o suficiente para que o sono viesse facilmente durante a noite – caso contrário, provavelmente não seria capaz de dormir em sua cela desconfortável e fria.

Ela, entretanto, estava acostumada às longas reflexões a respeito dos livros que lia e ao contato direto com mestres nas mais diversas ciências; a atividade física a cansava, mas não a ocupava o bastante. A única pessoa presente naquele castelo era Rumpelstiltskin e, embora Belle soubesse que ele provavelmente tinha muito conhecimento e era uma pessoa muito interessante com quem se conversar, a jovem se sentia medo e desconforto sempre que estava à presença dele.

Foi nesse contexto em que ela o conheceu.

Belle estava lavando os pratos que haviam sido utilizados durante a refeição anterior enquanto tentava imaginar como estaria o seu pai se virando sem ela quando ouviu uma risadinha às suas costas.

A jovem conseguiu não deixar o prato em sua mão cair – estava se acostumando às súbitas aparições de seu mestre –, mas prendeu a respiração quando observou um garotinho de pele reluzente sorrindo inocentemente para ela.

“Q-quem é vo-você?”

“Gwenaël,” disse, rapidamente. “Você parece chateada.”

Não fossem suas estranhas feições, Belle acharia que aquela era uma das crianças que Rumpelstiltskin conseguira de seus acordos. Ela reconhecia, entretanto, a similaridade que o garotinho tinha com o mestre dela e, embora ele não tivesse respondido à sua pergunta adequadamente, a jovem já conhecia a resposta.

“Eu estou bem. Como nunca o vi desde que cheguei ao castelo?” Perguntou, feliz por ter um mistério a solucionar após tanto tempo.

O garotinho sorriu travesso e deu de ombros, e Belle percebeu algo de estranhamente familiar no gesto, embora ela não se recordasse muito bem a quem ele remetia. Não a Rumpelstiltskin, é claro! Eu me lembraria se fosse ele.

“Deve ser bem chato nunca conversar com ninguém. Você devia falar com ele.”

“Seu pai não me chamou aqui para conversar comigo. Ele queria uma serva, não uma amiga.”

Não era exatamente verdade. Belle não sabia ao certo o que Rumpelstiltskin desejava, embora tivesse conhecimento que não fora levada até lá apenas para ser uma apenas serva. Mas ela não confessaria esse conhecimento a uma criança, ao filho dele, que certamente quereria mais detalhes do que ela poderia dar e talvez ainda contasse tudo a Rumpelstiltskin.

“Como você sabe que ele não quer uma amiga?”

Ele era o Senhor das Trevas, a criatura mágica mais terrível e poderosa daquele mundo. Pessoas como Rumpelstiltskin simplesmente não precisavam de amigos, não precisavam de companhia.

“Eu acho,” disse o garotinho lentamente, “que você está com raiva dele e isso está te impedindo de ver a verdade.”

Belle demorou quase um minuto para esboçar qualquer reação àquela afirmação. Não, gritava a sua mente; sim, gritava o seu coração. Por fim, ela desviou os olhos da pequena figura quando ouviu uma batida na porta que a sobressaltou.

“Com quem estava conversando, querida?” Disse o mestre, entrando na cozinha.

Belle olhou de relance para o lugar onde Gwenaël estivera, dois segundos antes, e descobriu, para seu espanto, que não havia mais ninguém ali. Tal pai, tal filho, eu creio.

Ela observou o seu mestre a encarando com um olhar estranho e se perguntou o quanto ele teria ouvido. Rumpelstiltskin nunca a perguntou a respeito daquela conversa e se passou muito tempo até que Belle finalmente reunisse coragem para perguntá-lo.

~~ // ~~

Gold se sentou em um sofá localizado diante da lareira na sala de estar de sua casa, tentando absorver as palavras que surgiam sem convite em sua cabeça. Ele sabia que estava segurando uma avalanche de pensamentos e que, em algum momento, eles o venceriam pelo cansaço. Resolveu, portanto, deixar que viessem livremente.

Emma. Swan.

Ele era Rumpelstiltskin ese lembrava de uma infância sofrida. Nunca tivera pais, pois sua mãe morrera logo após o seu nascimento e seu pai, um homem magro que só fazia enganar os outros, abandonara-o. Ele fora estigmatizado como o filho de um covarde, taxado como herdeiro irremediável de tal postura.

