A Elfa Escarlate escrita por Koda Kill


Capítulo 30
Poesias do espectro




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A noite envolvia a floresta em uma penumbra, lançando sombras longas entre as árvores antigas. Eu caminhava lentamente por entre os arbustos, encarando as sombras que como dedos longos e acusatórios  apontavam na minha direção. Na trilha escura, meu pensamento ia longe e eu não tinha nenhuma pressa para chegar. Como eu era tola, insistia em pensar.

Apenas a luz tímida da lua se infiltrava por entre as folhas. Me convidando a voltar, me chamando com um brilho etéreo. Eu não queria voltar. As palavras cortantes de Alais ainda ressoavam em minha mente. Era tão doloroso encarar as verdades por trás de tudo aquilo. Eu lutei tanto contra isso. Me esforcei tanto para empurrar para o fundo da mente. Tudo voltou para me assombrar como se eu não tivesse feito nada.

Era como uma inundação, impossível de secar com uma toalha. Olhei para cima com a visão borrada, tentando focar nas nuvens que, traiçoeiras, escondiam o brilho do céu. Respirei fundo enquanto espantava as lágrimas e as emoções que me assombram como velhas conhecidas. Sentimentos que me acusavam de patética, covarde, desinteressante, insignificante, sem valor...

De noite a floresta parecia criar vida, respirando ao meu redor enquanto meus passos silenciosos marcavam a folhagem macia. Olhei para os meus pés que se recusaram a continuar e voltar para o instituto. Será que eu deveria fugir agora e viver na floresta sozinha? 

Talvez fosse mais fácil assim, simplesmente desaparecer. Existiam feéricos que viviam reclusos, selvagens. “Bem que eu queria” foi tudo que Yuri respondeu sorrindo. Dava pra ver que ele não levou a sério. Eu queria explicar que estava falando sério. Dizer que poderíamos fugir para a floresta e viver longe de todos os problemas. Mas não pude. Eu deveria ter ficado de boca fechada. 

Quando levantei a vista novamente para continuar o trajeto meu coração parou. 

TUM-TUM

Meu corpo inteiro se paralisou enquanto o clima ficava mais frio ao ponto de sair fumaça da minha boca. Uma névoa espessa serpenteava pelas árvores e a floresta subitamente ficou em silêncio. Algo não humano me encarava na escuridão. Uma figura sombria me olhava intensamente a menos de um metro de mim, flutuando lentamente na minha direção. Perto demais para eu escapar a tempo.

TUM-TUM

Uma presença sinistra e pesada que parecia sugar todo o ar ao redor, pairando entre o tronco das árvores. Seus contornos eram vagos e uma luz fantasmagórica brilhava dentro dos trapos que a criatura parecia vestir. O silêncio da floresta, que um segundo atrás tinha tanta vida, era ensurdecedor. Todo o sangue parecia ter sumido do meu corpo. Will estava certo sobre eu me distrair. Sua voz ecoava na minha mente: você está morta.

TUM-TUM

Não conseguia me mover, até respirar era difícil, quase como se o ar tivesse ficado rarefeito. O frio chegava a doer nos ossos. O espectro deslizou em minha direção com sua voz ecoando na noite. Não devia andar distraída pela floresta à noite. Ele estava certo. Não acredito que meu último pensamento vai ser sobre aquele babaca.

— Luna, filha da lua… - Todos os cabelos do meu corpo se arrepiaram ao escutar aquela voz. 

Tão áspera que parecia uma lixa na pele. Chegava a machucar os ouvidos. Como ele sabia o meu nome eu não sei e não tinha certeza se queria saber. A voz de Will repetia sem parar na minha cabeça: você está morta. Tive vontade de choramingar. Foi necessário toda a minha força para conter um gemido de medo.

— O-O que você quer de mim? - Quão irônico seria morrer pelas mãos de um espectro depois de me preocupar tanto em ser pega com um humano. Parece bem a minha cara.

— Você deseja a aliança eu posso ver 

— Do que você está falando? - Minha voz era quase um sussurro choroso e sem foça. O vazio dentro da capa parecia olhar dentro da minha alma, como se estivesse investigando cada quarto da casa, lentamente e vendo toda a sujeira que existia por baixo da superfície. Me sentia invadida, exposta e muito, muito vulnerável.

— Na dança das sombras entrelaçado destino… - É, com certeza eu estou mortinha da silva. Um espectro recitando poemas para você não pode ser coisa boa. - Das cinzas do esquecimento um brilho ancestral…”

Será que ele iria tentar tomar meu corpo? E do que diabos ele está falando? Não conseguia entender. Só queria me encolher e desaparecer. A tristeza que eu estava sentindo parecia aumentar a cada segundo, a esperança se esvaindo, me deixando indefesa, sem vontade de reagir.

TUM-TUM

Esperei pela morte. Por um lado eu me sentia aliviada. Não teria mais que me preocupar com meu segredo ou ser pega. Não teria que me preocupar em Yuri ter suas memórias roubadas. A floresta crepitava com o gelo que se formava, azul e vazia, como eu me sentia. Toda vida havia fugido, todos os bichinhos, até mesmo a brisa que soprava momentos antes de o espectro aparecer. Minhas mãos já estavam dormentes de frio. 

