Premonição 7: Clube da Morte escrita por Lerd


Capítulo 8
Murutucu


Notas iniciais do capítulo

Antepenúltimo capítulo, galera! A fanfic está na reta final. MIL PERDÕES pela demora, acabei perdendo o prazo. Pra compensar, um capítulo um pouquinho maior do que os outros e com bastante sangue! :BEnjoy!



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O restaurante era bonito e aconchegante.

Ali havia diversas mesas de madeira, todas cobertas com toalhas coloridas em tons quentes. O ambiente era típico de países tropicais, com redes feitas a mão e diversos quadros e enfeites nas paredes.

Era um restaurante de cozinha brasileira. Era também o preferido de Erika, e aonde ela levara Marissa quando elas tiveram o seu primeiro encontro, vários anos antes. Quase uma década se passara, mas o ambiente continuava como costumara ser. Aquilo era, até certo ponto, reconfortante.

Marissa não conseguia manter-se focada. Olhava para todos os lados, apreensiva. A paranoia já começara a se apossar da médica, de modo que Erika tentava se manter forte pelas duas. Era difícil e a mulher estava prestes a desabar, mas precisava se manter firme para apoiar a parceira.

— Querida, fica calma. Para de se preocupar com as coisas ao seu redor. Nada vai te acontecer enquanto você estiver comigo. — A morena disse, segurando a mão de Marissa.

A loira meneou a cabeça positivamente, mas em seu rosto havia uma expressão de angústia. Erika ficava com o coração partido em ver a outra naquela situação, mas o que poderia fazer? De bom grado trocaria de lugar com Marissa, se pudesse. Mas não podia, e tinha de aceitar aquela situação.

— Você quer voltar pra casa? — Erika perguntou.

— Não, não. Desculpa.

— O Cassiel está indo atrás de respostas, você sabe. Nós vamos acabar com isso em breve, meu amor. Confia em mim?

Marissa segurou a mão da companheira em cima da mesa e concordou com a cabeça. Pegou o cardápio e começou a avaliar as opções. O celular de Erika então vibrou, e ela percebeu que era uma mensagem, acompanhada de três chamadas perdidas. Empalideceu ao ver o remetente.

Era uma mensagem da assistente social. Estava escrito:

Me ligue até as quatro da tarde, se possível.

Aquilo não podia ser coisa boa. Ao devolverem Jamal para as freiras do orfanato, Marissa explicara a situação da queimadura. A madre superiora fora compreensiva e dissera que aquele tipo de coisa acontecia com mais frequência do que elas podiam imaginar. Erika achara que a situação acabaria ali, mas pelo visto ela estava enganada. Ou será que não?

Decidiu que não contaria o conteúdo da mensagem à Marissa. Primeiro iria falar ela mesma com Pria Davuluri. Dependendo de qual fosse o assunto comunicaria a parceira, mas por enquanto o melhor era deixar a loira em paz. Ela já tinha muito com o que se preocupar.

x-x-x-x-x

Cassiel, Ulysses, Crystal e Cody se encontraram na hora do almoço em um simplório restaurante japonês que ficava num bairro afastado, perto da casa do jornalista. Comeram quase em silêncio, sem que falassem abertamente sobre o assunto que os trouxera ali. Quando todos estavam satisfeitos, Ulysses contou à queima roupa sobre a morte do gato de Themis. Crystal chocou-se tremendamente.

— Mas a porta estava arrombada ou algo assim? — Ela perguntou.

— Não. E é isso que me deixa mais inseguro! Quem entrou em casa tinha a chave!

— E existe outra cópia da fechadura do seu apartamento? — Cody indagou.

— Só a que ficava com a Themis. De alguma maneira o filho da puta a conseguiu...

Ninguém disse nada.

Cody então tomou coragem suspirou. Antes que pudessem dizer qualquer coisa, contou todas as suas teorias. Falou sobre a morte dos detetives no noticiário e então sobre seu post na deep web, finalizando com a ameaça do Coelho.

Ao ouvir aquele nome, Ulysses sentiu uma ânsia de vômito. Pediu licença e foi até o banheiro. Não conseguiu vomitar. Voltou até a mesa e percebeu que o assunto tinha sido interrompido até que ele voltasse.

— Ele deixou a máscara lá em casa. — O jornalista confirmou de repente.