Sua única companhia era Milah, terceira filha de um comerciante e dois anos mais velha do que ele, que certa vez sentira pena do garoto solitário da vila e resolvera conhecê-lo. Ela, entretanto, só o visitava esporadicamente porque seu pai não gostava de vê-los juntos.

Emma. Swan.

Ele era Ewan Gold, filho de um grande empresário que viajava muito a negócios e tinha pouquíssimo tempo livro – esse em que não se preocupava em passar com o filho, usando-o para ler ou assistir televisão. Ele tivera uma infância solitária, cercado por professores particulares e empregados que o taxavam de filhinho de papai e não se preocupavam em conhecê-lo.

Maldição. Snow. White. Emma.

Ele era Rumpelstiltskin e se casara com sua única amiga de infância, Milah. Não porque estivesse apaixonados, mas porque eles haviam descoberto que compartilhavam o sonho de conhecer o mundo. Antes que pudessem realizá-lo, entretanto, os ogros começaram a avançar contra o reino, o resultado disso foi que viajar se tornou excessivamente perigoso.

Ele, que era Rumpelstiltskin, foi convocado para a guerra e decepcionou Milah, pois fugira ao escutar uma profecia que dizia que ele teria um filho e que este também cresceria sem o pai. Ele provou a todos da vila que era um covarde como seu pai, mas jurou nunca abandonar seu amado filho, Baelfire.

Milah nunca o perdoou por fugir dos campos de batalha, e, assim, o casamento dos dois começou a definhar.

Emma. Swan.

Ele era Ewan Gold e ainda era um rapaz quando seu pai – o Velho, como gostava de chamá-lo – morreu. Dezenove anos de idade, e ele era o dono de uma enorme fortuna, o único herdeiro de uma das maiores empresas do país.

Qualquer rapaz teria deixado isso subir à cabeça e gastado tudo sem pensar duas vezes, mas o frio e calculista Ewan Gold não era qualquer rapaz: ele guardou o dinheiro, usando apenas o necessário para que vivesse com certo conforto e pagasse uma boa universidade. Quanto às empresas, ele deixou nas mãos de uma equipe de administradores, a qual ele liderava em seu tempo livre.

Cinco anos depois, aos vinte e quatro anos, ele, que era Ewan Gold, formou-se como advogado e assumiu definitivamente os negócios do pai.

Profecia. Baelfire. Emma. Swan.

Ele era Rumpelstiltskin e assistiu seu filho crescer um rapaz corajoso e alegre, muito diferente dele. Milah acabara por abandoná-los, cansada de viver sob o mesmo teto que um covarde, mas Baelfire jamais reclamara por ter crescido sem mãe, porque tinha um pai que o amava e fazia tudo por ele.

Eles viviam sob uma sombra, entretanto, pois, quando Baelfire completasse quatorze anos, ele, que era Rumpelstiltskin, seria forçado a observar o seu amado filho partindo para lutar a terrível guerra contra os ogros. E nada ele poderia fazer.

Com a proximidade da data, o desespero cresceu e ele, que era Rumpelstiltskin, também se tornara Senhor das Trevas, uma criatura amaldiçoada pelo poder de uma adaga. Sozinho, ele salvou todas as crianças, exterminando os ogros.

Emma. Swan.

Ele era Ewan Gold e deu continuidade aos negócios de seu pai, criando um grande império através do conjunto de empresas que herdara. Fora o jovem empresário mais bem sucedido do mundo por muitos anos consecutivos, até o momento em que se cansou de se limitar a seguir o caminho traçado por seu pai.

Então, ele, que era Ewan Gold, leiloou as empresas, tornando-se um dos homens mais ricos do país e passou a se dedicar à sua verdadeira paixão: colecionar itens raros e valiosos.

Maldição. Rainha. Regina. Mills. Swan. Emma.

Ele era Rumpelstiltskin ecomeçou a buscar maneiras de ficar mais poderoso. Ele mentia para si mesmo, dizendo que o estava fazendo para que pudesse proteger melhor seu Baelfire.

