Deuses e Diamantes escrita por André Tornado


Capítulo 3
Procura.


Notas iniciais do capítulo

"Pergunto-me se permanecerei
Jovem e irrequieto.
A viver assim, aborreço-me menos.
Quero retirar-me quando
o sonho morrer."
Nelly Furtado, All Good Things (Come To An End)



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Na aldeia do vale próximo havia uma taberna que servia refeições quentes, bebidas retemperadoras e dois dedos de conversa. Era frequentada sobretudo pelos aldeões, mas também apareciam por lá turistas em excursões de verão, viajantes ocasionais que procuravam aquelas montanhas para caminhadas pelos trilhos florestais e camionistas que transportavam as mercadorias pela autoestrada que passava na orla da cadeia montanhosa. Era um lugar animado, quente e acolhedor, com um ambiente familiar que agradava à clientela.

Ele abriu a porta e escutou o habitual tilintar do sino que estava pregado nesta. Um aviso sonoro de mais um cliente, que tanto servia para alertar a dona do estabelecimento como quem já se encontrava lá dentro. Havia sempre um ou outro olhar indiscreto que avaliava com atenção quem chegava.

Sentou-se ao balcão e pediu uma caneca de cerveja preta morna e uma dose de guisado de coelho-bravo. Quando não cozinhava na cabana e os dias em que cozinhava eram raros, vinha comer a sua refeição quente na taberna da aldeia. Uma única refeição por dia, sempre àquela hora, um pouco antes das onze da manhã. Nunca ninguém lhe estranhou o hábito ou lhe fizeram perguntas indiscretas. Tinham-no como um caçador eremita da cabana, reservado mas amistoso e descontando o olhar escrutinador dos venerados anciãos da aldeia, nunca o incomodaram para lá daquilo que ele considerava insuportável. E os limites dele não eram muito alargados.

Outro dos pontos fortes da taberna era a comida que serviam, sempre divinamente bem temperada e cozinhada no ponto. Os guisados de caça eram a especialidade e ele apreciava muito o de coelho-bravo. Pedia-o sempre e quando não havia, franzia a boca de uma maneira que fazia assustar o empregado que o atendia, que corria a chamar a dona que lhe sorria em resposta, às vezes, quando estava numa de ser mais ousada, agarrava-lhe na mão que ele tinha pousada no balcão e explicava-lhe com brandura o que tinha na ementa para o dia. E ele fingia que aceitava a explicação por causa da atenção extraordinária.

O interior da taberna era sombrio, num tom alaranjado conferido pela lareira que estava permanentemente acesa, quer fosse inverno ou verão. Apesar de haver luz elétrica na aldeia e em alguns pontos das montanhas, como na clareira remota onde se situava a sua cabana, a iluminação interior da taberna era feita com recurso a candelabros onde ardiam milhentas velas. Mas isso fazia parte do encanto do lugar, tornando-o calorosa, transmitindo a todos aqueles que a frequentavam uma sensação agradável de conforto e de refúgio.

Por isso, ele fora até à taberna depois de ter regressado da floresta, não apenas para o costumeiro guisado de coelho-bravo, mas também para sentir alívio de uma noite mal dormida e daquele pressentimento que persistia no seu peito, uma dor como se o tivessem socado no esterno.

Bebeu um gole de cerveja e quando o líquido lhe assentou no estômago, aqueceu-o e fê-lo distender os músculos, num relaxamento que lhe acalmou a irritação daquela manhã.

Ele não era dado a instintos, nem a premonições. Não se deixava influenciar por superstições ou pelas lendas locais, criadas para explicar temores antigos. E havia muito disso naquelas montanhas, que eram mortalmente perigosas de inverno e inclementes no verão, povoadas de animais perigosos para os humanos que as tinham escolhido como lar, onde sobreviver era sinónimo de ser o mais forte. Mas alguma coisa lhe alfinetava o raciocínio sempre que pensava nos eventos do dia anterior e, em sequência, da noite passada. Como se um pormenor importantíssimo se lhe tivesse escapado e ele fora incauto ao ponto de não se ter apercebido de tal no momento correto. Agora, o momento tinha passado, ele deixara-o passar, e estava a perder terreno para um inimigo invisível que ele não conseguia alcançar. E ele tinha de conseguir recuperar o que perdera, se queria suplantar o desafio proposto pelo inimigo. E, em última análise, derrotar esse inimigo.