Aquela frase foi o suficiente para que a conversa explodisse. Aparentemente todos eles estavam, de uma maneira ou de outra, a par do que acontecera com o facebook de Themis. Ulysses então retirou um tablet de sua bolsa e começou a pesquisar o perfil de todas as pessoas mortas. Começou com Grace.

— Isso é horrível. — Cassiel afirmou ao ver o que estava na tela.

Assim como Themis, a foto de perfil de Grace era a máscara de coelho. O mesmo se repetiu para Kitty e Diego. Não havia mais nenhuma chance de aquilo ser uma coincidência.

— Esse cara sabe muita coisa. — Cody começou. — No meu post eu não citava o nome de ninguém, nem mesmo o meu. Tudo bem, ele é um hacker. Eu não duvido que ele tenha descoberto o site através de um rastreamento das minhas atividades online, mas e quanto aos outros? Quero dizer, nem eu mesmo sabia que esses dois tiras tinham saído do zoológico.

Cassiel decifrou aquela charada em segundos:

— Ele estava no dia do acidente. É isso. — E então tudo começou a se encaixar em sua cabeça. — Por isso os policiais saíram do acidente! Eles estavam investigando o Cara de Coelho, estavam ali por ele. Mas eles saíram! É claro! — E seus olhos se iluminaram. — Esse maluco ouviu o que eu disse. Ele soube sobre a visão. Ele saiu do acidente junto com a gente!

Crystal tremia.

— Então ele também está na lista? Como nós vamos saber qual a ordem da morte dele? Isso vai atrapalhar tudo... — A cigana comentou.

Os homens pareceram concordar com aquilo.

x-x-x-x-x

A cozinha do restaurante ficava próxima das mesas. Além disso, ela era completamente aberta, sem uma parede que a separasse dos fregueses. Ali eles podiam ver de perto como eram preparados os pratos, dando uma bem-vinda transparência e confiabilidade ao local.

Marissa pedira um prato que ela não conseguia nem pronunciar, mas que era feito da carne de um peixe chamado pirarucu, típico da região amazônica do Brasil. Erika falava português fluentemente, de modo que fizera o pedido por ela e pela companheira. Resolveu que iria almoçar uma estranha sopa verde que Marissa achou que tinha cara de vômito. Erika riu.

— Eu nunca deixo de me surpreender com o seu português. Ele é quase perfeito. — Marissa comentou.

Obrigado. — Erika agradeceu, utilizando-se de seu português. — Fale isso pra minha mãe. Ela acha uma vergonha eu saber falar português e não saber nem dizer bom dia em sueco.

A conversa seguiu leve até a chegada dos pratos. Marissa aos poucos ia ficando menos nervosa.

Em cima do fogão onde eram cozinhados alguns pratos, alguém esquecera uma faca. O fogão estava aceso, de modo que a chama aquecia cada vez mais o objeto. Ele estava quase chegando ao ponto de ficar vermelho.

x-x-x-x-x

Cassiel caiu com o rosto em cima do prato de sua mesa.

Ulysses tinha ido de volta ao banheiro, e Cody saíra para fumar. Apenas Crystal continuava ali. Em um segundo ela e o rapaz estavam conversando, e no outro ele apagara completamente.

A garota soltou um gritinho e dois garçons vieram em seu auxílio.

— Cassiel, acorda! Cassiel!

A face do militar se chocara com força contra a porcelana, de modo que foi aberto um pequeno corte em sua bochecha. Um dos garçons discou para a emergência, enquanto Crystal tentava reanimar Cassiel. Ulysses chegou no exato mesmo segundo.

— O que aconteceu? — Ele perguntou.

— Eu não sei. — Crystal respondeu. E voltou a exclamar: — Cassiel! Cassiel!

O rapaz então pareceu estar recobrando a consciência. Ele ameaçou vomitar por duas vezes, e então acabou fazendo isso. O vômito caiu em suas roupas, e ele entreabriu a boca apenas para murmurar:

— Faca... Marissa.

De início a mulher não compreendeu. Ele está alucinando? Mas Ulysses entendeu o recado. Saiu em disparada, encontrando Cody do lado de fora. Puxou o rapaz pela camiseta, exclamando:

— Me passa o endereço do restaurante onde a sua irmã está.