Por fim, entretanto, escolheu o poder em lugar do amor de seu filho e passou as mais de duas centenas de anos posteriores a isso lamentando o seu feito e buscando uma maneira de remediá-lo.

Ele voltou a ser solitário, embora não mais pela covardia herdada, mas pelo medo que despertava nos demais – que ironia! –, impedindo a aproximação de qualquer ser humano. Ele se forçou a não se importar, o que era relativamente fácil, pois tinha muito trabalho a fazer se quisesse, de fato, reencontrar o seu amado filho.

Então, algo estranho e repentino aconteceu em sua vida, algo que mesmo o Senhor das Trevas, capaz de enxergar o futuro, foi incapaz de ver: uma mulher – quase demasiado jovem para assim ser chamada – e um garotinho entraram em sua vida.

Emma. Swan.

Ele era Ewan Gold e leiloou as empresas que herdara do pai. Com o dinheiro, comprou diversos estabelecimentos em uma pequena e simpática cidade chamada Storybrooke. Lá, também, abriu uma pequena casa de penhores e se dedicou a partir daí a coletar os mais diversos objetos.

Passou todos os anos posteriores completamente solitário, temido pelos moradores de Storybrooke. Não se importava, entretanto, pois adorava o olhar de terror que as pessoas lhe lançavam sempre que ele entrava em um estabelecimento.

Maldição. Snow White. Filha. Quebrar. Emma. Swan.

Ele era solitário, mas nem sempre o fora.

Baelfire. Belle. Gwenaël.

~~ // ~~

Belle e seu mestre nunca tocaram no assunto da conversa que ela tiver com Gwenaël, e o rapazinho não voltara a aparecer diante dela, mas a jovem supôs que ele contara ao pai a respeito da conversa dos dois ou Rumpelstiltskin a ouvira, pois sua atitude mudou radicalmente nos dias que se seguiram.

Para começar, ele passou a exigir que ela fizesse suas refeições à mesa com ele e, embora raramente se falassem. Belle ficou surpresa em constatar que isso a fazia se sentir menos solitária. Depois, ela passou a receber livros em sua cela durante à noite, sendo esses substituídos sempre que terminava de lê-los, o que fazia com que a jovem se sentisse menos isolada do mundo.

Embora muito tivesse agradecido a Rumpelstiltskin, Belle não pôde se forçar a perguntar ao seu mestre a respeito da mudança e a óbvia causa dela, Gwenaël.

Certo dia, algumas semanas depois do ocorrido, Belle estava limpando um dos muitos quartos do castelo quando ouviu as portas do saguão de entrada se abrirem e correu para saudar o seu mestre, como ela sabia que o agradava. O que encontrou, entretanto, foi um Rumpelstiltskin cambaleante e completamente coberto de sangue.

“Imagino que você vá se aproveitar do meu momento de fraqueza para tentar escapar, querida. Já aviso que é inútil, pois a encontrarei facilmente independentemente do quão longe conseguir ir. O que me pertence não sai de minha possessão a menos que eu deseje,” disse o Senhor das Trevas com a voz fraca e arrastada assim que percebeu a presença de Belle.

Belle engoliu a náusea que sentiu vendo os ferimentos de seu mestre e se aproximou dele, ignorando por completo a ameaça – já se acostumara ao fato de que Rumpelstiltskin não confiava nela. Ela o abraçou pela cintura e o guiou até uma cadeira à mesa, tentando ignorar a sensação que a proximidade do corpo dele provocava nela.

“Não gaste suas energias, fique quieto enquanto eu esquento água. Precisamos limpar os seus ferimentos o mais rápido possível,” disse, surpreendendo-se com a ansiedade em sua voz.

Rumpelstiltskin grunhiu em resposta, o que Belle optou por considerar como uma concordância. Ela correu para a cozinha, onde esquentou uma água e colocou-a em uma bacia; ainda pegou outra – vazia – e jogou um pano limpo nos ombros. Depois, retornou para a sala, onde encontrou Rupelstiltskin tentando inutilmente se curar.

“O que aconteceu? Por que você não está conseguindo se curar?” Perguntou Belle, se aproximando.

Enquanto esperava por uma resposta, Belle colocou ambas as bacias na mesa ao lado e se sentou diante de seu mestre. Ela encarou Rumpelstiltskin por alguns segundos e percebeu que ele não responderia, o que lhe arrancou um leve suspiro.