TUM-TUM

Minha mão anestesiada agarrava o cabo da minha adaga, mas eu não conseguia reunir coragem para reagir. Talvez segurasse mais como uma forma de me reconfortar, o último resquício da minha mãe, me acalentando antes da morte. Fechei os olhos e esperei. Pelas pálpebras fechadas notei uma luz. É agora, ele se aproximava. Você está morta

TUM-TUM

Eu estava tão paralisada de medo que até respirar era difícil. Eu só não queria ver. Não queria encarar a chama crepitante do espectro e ver minha vida passar pelos meus olhos. Uma coruja piou solitária. Os ruídos pareciam voltar lentamente e o frio passava. Só percebi que estava prendendo a respiração quando abri os olhos e, vendo que estava sozinha novamente, expirei todo o ar.

Não sei porque milagre eu estava viva, mas isso com certeza motivou meus pés a voltarem ao instituto bem rapidinho. Sabe-se lá o que mais estava solto pela floresta. Eu que não queria descobrir. Minhas mãos tremiam enquanto minha mente guardava aquelas palavras. Destino entrelaçado… Brilho ancestral? Eu sentia que era importante, sabia que precisava descobrir do que se tratava. Nem conseguia imaginar por onde começar. A não ser talvez pela biblioteca.

Iria cuidar disso depois, primeiro eu tinha que dar um jeito de entrar no instituto. Não queria arriscar ficar ali mais tempo depois desse encontro inesperado, então preferi me arriscar na guarita. Quem sabe eu dava sorte de encontrar Gil por ali. 

— Nossa você está com uma cara horrível. - Falou Will cruzando os braços e com isso fazendo um barulho metálico da armadura se chocando.

— Obrigada professor, o senhor também. Ah, espera, essa é sua cara normal. - Claro, porque eu esperaria algo diferente da minha sorte. Se o encontro com o espectro servia de base, minha sorte estava péssima.

— Posso saber o que está fazendo a essa hora fora do instituto? - Questionou ele se inclinando na minha direção. Me mantive distante. Tinha medo que ele sentisse o cheiro do humano ou qualquer coisa que pudesse me entregar.

— Fui no Ronneys. - Ele estreitou os olhos amarelos com um gato.

— É mesmo? - Senti a tensão no ar. Será que ele sabia que eu estava mentindo? Não arrisquei falar mais nada. Me esforcei para sustentar seu olhar. Isso não era tarefa fácil, parecia que ele queria perfurar meu crânio com o olhar. - Bom, como você sabe ainda faltam várias horas para o portão abrir. 

— Vai me deixar sozinha na floresta? - Fechei as mãos em punho tentando evitar que elas tremessem demais. Nem a pau que eu voltaria em direção ao espectro.

— O que foi? Está precisando de ajuda? - Perguntou ele debochado. Senti meu sangue ferver de raiva. Não acredito que ele vai mesmo me deixar do lado de fora depois de todo aquele discurso pra eu não perambular por causa dos trolls só porque eu não queria pedir sua ajuda.

— Esquece. 

Acho que ainda preferia o espectro. Pelo menos a morte seria rápida. Eu acho. Virei as costas para ele e olhei para a floresta pensando no que eu faria. Talvez devesse mesmo ir ao Ronneys, pelo menos ia colaborar com minha história. Tinha dado apenas alguns passos quando Will pigarreou.

Queria ir embora, mas o som do portão abrindo fez meus pés pararem. Vamos ser francos, eu não queria continuar ali fora. Will apontava para o caminho me convidando a passar. Babaca. 

— Não se atrase para a detenção - Cantarolou ele minha punição. 

Bufei frustrada e disfarcei um suspiro de alívio ao entrar nos portões. Nem olhei na sua direção, apenas o ignorei. Minhas mãos ainda estavam trêmulas, eu não arriscaria ficar ali por muito tempo. Quis avisar para ele, quis dizer para ele tomar cuidado. Mesmo assim fiquei calada e fui embora.

— Olha só quem resolveu aparecer. - Disse Ava quando eu entrei.

— Oi pra você também Ava. - Respondi jogando a mochila no chão e caindo na cama.

— Onde você se meteu? Estava preocupada com você. - Ela parecia fula da vida, só que de um jeito calmo e assustador. Se eu já não estivesse cagada de medo do espectro teria ficado nervosa com certeza.

— Ronneys. - Resmunguei sem olhar em sua direção.

— É mesmo? Porque eu fui até lá e não te achei. - Levantei de supetão me apoiando nos cotovelos e a encarando.

— Você foi no Ronneys?! - Perguntei surpresa. Era uma cena que eu nem conseguia imaginar.

— Os meninos me contaram sobre Alais. Eu estava preocupada. - Respondeu ela parecendo chateada. 

A vergonha e a tristeza fizeram meu rosto esquentar. Não consegui mais sustentar seu olhar. Não queria pensar sobre isso. Queria fingir que nada aconteceu. Não sei como eu conseguiria encarar Gil e Yuri novamente.

— Não quero falar sobre isso.

— Parece que você não quer falar sobre nada. - Disse ela magoada. 

Não consegui olhar em sua direção. Ela não estava errada. Nem certa também. Me encolhi quando ela saiu batendo a porta. Acho que para alguém que gosta tanto de informações o que mais machuca é ficar no escuro sem saber de nada. Suspirei frustrada esfregando o rosto. Aquilo era demais pra mim. Demais. Chorei de exaustão até que minhas forças se esvaíram completamente e eu adormeci.


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