O tatuado concordou rapidamente, entrando no carro de Ulysses. Os dois seguiram em disparada, passando por um sinal vermelho.

x-x-x-x-x

Cassiel estava em frente ao altar.

Usava sua farda destinada para eventos e ocasiões formais. Nela estavam presas duas insígnias, ambas condecorações pela bravura demonstrada durante sua missão na Guerra Civil da Síria.

Katie estava mais do que linda. Seus cabelos castanhos estavam presos de maneira belíssima, e a grinalda em sua cabeça caía e se arrastava pelo chão. Seu vestido possuía diversos cristais, lhe dando a aparência de uma ninfa.

Ao vê-la, Cassiel derrubou uma lágrima.

Mas você está morta, pensou. Katie virou-se para ele e abriu um largo sorriso.

Então foi tudo um sonho?

A garota meneou a cabeça positivamente. Cassiel então se virou para trás para observar os convidados. Viu, logo na primeira fileira, sua mãe e seu irmão Paul. Grace também estava ali, usando um vestido rosa que a iluminava. O militar também ficou feliz por isso. No colo da oriental Julia sorria e batia palmas.

Só então ele notou que havia um garotinho em cima do banco, de mãos dadas com Tina. Ele parecia ter a mesma idade de Julia e usava um terninho minúsculo. Seus cabelos eram castanhos e o rapaz rapidamente o reconheceu, mesmo jamais tendo visto o seu rosto.

Tyson. Meu filho.

Ao seu lado, no altar, estavam os padrinhos. Não foi surpreendente notar Marissa radiante dentro de um vestido azul celeste. O que o surpreendeu, porém, é que ao lado dela estava Erika, dentro de um vestido sem alças verde musgo. Cassiel também ficou feliz por isso.

O padre disse:

— Estamos aqui reunidos na presença de Deus e destas testemunhas para solenizar diante do Todo Poderoso o casamento deste homem e desta mulher. O casamento deve ser contraído com reverência e no temor de Deus, considerando-se os fins para os quais ele foi ordenado, isto é, para o companheirismo, o apoio e o consolo que os esposos devem proporcionar um ao outro enquanto viverem.

Cassiel estava radiante. Segurava as mãos de Katie de maneira trêmula, temendo que, de uma hora para outra, ela fosse desaparecer. Eu não quero acordar, eu não quero acordar...

— Cassiel Hendrix, você promete, diante de Deus e destas testemunhas, receber Katie Corbet como sua legítima esposa, para viver com ela, conforme o que foi ordenado por Deus, na santa instituição do casamento? Promete amá-la, honrá-la, consolá-la e protegê-la na enfermidade ou na saúde, na prosperidade ou na adversidade, e manter-se fiel a ela enquanto os dois viverem?

— Sim, eu prometo. — O homem não hesitou.

— Katie Corbet, você promete, diante de Deus e destas testemunhas, receber Cassiel Hendrix como seu legítimo esposo, para viver com ele, conforme o que foi ordenado por Deus, na santa instituição do casamento?

A pergunta foi clara, porém Katie não respondeu. Cassiel estranhou aquela pausa. Então ouviu um burburinho e se virou. Os convidados haviam mudado completamente.

Agora eram apenas oito, como ele pôde contar. Ulysses, Erika, Marissa, Cody, Grace, Jamal, Tina e Paul. Todos eles estavam mortos, enforcados e pendurados nos lustres da igreja. O rapaz então respirou forte, sabendo que sua alegria tinha sido momentânea. Apesar disso, ele ainda segurava a mão de Katie. Uma última esperança. Virou-se e olhou para ela.

Quem estava ali era Crystal. Mas ela não estava normal. Seu rosto estava podre, e eram visíveis larvas saindo de dentro de suas órbitas vazias. A garota abriu um largo sorriso e então ergueu sua mão cadavérica e tentou colocar a aliança no dedo de Cassiel. O homem gritou alto.

x-x-x-x-x

Marissa terminava de comer seu pirarucu. Erika segurava em sua mão, querendo sentir aquele calor para sempre. Seu amor por Marissa era tanto que chegava a doer. Por algum motivo, sentia uma imensa dor em seu peito. Não sabia se estava ficando paranoica por causa de tudo o que sabia, mas sentia que estava só. Saber que Marissa estava em perigo apenas realçava a sensação de perda. A morena não queria perder nenhum minuto ao lado da mulher que amava.

