Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 4
Prémio.


Notas iniciais do capítulo

"O meu coração frívolo
é a única coisa que bate.
Por vezes, desejo que alguém
me encontre.
Até lá, caminho sozinho."
Green Day, Boulevard Of Broken Dreams



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Um rolo de fumo saía do telhado esventrado de uma casa situada à esquerda, onde havia um largo com um fontanário. As gentes corriam agitadas para o local e já havia um grupo de seis homens a carregar baldes de água que enchiam na bica do fontanário e que levavam até à casa para debelar o incêndio.

A confusão aborrecia-o, na mesma medida que o irritava. Parou a alguns metros do ajuntamento de pessoas, que tentavam perceber o que tinha acontecido, que ajudavam uma mulher lavada em lágrimas, que tratavam das chamas que consumiam a casa do pastor de cabras que tinha um nome qualquer que ele não se recordava mas que, por usar uma barbicha grisalha na ponta do queixo, era conhecido pela alcunha de Bode, o que chegava a ser apropriado tendo em conta o seu ofício.

De mãos metidas nos bolsos das calças de ganga, semicerrou os olhos a analisar a situação com a ajuda da sua perceção apurada. O que sentiu foi algo obscuro, um novelo emaranhado e peganhento que se recusava a desenlear. Havia mais do que um simples incêndio provocado por uma misteriosa explosão, gente desesperada e aflita, histeria do mulherio, agitação dos homens, assombro da criançada. Havia outra coisa qualquer ali, que lhe estava a baralhar os sentidos e a deixá-lo arrepiado. O peso no peito voltou.

Não se deixou impressionar, porém. Descartou o fútil, com um sacudir de ombros, decidido a enfrentar o que se lhe apresentava. O seu sonho esquisito tinha-o atraído até aquele momento, compreendera. Ficou tenso e sentiu os músculos dos braços endurecerem. Mas exteriormente continuava impassível e com o mesmo fastio de quando saíra da taberna.

Varreu o cenário de caos com os olhos, girando o pescoço da direita, onde se situava a taberna e de onde tinha vindo, para a esquerda, onde estava a casa a arder e o rolo de fumo. Um bando de galinhas passou esbaforido, cacarejando. Escutou um grito estridente e resolveu aproximar-se mais, continuando com as mãos metidas nos bolsos.

O grito repetiu-se. Os homens com os baldes recuavam, as mulheres agarravam nos filhos e desatavam numa correria para fugirem dali. Ele esgueirou-se pela multidão e estacou, atravessado pela sensação de lhe terem arrancado o coração.

Viu-a.

Retirou as mãos dos bolsos.

E ela também o viu.

Os olhos eram iguais àqueles que ele tinha visto no sonho, dourados como as tranças que estavam agora mais despenteadas. O sangue escorria por umas das pernas alvas dela e pingava-lhe aos pés, junto às botas peludas. Continuava ferida. Mas, ao contrário do sonho, estava agitada e arquejante, fitando-o com um desespero furioso, vigiando, mesmo que não parecesse, o movimento em redor. Um animal acossado.

Ganhou mais uma dúvida e colecionou-a junto com as outras, que já se acumulavam na sua mente. Afinal, a criatura que ele procurava sempre tinha sido recolhida por alguém daquela aldeia, mas não compreendeu por que dúbia razão o Bode tinha escondido o acontecimento de todos, guardando-a em segredo na sua casa do largo do fontanário, a tal ponto que nem a dona da taberna sabia disso, ela que se orgulhava de conhecer todos os mexericos do lugar e arredores. Talvez por o Bode ter percebido, mesmo sem poder ler o ki, que aquela não era uma criatura como as outras. Mas ao contrário dele, condoera-se ao ponto de a ter resgatado do santuário da floresta. E talvez não tivesse tido um pesadelo na noite anterior. Em vez disso, ficara com a casa destruída. No saldo das coisas, ele ainda levava vantagem, pensou divertido. Mais valia um pesadelo que a sua cabana queimada.

As coisas começavam a fazer sentido. Fora a criatura que provocara a explosão para poder escapar da casa onde estava e que resultara em toda aquela confusão e que haveria de ser o assunto principal naquela aldeia nos próximos sete meses.

E o que iria acontecer a seguir, também.

Um animal acossado, sem qualquer dúvida, pois ali estava novamente o ki da corça. Ele sentia-se cada vez mais tenso e ela eriçava-se toda por compreender que ele estava a enfrentá-la com a intenção de querer dominá-la. Um animal acossado e selvagem.

Ela arreganhou a boca, exibindo ameaçadora toda a dentadura, branca como leite, com os dentes caninos mais desenvolvidos que o normal.

Ele preparou-se, acumulando a sua energia na mão direita.

Ela, curiosamente, percebeu-lhe o gesto e quis antecipar-se. Abriu as pernas, fincou as botas peludas no chão, juntou as mãos diante de si, braços bem esticados. Dobrou os dedos e entre estes começou a surgir uma luz amarelada. Um ataque energético.

Ele foi mais rápido. Encheu uma pequena esfera azul na mão direita e disparou.

Ela desapareceu numa nuvem de fumo.

Mais gritos. Começava a ser insuportável estar no meio daquela gritaria. Ele expirou o ar que tinha guardado no peito, aliviando a tensão. Enquanto se aproximava da criatura caída no chão sem sentidos, descobriu o Bode entre o grupo dos homens que carregavam os baldes de água. Tinha os olhos esbugalhados, estava pálido e assustado.

– Levo-a – disse ele, em jeito de explicação. Acrescentou com um meio sorriso: – Pelos vistos, não têm capacidade de tratar de alguém como ela.

Agarrou na criatura pela cintura e com esta presa debaixo do braço, como uma trouxa de trapos velhos, sem qualquer cuidado ou atenção, pois a maldita não merecia nada disso já que tentara atingi-lo com um ataque energético, levantou voo, deixando os pobres aldeões ainda mais confusos e estarrecidos.

Dirigiu-se para a cabana das montanhas.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Despertar.



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