“Você é o meu mestre, Rumpelstiltskin, e um bom mestre para uma pessoa tão pouco eficaz. Já é hora de perceber que não vou traí-lo, meu senhor,” disse Belle voltando os olhos para a bacia e molhou o pano na água quente. “Agora, deixe-me ajudá-lo. Vou limpar seus ferimentos e costurá-los, precisamos fechá-los logo. Eu sou incapaz de entender como você ainda está consciente após de perder tanto sangue.”

Rumpesltiltskin não respondeu ou se moveu, embora encarasse Belle como se a considerasse um objeto de estudo muitíssimo interessante. Impaciente, a jovem se aproximou e começou a desabotoar a camisa de seu mestre, que saltou da cadeira assim que percebeu o que sua jovem serva estava fazendo. Menos de um segundo depois, entretanto, caiu de volta na cadeira, tonto.

“Vamos lá, eu preciso que você tire a sua camisa para que eu possa limpar os ferimentos em seu peito,” disse Belle, muito aborrecida.

“Você superestima o meu autocontrole se acredita que sou capaz de permanecer passivo diante do fato de que uma bela jovem está me despindo, querida. Eu não o faria se fosse você,” falou Rumpelstiltskin com um sorriso fraco no rosto e uma voz cansada. Com um mínimo movimento, sua camisa desapareceu.

Belle reprimiu a resposta que estava na ponta de sua língua: que Rumpelstiltskin não estava em condições de fazer nada com ela naquele momento.

Na parte direita do peito dele havia um enorme corte, mas, para seu alívio, o sangramento havia parado, o que era sinal de que não era muito profundo – ou Rumpelstiltskin se curava mais rápido do que um ser humano comum, o que era bem provável também. Ela engoliu seco e começou a limpar aqueles ferimentos que teriam matado qualquer homem comum.

“Eu não sou nenhuma curandeira, meu senhor, mas suponho que procurar por alguém mais especializado esteja fora de cogitação.”

Rumpelstiltskin grunhiu novamente em resposta, o que Belle respondeu com uma risadinha. Por alguma razão, vê-lo tão vulnerável e dependente dela, embora a preocupasse, lhe dava uma sensação de proximidade– como se o tornasse mais humano.

“Bom, sorte sua que eu aprendi bastante durante a guerra. Você sabe que mulheres não podem ser guerreiras por aqueles lados, de modo que, se eu quisesse ajudar de alguma forma, precisaria trabalhar em outro setor. Acabei por ajudar os curandeiros do reino e aprendi bastante com eles.”

Belle olhou nos olhos de Rumpelstiltskin enquanto pressionava o pano contra o ferimento e percebeu que, embora ele mantivesse uma expressão neutra em seu rosto, havia um resquício de dor em seus olhos. A jovem sentiu pena dele, com barreiras tão erguidas que ele era incapaz de confiar o bastante para mostrar o que estava sentindo.

Como você sabe que ele não quer uma amiga? Ela se lembrou de Gwenaël perguntando e, pela primeira vez, considerou a pergunta com o coração aberto.

Você é uma tola, Belle! Diante de você, encontra-se aquele que provavelmente o homem mais poderoso e temido do mundo, e você está sentindo pena dele, achando que ele quer a sua amizade! Mas ele parecia não possuir nenhum amigo, ninguém com quem conversar abertamente. Era um destino solitário e terrível, e Belle decidiu que nem mesmo o Senhor das Trevas não merecia isso, prometendo a si mesma que mudaria aquilo.

Quando terminou o trabalho, ergueu os olhos novamente e percebeu que Rumpelstiltskin a encarava de um modo diferente, um olhar quase amistoso em seu rosto e um sorriso protetor e muito sincero.

“Há um mago poderoso em uma cidade muito a norte que se chama Agrabah. Ele me devia todo o seu poder, mas quando fui encontrá-lo para cobrar o meu preço, ele não estava disposto a fazê-lo, o que é algo bastante comum. Eu o subestimei, entretanto, e, embora tenha vencido e o condenado a uma vida de escravidão, não saí totalmente intocado do encontro.”

Belle o olhou com surpresa e uma crescente felicidade. Ele respondera uma de suas perguntas! A jovem percebeu que não fora a única que mudara naquele dia.