— Você sabe que eu te amo mais do que tudo, certo? — Erika disse, de repente.

— É claro que eu sei. — Marissa confirmou de maneira solene. — Eu também te amo mais do que tudo.

— Não, você não está entendendo. Eu te amo mais do que a minha própria vida. Você sabe disso né? Me diz.

Marissa estranhou aquela atitude.

— Mas é claro que eu sei, meu amor. Eu também te amo mais do que tudo nesse mundo. — E sorriu.

As duas se inclinaram sobre a mesa e deram um beijo rápido.

O calor foi insuportável e a faca voou para longe do fogão. Ela foi direto em seu alvo, e cravou-se no pescoço de Marissa, com a ponta saindo abaixo de seu queixo. A loira instintivamente colocou a mão no cabo, que estava na nuca. Olhou para Erika uma última vez e caiu, batendo o rosto no prato de porcelana.

Erika soltou o grito de horror mais alto que conseguiu.

x-x-x-x-x

Cassiel se recompunha na calçada, do lado de fora do restaurante. A ambulância fora cancelada a pedido do militar, assim que ele recobrou a consciência. O corte em sua bochecha não parecia necessitar de pontos, de modo que ele resolveu que não iria a um hospital. O gerente mostrou-se atencioso e prestativo, o que acabou resultando em um almoço por conta da casa. Crystal não conseguiu se importar menos.

— O que você viu Cassiel? Me conta.

— Praticamente nada. — O rapaz confessou. Ela não precisa saber do meu sonho. — Eu nem acho que isso foi uma premonição. Eu vi a Marissa, e então eu vi uma faca, mas era a faca da nossa mesa mesmo.

Só o Cody pra pedir uma faca em um restaurante japonês...

Antes que Cassiel pudesse continuar explicando, seu celular tocou. Ele atendeu, e a expressão em seu rosto disse tudo, mesmo antes de ele poder dizer a Crystal o que havia acontecido.

x-x-x-x-x

Dentro do carro, Cody esmurrava sua própria cabeça. Ulysses estava do lado de fora, conversando com Cassiel através do aparelho de celular. O tatuado não conseguia pensar com clareza. Continuava a martelar o pensamento de que a irmã estava morta porque eles chegaram tarde demais.

— Maldito, inútil, drogado de merda! — Ele repetia, em voz baixa. As lágrimas caíam em sua calça jeans de maneira incessante. — Você não conseguiu nem mesmo se importar com a única pessoa que te amou nessa vida. Seu infeliz, infeliz! — Cody repetiu, soltando um grunhido de dor. Não uma dor física, mas uma dor emocional. Doía mais do que havia doído a morte de sua própria mãe.

Ulysses não sabia o que fazer. Não se sentia a vontade para consolar aquele homem que mal conhecia. Mesmo diante de Erika, que era sua chefe, ele não soubera como agir. A mulher havia ido junto com o carro que levara Marissa, apesar de a parceira já ter falecido. Ele sabia o que a morena estava passando, de certa forma. Cody e Cassiel também. Todos eles haviam perdido pessoas que amavam e que consideravam importantes em sua vida. Ao realizar isso, o jornalista teve vontade de chorar de ódio.

Não era justo. Simplesmente não era. Themis, Grace, Marissa, os policiais... Eles eram todos boas pessoas. Themis não seria capaz de matar nem mesmo um inseto. Grace ajudava crianças carentes. Marissa era uma médica e estava prestes a dar amor a uma criança que só recebera pancadas da vida. Os policiais cuidavam da segurança das pessoas. Mesmo ele, um simples jornalista, julgava-se alguém de bem. O que a gente fez pra merecer tudo isso?

Se Deus existia, Ulysses o odiava com todas as suas forças.

x-x-x-x-x

Cassiel entrou em casa e subiu as escadas para seu quarto. Tina não teve tempo de ver o corte em seu rosto. Crystal entrou em seguida, cumprimentando a mulher e pedindo licença para ir atrás do rapaz. Tina não se importou, embora ainda estivesse confusa.

Crystal não se surpreendeu ao se deparar com Cassiel ajoelhado nos pés da cama, com as mãos cruzadas e em prantos. Não tentou consolá-lo. Sentou-se ao lado dele e então deitou na cama, ficando com a cabeça frente a frente com a do militar. Por vários segundos eles olharam um dentro dos olhos do outro. A cigana então aproximou seu rosto e os dois deram um leve e delicado beijo. Crystal então o puxou pela mão e fez com que ele deitasse ao lado dela, ficando novamente um de frente para o outro.