~~ // ~~

Gold se sentia exausto após uma noite inteira sendo forçado a se relembrar de sua longa vida. Evidentemente, mais de duzentos anos de memórias não podiam ser revisitados em apenas quinze horas; portanto, havia muitos detalhes que lhe passavam desapercebidos naquele momento e surgiam em sua cabeça nos momentos mais inesperados. Mas ele sabia quem ele era, de onde era, e como e por que se encontrava ali.

Durante todo o dia posterior àquele em que conheceu Emma Swan – a Salvadora –, Gold analisou os seus pontos fortes naquela cidade que acabara de se transformar em um imenso tabuleiro de xadrez. Ele sabia que qualquer coisa que podia ser usada ao seu favor naquele momento era valiosa.

Detinha o que considerava o mais precioso poder em todos os mundos: o conhecimento. Gold tinha certeza que não podia haver mais do que meia dúzia de pessoas em Storybrooke que o tinham também – embora muito provavelmente fosse o mais poderoso nesse quesito por ser o único que se lembrava a despeito dos desejos da Rainha.

A questão financeira também estava ao seu favor: ele era, sem favor, a pessoa mais rica da cidade. Não era algo essencial, de fato, mas podia se tornar útil, pois, melhor do que qualquer um, Gold sabia que lealdades podiam ser compradas – embora apenas por um breve período de tempo.

Por fim, provavelmente, havia o que era um dos últimos resquícios de magia naquele mundo, conseguido através de um acordo com Regina. Essa seria uma peça fundamental no tabuleiro, ele sabia. Provavelmente. Essa palavra, surgida quase que por vontade própria em sua cabeça, o desagradou. Provavelmente não era um luxo que ele possuísse naquele lugar, um risco que pudesse correr. Portanto, algo precisava ser confirmado.

Portanto, após fechar sua loja naquele final de tarde – no mesmo horário de sempre, é claro –, ele se dirigiu à maior casa da cidade, a da prefeita – ou Rainha, mas Gold baniu esse pensamento, pois sabia que, enquanto Regina não soubesse do quanto se lembrava, ele se encontrava em vantagem. Naquele momento, mais do que em qualquer outro, Regina procuraria por pessoas que pudessem ter recuperado suas memórias, e ele sabia que era o primeiro da lista. Portanto, deveria ser Gold.

Ele se aproximou do jardim da prefeita, onde ela se encontrava cuidando com carinho de sua amada macieira, contendo-se para não rir. Regina levara uma incontestável vantagem sobre ele durante vinte e oito anos. Agora, o jogo virara, e ela sequer sabia.

Gold percebeu que a prefeita parecia estar especialmente satisfeita, e se perguntou qual seria a razão disso: a Salvadora chegara em Storybrooke e a maldição se encontrava mais enfraquecida do que nunca.

Não demorou muito até que Regina confessasse que acabara de se livrar de Emma, o que provocou uma onda de satisfação em Gold – ela não sabia com o que estava lidando.

“Eu não apostaria nisso, acabei de vê-la na rua principal com o seu menino. Pareciam mais ligados do que nunca.”

Ele precisou se conter para não demonstrar a satisfação que sentiu ao ver a insatisfação evidente no rosto da prefeita. Ele se ofereceu para resolver o problema dela – sabia, entretanto, que a Rainha recusaria, pois mesmo uma pessoa egocêntrica e impulsiva como ela saberia que aquele não era o momento certo para ter uma dívida com ele.

Gold lembrou Regina do acordo que ela fizera com ele tantos anos antes para conseguir Henry – uma façanha inacreditável, levando em conta que a cidade se encontrava amaldiçoada. Um pequeno jogo – perigoso, ele sabia, mas necessário – para atiçá-la a fazer perguntas que ele jamais responderia.

“Quem é essa mulher, a mãe dele, essa Emma Swan?”

Gold sentiu um sorriso incontrolável brotando em seus lábios. Jogar com Regina, após vinte e oito anos amaldiçoado, era algo que especialmente satisfatório – uma forma de revidar tudo o que ela o forçara a fazer durante os anos anteriores.

“Eu diria que você pensa que sabe exatamente quem ela é.”

Eles se encararam por alguns segundos. Ele viu raiva, medo e curiosidade nos olhos da prefeita. Quando se vive duzentos anos, quase todas as pessoas parecem simplórias, mas Regina é a pessoa mais simples que já tive a oportunidade de conhecer.

“Eu realmente devo ir,” disse, voltando-se para a saída, e, como previra, Regina se prostrou em sua frente impedindo que ele prosseguisse.

“Diga-me o que você sabe a respeito dela,” exigiu, por entre os dentes.

“Eu não vou responder, querida. Então, sugiro que me dê licença, por favor.”

Ele percebeu o medo tomando conta da expressão e dos olhos de Regina e, para seu imenso deleite, ela não tentou contê-lo mais, o que comprovava que ele podia contar com aquele resquício de magia.

Peças dispostas no tabuleiro, era hora de começar a jogar.

~~ // ~~

Belle retornou ao castelo de Rumpelstiltskin tentando não pensar na enormidade da decisão que estava tomando naquele momento. Por cerca de quatro horas, ela fora livre para partir e realizar o seu sonho de conhecer o mundo, mas ela voltava as costas para isso e, por livre e espontânea vontade, retornava para o seu cárcere.

Ela sentiu, pela última vez antes de entrar no castelo do seu mestre, uma leve brisa primaveril contra o seu rosto e o maravilhoso odor das flores à sua volta. Fugir para o mundo foi especialmente tentador naquele momento, mas ela sabia que seu coração não pertencia mais àquilo, ele estava atrelado ao castelo de seu mestre – e à figura dele.

Além disso, aquela estranha mulher que Belle encontrara na estrada dissera que um beijo de amor verdadeiro seria capaz de quebrar qualquer maldição, mesmo uma maldição como a do Rumpelstiltskin – esperava.

Ela não confiava naquela mulher – Belle era jovem, mas não inocente a ponto de confiar cegamente em estranhos que lhe ofereciam conselhos –, mas achava que tentar não podia causar nenhum mal. Sabia – principalmente após escolher seu mestre à sua liberdade – que o amava verdadeiramente. O que, entretanto, sentiria Rumpelstiltskin?

Belle o encontrou, como esperava, fiando em sua roca. Embora a expressão no rosto de seu mestre tenha permanecido quase neutra durante toda a caminhada dela até ele, a jovem percebeu que sua postura ficou mais relaxada na medida em que ela se aproximava.

“Oh, você já está de volta! Bom. Eu,” Rumpelstiltskin parou por alguns segundos, parecendo desconcertado, “estava mesmo precisando de mais palha.”

A jovem se sentou diante de Rumpelstiltskin, que parou o que estava fazendo e a encarou – embora evitasse os olhos dela. Belle percebeu uma leve hesitação nos movimentos de seu mestre e chegou à conclusão de que o surpreendera – o seu retorno não fora esperado.

Belle pediu a ele que contasse a história que prometera a respeito de seu filho. Rumpelstiltskin hesitou por alguns segundos e disse que perdera seu filho e a mãe dele. A jovem não ficou satisfeita com a resposta, mas aquilo não mais era sua maior preocupação naquele momento.

“E, desde então, você não amou ninguém ou foi amado?”

Ela percebeu que os rostos dos dois estavam se aproximando lentamente, embora não tivesse certeza se isso se dava por conseqüência dos movimentos dela, de Rumpelstiltskin ou de ambos. Antes que pudesse chegar a uma conclusão, seus lábios se tocaram, e a importância de todo o resto desapareceu.

Não foi um beijo profundo – e, provavelmente, também não foi longo, embora Belle não estivesse muito certa disso –, mas mesmo ela, que nunca aprendera muito a respeito de magia, pôde sentir a enormidade do poder e da energia por ele evocados.

Então, tudo parou, e a jovem sentiu a curiosidade vencendo a vontade de permanecer próxima do homem que amava. Belle abriu os olhos enquanto se afastava e observou o rosto de seu mestre se metamorfoseando em algo quase humano: sua pele perdendo a textura escamosa e voltando à coloração habitual.

“O que está acontecendo?” Perguntou Rumpelstiltskin, e Belle não pôde deixar de notar que até mesmo a sua voz mudara, tornando-se um pouco mais grossa.