— Você merece todo o amor do mundo, Cassiel. Por que a Mãe só está lhe dando infelicidades?

O militar nem ao menos compreendia sobre o que a cigana estava falando, mas o jeito com que ela falava conseguia lhe tranquilizar tremendamente. A mulher, porém, ficou em silêncio. Cassiel então pediu:

— Me conta uma história. Por favor.

— Uma história? — Crystal se surpreendeu.

— É. — O rapaz confirmou. — Qualquer uma. Eu não aguento o silêncio da minha cabeça.

A cigana concordou com um aceno, tocando levemente a bochecha cortada do homem. Ela então segurou as mãos dele com as suas mãos, ambos ainda deitados. Aprendera a gostar da aspereza das cicatrizes em contraste com a maciez do resto da pele. Começou:

— Quando eu era menininha, bem pequena ainda, meus pais sempre tentaram me proteger me contando lendas e histórias. Uma da qual eu me lembro claramente é a velha história do "belo soldado".

“Nós morávamos em uma cidade pequena, e assim que eu fiz quinze anos e quis sair sozinha pela primeira vez, meu pai me alertou a respeito dos perigos de conhecer rapazes, e de seus comportamentos. Ele então me falou sobre esse rapaz, esse belo soldado. A lenda diz que se o soldado te pedir pra dançar com ele ou ir pro carro dele, você desaparece. Meu pai me disse que enquanto a garota dança, o chão se torna feito de magma e o soldado leva você para o inferno.

O nome desse soldado é Alexander, e ele é bonito como você. Alto, cabelos loiros, olhos azuis. Mas isso não importa. — Crystal sorriu. — Eu não lembro direito o que tornou o Alexander essa pessoa ruim, mas eu lembro que meu pai me contou que ele foi queimado vivo por ter se apaixonado por uma mulher casada. Mas enfim. A história começa mesmo é agora”.

Tina entreabriu a porta sem fazer barulho. Percebeu a cena e suspirou. Fechou a porta com o mesmo silêncio com que a abrira. Não sabia direito o que pensar. Achava Crystal uma garota educada e gentil, mesmo ela sendo meio esquisita. Apesar de não se comparar a Katie e Grace, Tina podia aceitá-la, desde que ela fizesse seu filho feliz. Seguiu até o quarto de Julia sem prestar atenção no assunto que continuava:

— Um dia eu e meus amigos fomos nesse barzinho, coisa boba de adolescente mesmo. Então enquanto a gente estava lá bebendo com nossas identidades falsas, chegou um grupo de militares, todos fardados e imponentes. Eles eram todos bonitos, claro, mas um deles era o mais bonito de todos.

— Alexander. — Cassiel palpitou.

— Cassiel! Você está estragando a história.

— Me desculpe.

Crystal deu com os ombros e continuou:

— Eu fiquei hipnotizada. Naquela hora eu não me importei nem um pouco com as histórias do meu pai. Eu não iria aceitar uma carona de um estranho. Então quando o soldado se aproximou de mim e me tirou pra dançar, eu aceitei. Ele tinha uma voz grave e confiante, e eu disse meu nome sem cautela.

Cassiel mantinha-se atento, hipnotizado.

— Naquela hora eu soube que ele era Alexander. Uma parte de mim gritava para que eu fosse pra casa e me escondesse debaixo das cobertas, mas eu não podia. Ele era irresistível demais. Então nós continuamos dançando por vários e vários minutos.

— E aí? O chão se tornou feito de magma? Você não desapareceu, pelo menos.

Crystal abriu um sorriso triste. Aquilo surpreendeu Cassiel.

— Eu não sei o final dessa história, Cassiel. Uma parte de mim está gritando pra eu ir pra casa e me esconder debaixo das cobertas. Mas você é irresistível demais... Eu espero mesmo que você não me arraste para o inferno...

x-x-x-x-x

Um dia depois.