Ela não respondeu, espantada com a mudança que o beijo provocara – que ela provocara. O amor verdadeiro, recordou, não podia ser unilateral, de modo que era certeza que seu mestre – não, agora ele era apenas Rumpelstiltskin para ela – a amava!

Então, ele abriu os olhos, e Belle percebeu que, embora mais humanos, não eram muito diferentes: um resquício da maldição permanecia dentro de Rumpelstiltskin. Bom, não creio que seja possível erradicar completamente uma maldição tão poderosa a qual ele esteve submetido por tanto tempo!

“C-como está se sentindo?” Perguntou a jovem, incapaz de esperar mais tempo pelas palavras dele.

Rumpelstiltskin a encarou por um momento, incapaz de encontrar palavras para descrever o que estava sentindo, tamanho o misto de sentimentos que se apoderavam dele. Ele olhou para as próprias mãos, chocado, e piscou algumas vezes antes de erguer os olhos para encarar Belle com espanto.

“O beijo de amor verdadeiro,” ele disse, por fim, com aquela voz que tanto tinha de familiar e estranha. “V-você me a-ama?”

Belle sorriu e tocou os cabelos dele, agora lisos e macios – embora estivessem desarrumados naquele momento. Não, ele não é nenhum príncipe encantado, pensou a jovem, deixando escapar uma risadinha, mas é belo à sua maneira.

“Sim,” ela disse, olhando nos olhos dele. Rumpelstiltskin, entretanto, parecia assustado e muito perplexo para notar a serenidade e a felicidade dela. “Tudo bem com você?”

Rumpelstiltskin não parecia saber o que responder, e Belle esperou que ele reorganizasse seus pensamentos e encontrasse as palavras certas. Era natural que ele se sentisse confuso; afinal, em apenas alguns segundos, tudo mudara: ele tinha alguém que o amava e sua maldição fora quebrada.

“Você quebrou a maldição,” ele disse lentamente, erguendo as mãos. “Não sinto mais a influência da adaga. Entretanto…”

Ele fez mais uma longa pausa. Uma adaga amaldiçoada é a fonte do poder dele? Imagino quantas pessoas saberão a respeito disso, se é que alguém de fato sabe. Muitos, ela sabia, matariam por uma informação como aquela, entretanto… – entretanto fora a palavra que ele usou. Ela o olhou com curiosidade, contendo-se para não perguntar o que ele queria dizer com aquilo.

Ele ergueu as mãos, encarando-as fixamente, e, repentinamente, elas pegaram fogo. Belle prendeu a respiração ao observar as chamas nascendo dos dedos dele. Ele ainda tinha magia: a jovem não sabia se sentia aliviada ou decepcionada ao constatar aquele fato.

Então, ele ergueu as mãos até diante do próprio rosto e soprou. As chamas flutuaram da mão dele e assumiram a forma de uma ave vermelho-sangue, que voou das mãos dele até diante do rosto de Belle e, encarando-a nos olhos, cantou algumas belas notas para ela. Depois, repentinamente, ela ardeu em chamas e desapareceu. Belle o encarou, espantada, e Rumpelstiltskin sorriu.

“A fênix, querida. Você me fez renascer, mas, como a fênix não se torna inteiramente diferente após nascer de suas cinzas, não estou totalmente mudado. Há muito que precisamos conversar, há muito que preciso lhe contar. Até lá, você deve manter isso em segredo e permanecer dentro do castelo, para a sua segurança.”

Belle não sabia exatamente o que pensar diante das palavras dele, mas sorriu, porque sabia que Rumpelstiltskin já não era mais o seu mestre, mas seu amante.

“Eu prometo,” disse, por fim.

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* “Luz do dia, eu devo esperar pelo nascer do Sol/Eu devo pensar em uma nova vida/E não devo ceder/Quando o amanhecer vier/Essa noite será uma memória também/E um novo dia vai começar.” (Música: “Memory”)


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Notas finais do capítulo

Caros leitores,

Esse é um grande projeto que venho preparando há cerca de um mês. Espero sinceramente que gostem de ler tanto quanto eu estou gostando de escrever.

Se chegaram até aqui, não deixem de comentar. É sempre bom receber o feedback de vocês.

Abraços!