Havia dezenas de pessoas no funeral de Marissa. Chegava a ser curiosa a mistura formada ali: de um lado havia seus companheiros de profissão, vários militares fardados e preocupados com a formalidade da ocasião. De outro lado havia seus amigos pessoais, a maioria deles parte da comunidade LGBT da Flórida. Era incrível que a mulher fosse capaz de reunir universos tão díspares dentro de si. Para Cassiel, isso só comprovava a pessoa maravilhosa que ela havia sido.

O clima era extremamente pesado. Como Cassiel se lembrava de Tina dizer, “o falecimento de alguém jovem é sempre uma ocasião mórbida”. Os amigos da garota achavam aquele acidente uma triste e infeliz causalidade, mas os membros do Clube da Morte sabiam os reais motivos. Sabiam que não havia nada de aleatório.

O velório acontecia em um jardim a céu aberto. O dia estava lindo. Havia dezenas de cadeiras brancas e de plástico dispersas pelo jardim, com os convidados sentados em frente a uma pequena plataforma onde estava o caixão com a bandeira dos Estados Unidos em cima dele. Erika estava na primeira fileira, ao lado de amigos próximos e de seus pais. Cassiel estava sentado ao fundo, fardado, ao lado de Tina e Crystal. Ulysses também estava ali, embora de pé e ainda mais distante.

Havia mais de vinte militares fardados com fuzis dispostos ao lado do caixão de Marissa. Na primeira fileira, há algumas cadeiras de Erika, estava o General Armstrong, maior autoridade do exército da Flórida. Ele viera representando todo o alto escalão da corporação, enquanto seus homens vinham em nome de todos os outros companheiros de profissão de Marissa.

Do outro lado do caixão, onde fica o púlpito, uma amiga de Marissa cantava. O General tentava disfarçar a sua expressão de descontentamento, mas não conseguia. A tal amiga era uma travesti, e, embora estivesse vestida da maneira mais sóbria possível, chamava a atenção.

She's leavin'

On that midnight train to Georgia

Said she's goin' back to find

The simpler place and time

I'll be with her

On that midnight train to Georgia

I'd rather live in her world

Than live without her in mine

Assim que ela terminou a música, desceu e voltou para o seu lugar. Erika agradeceu o gesto, ainda chorando. Sua mãe tocou a sua mão, tentando lhe passar algum conforto. A mulher estava inconsolável. Vestia um terno feminino preto, óculos escuros e o cabelo preso num coque desajeitado e sóbrio.

Foi então que surgiram duas freiras, cada uma segurando uma das mãos de Jamal. O garoto estava vestido com um minúsculo terninho preto e tinha a expressão de quem havia chorado. Ao ver Erika, ele se soltou das freiras e correu até a mulher. O menino pulou no colo da morena e a abraçou com força. Os dois ficaram daquele jeito, abraçados e chorando, por muito tempo. Ainda estavam abraçados quando as freiras se aproximaram e deram as condolências para Erika. A mulher agradeceu de maneira educada.

Crystal começou a chorar copiosamente ao ver a cena. Tina fez o mesmo, com a cabeça apoiada no ombro de Cassiel.

Quem chamava a atenção por sua ausência era Cody. Cassiel não conseguia vê-lo em lugar nenhum, e temia que ele pudesse fazer alguma bobagem. O militar sabia que o próximo da lista era Ulysses, porém não conseguia deixar de ficar preocupado. Não era normal que um irmão não comparecesse ao funeral da própria irmã.

O General Armstrong levantou-se e pediu licença para falar. Subiu até ao lado do caixão e começou:

— A morte jamais é uma ocasião a ser celebrada. Sempre me entristecem notícias de falecimento, sejam de pessoas conhecidas ou desconhecidas. Quando o falecimento em questão é de um de nossos irmãos de farda, porém, essa tristeza é ainda mais profunda. Todos nós morremos um pouco ao perdermos alguém como a Tenente Morrison. Em vida, foi uma mulher de caráter incomparável e coragem a toda prova. Morrison salvou mais vidas do que se pode contar, e não apenas como parte de nossa corporação. Ela dedicou-se a uma jornada duplamente nobre: além de proteger o país, escolheu a louvável profissão de médica, podendo salvar ainda mais vidas. Alguém como Marissa Morrison jamais morrerá enquanto os corações daqueles que ajudou em vida ainda baterem. A América perde uma heroína, mas com certeza todos nós ganhamos um exemplo a ser seguido. O exemplo de uma mulher forte, generosa e honrada.

E então ele exclamou algumas ordens. Quatro dos militares seguiram em marcha na direção onde estava o caixão com a bandeira dos Estados Unidos ainda posta em cima dele. Prostraram-se dois de cada lado. O general exclamou:

Aim! Fire!

Os fardados restantes apontaram os fuzis para o alto e atiraram em uníssono. Fora mais de quinze balas disparadas ao mesmo tempo.

Aim! Fire!

E eles deram outro tiro.

Aim! Fire!

Então os quatro militares que estavam ao redor do caixão pegaram a bandeira, cada um segurando em uma ponta. O General gritou outra ordem e todos os militares abaixaram seus fuzis. Um deles, que segurava uma corneta, começou a tocá-la. O som era melancólico, e o quarteto segurava o pano estendido de maneira solene. Quando ele terminou, os outros dobraram a bandeira de forma metódica e conjunta até ela ficar na forma de um triângulo perfeito. Um dos homens apresentou o objeto ao General, que concordou com uma continência. O soldado então se aproximou de Erika e lhe entregou, dizendo:

— Em nome do presidente dos Estados Unidos, do Exército dos Estados Unidos da América e de toda a nação, por favor, aceite essa bandeira como símbolo de nosso apreço pelo honorável e leal trabalho da Tenente Marissa Morrison.

Erika, que estava com Jamal no colo, agradeceu o gesto, ainda chorando.

Durante toda a solenidade, a partir do momento do discurso do General, Cassiel ficou em posição de sentido ao fundo. Quando a corneta foi tocada, ele prestou continência e manteve-se de maneira sóbria durante todo o tempo, sem derrubar lágrima alguma. Queria ter podido disparar os tiros ao lado dos outros homens, mas fizera a sua parte.

Olhou para o lugar onde Crystal e sua mãe estavam, e só encontrou Tina. A garota havia sumido. O rapaz seguiu sem rumo, procurando-a pelo jardim.

x-x-x-x-x

Ulysses estava sentado em frente à lápide de Themis. Ele usava um terno cor de grafite bastante justo e uma gravata borboleta preta.

Olhou distraidamente para o lado e viu um coelho correndo pela grama. Lembrou-se de uma memória perdida de sua infância.

Era algo da época em que ele ainda brincava na rua, em terrenos baldios. Durante uma brincadeira de esconde-esconde encontrara um coelho morto, com a barriga aberta e as vísceras pra fora. Era a primeira vez que tinha contato com um cadáver. Compreendeu que o bicho estava morto, mas não conseguia entender porque aquilo havia acontecido.

E então sua memória desapareceu. O que aconteceu com o coelho? Eu contei isso pra alguém? Tudo era escuro, e o rapaz não conseguia se lembrar de mais nada. Desistiu de pensar naquilo e voltou a focar seu pensamento na pedra que estava no chão.

1990-2013

Uma vida curta, ele pensou.

E então sentiu um baque, com alguém pulando em cima dele. No exato mesmo instante o rapaz bateu a cabeça na lápide com força, sentindo o sangue imediatamente escorrer de sua têmpora.

O barulho do tiro foi a última coisa que ele ouviu, embora soubesse que havia acontecido antes.

Crystal se levantou de cima dele ainda respirando forte. A garota sentou-se na grama e balançou a cabeça.

— Oh, você se machucou. — Foi tudo o que ela disse.

Ao fundo, o General exclamava ordens e um dos militares parecia gaguejar. Tudo acontecia em câmera lenta. Um tiro acidental. Era a minha vez de morrer. Ela me salvou. Ulysses estava estático, sem saber o que fazer ou o que dizer. Cassiel já corria na direção dos dois, percebendo a cena. Então foi por isso que ela desapareceu, o militar pensou.

— Você salvou a minha vida. — O jornalista vocalizou.

A garota explicou:

— Eu não sei o que houve. Eu senti. Eu sabia que algo estava errado. Você não percebeu os sinais, Cassiel?

O militar deu com os ombros, assustado:

— Isso é um funeral. Os sinais estão por todos os lados.

Ulysses pediu licença e disse que precisava ir embora. Despediu-se dos dois e saiu em disparada, correndo numa velocidade fascinante. O casal observou a sua partida de maneira um pouco confusa. Atrás deles, todos os militares já haviam ido embora, restando apenas os amigos de Marissa e Erika. Mesmo de longe o rapaz pôde ver que Tina conversava calmamente com a mãe de Erika, enquanto um homem desconhecido consolava Jamal. Erika estava sentada de mãos dadas com o pai e em silêncio.

Cassiel ajoelhou-se na grama, exausto. Abaixou a cabeça e deixou as lágrimas caírem em sua farda. Crystal abraçou-o por cima, beijando o topo de sua cabeça. Tentou se acalmar, apesar de a adrenalina estar correndo por suas veias por conta do ocorrido com Ulysses. Os dois ficaram naquela posição por algum tempo.

x-x-x-x-x

Dentro do carro de Erika, no tocador de CD, a música dizia:

I decided long ago never to walk in anyone's shadows

If I failed, if I succeed, at least I lived as I believed

No matter what they take from me they can't take away my dignity

Because the greatest love of all is happening to me

I found the greatest love of all inside of me

Cody nunca gostara de Whitney Houston, mas naquele momento ele nem mesmo prestava atenção na música. Segurava o pacote de plástico com o pó branco de maneira trêmula. Era a primeira vez em anos que tinha um desses em suas mãos.

O carro estava estacionado em uma rua deserta qualquer. Ao lado dele estava um enorme caminhão, com uma carreta pesada e cheia de verduras. Ela estava presa por grossas fitas de borracha preta. O rapaz nem mesmo reparara neste detalhe. Só precisava de um lugar deserto.

Vendera as joias de Marissa para conseguir o dinheiro. Não tinha ideia se elas tinham algum valor emocional, mas ela estava morta, não se importaria. Para Cody, nada mais importava.

Em sua mente, tinha flashbacks. Lembrava-se de uma ocasião em que empurrou a irmã com tanta força que ela chegou a quebrar o braço. Marissa jamais o punira por aquilo, nem com palavras, nem com atitudes. Na mesma semana foi em uma delegacia pagar sua fiança e tirá-lo de lá, ainda com o braço engessado. Na ocasião, ele fora preso por tentativa de furto. Ela não merecia. Não é justo.

Cody arrancou com brutalidade o espelho que ficava em cima do banco do carona e colocou-o sobre o painel do carro. Ele então despejou uma pequena quantidade do pó branco e ajeitou a carreira de cocaína. Em seguida abaixou-se e aspirou a droga.

Do lado de fora do carro, o motorista do caminhão acabava de chegar. Olhou distraidamente para o lado e viu a cena. De início se assustou, procurando rapidamente as chaves do veículo em seu bolso. Abriu a porta e entrou. Lá dentro, uma imagem de Nossa Senhora balançava no retrovisor. O homem fez o sinal da cruz e colocou a chave no motor.

Ouviu um estalo e então viu quando uma cabeça de repolho caiu em cima do capô do carro onde estava o rapaz drogado.

A carreta tombou de uma vez só, num baque forte. As verduras se espalharam pela rua. Cody nem ao menos sentiu a dor: seu corpo foi prensado com força, sendo que o rapaz se tornou apenas uma massa vermelha disforme no meio da lataria do carro.


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Notas finais do capítulo

Como sempre, algumas explicações e comentários:1) PEEH DO CÉU NÃO ME MATA ♥3333 Eu fiz o possível para que a morte de Marissa se tornasse, durante o capítulo, a morte com o final mais digno de todos, afinal a personagem merecia. Eu sei que não preciso ficar me justificando, mas como você é meu amigo, farei isso: era necessário. Acredita em mim, não me mata :'(2) Murutucu significa "coruja", é uma espécie de apelido que os amazonenses dão pra ave. SIM, é uma palavra da NOSSA língua! Achei esse título apropriado porque Erika e Marissa estão em um restaurante brasileiro, entre outros fatores. 3) Não sei se vocês notaram a referência da música da Whitney, desde o capítulo passado. Entre as hipóteses da morte dela está uma overdose de cocaína (que teria causado o afogamento acidental). Achei que ficaria um sinal bacana pra morte de Cody. 4) Eu tive que pesquisar MUITO pra escrever a cena do funeral da Marissa. Eu não tinha ideia de como era um funeral com honras militares, então tive que ir atrás. Orgulho-me de dizer que ficou o mais verossímil possível!Enfim, é isso. Acho que o capítulo 9 demorará bem menos. Abração :D



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