Tinha de encontrar a estranha criatura ferida.

- Oi, bonitão…

Moveu os olhos do prato para o que se postava diante dele, sem mover a cabeça, pelo que ficou a olhar de baixo para cima. A dona da taberna interpelava-o.

- É o teu guisado preferido. O que é que se passa? Temos menos fome, hoje?

A mulher era roliça, ombros largos, uns seios generosos como dois melões firmes, tão grandes que era um mistério não se vergar ao peso destes e cair para a frente sempre que caminhava. Mas era desenvolta a caminhar, pelo que o peso dos seios devia ser compensado por uma coluna vertebral robusta ou um qualquer truque de equilibrismo desconhecido para ele. A cara da mulher era redonda, afável, constantemente sorridente, maçãs do rosto salientes e muito coradas, olhos pequenos e brilhantes, o cabelo aloirado apanhado num carrapito amarrotado, orelhas também pequenas e tão vermelhas como as maçãs do rosto, enfeitadas com duas esferas de ouro como brincos.

Ele fungou, apático, sem demonstrar qualquer tipo de reação à observação espirituosa. A dona da taberna assentou os braços no balcão, os seios vieram atrás, quase a saltarem para fora do decote daqueles vestidos desengraçados que ela usava e ele ficou a cismar com aquela linha cor-de-rosa que separava a alvura do seio esquerdo da do seio direito. Era impossível não cismar com aqueles melões firmes. O tom dela era em jeito de confidência:

- O que é que se passa, bonitão? Estás apaixonado?... Hein? Não me digas que uma menina marota te roubou o coração? Olha que já estou cheia de ciúmes.

- Sabes se encontraram alguém ferido na floresta?

A pergunta foi no sentido contrário ao interesse da mulher, pelo que ela endireitou as costas e os melões firmes recolheram-se para dentro do decote do vestido desengraçado, escapando às conjeturas momentâneas da parte lasciva da mente dele.

- O quê? Nestes últimos dias? – Indagou a mulher pensativa, torcendo a boca numa careta.

- Entre ontem e hoje.

- Hum… Não ouvi contar nada. Porquê? O que é que sabes?

Fixou-lhe um olhar gelado e a careta da mulher desfez-se.

- Pensava que era aqui que se sabia tudo.

O instante de tensão foi curto. A mulher estava habituada a qualquer tipo de resposta, a qualquer espécie de cliente, a desenvencilhar-se de qualquer sorte de sarilho. Era uma das sobreviventes daquelas montanhas. Sorriu-lhe e piscou-lhe o olho.

- Oh, bonitão. E sabe-se mesmo tudo na minha taberna. E se não ouvi dizer nada sobre o salvamento de alguém ferido, é porque não aconteceu.

- Hum…

- Agora, vais comer o meu guisado, porque pareces-me pálido. Ainda mais pálido do que costumas ser, bonitão.

Uma segunda piscadela de olho e deu meia volta, vociferando para um homem que acabava de entrar e que era um parente seu, acolhendo-o na sua casa daquela forma tão imprópria.

Ele bebeu outro gole de cerveja. Devagar, a assimilar a resposta da mulher lentamente no cérebro que se enchia de pequenas dúvidas, subtis, como pequenos mosquitos a se reunirem para um ataque a um mamífero de grande porte. Agarrou na colher de madeira, ajeitou o prato do guisado na bancada, rodando-o, a escolher o melhor ângulo para atacar aquela delícia gastronómica e começar, finalmente, a comer.

Encheu a colher de uma pequena porção, meteu-a na boca.

Começou a elencar as dúvidas, enquanto mastigava.

O ki da corça – por que razão era tão esquivo e como conseguia um animal fazê-lo aparecer e desaparecer?

Novamente, o ki da corça – por que razão sentira-o quando vira a criatura?

A criatura – por que é que estava ferida? E por que é que ele estava naquele local, como se alguma força o tivesse empurrado para ali, para que fosse ele a encontrá-la?

E se a criatura tinha desaparecido e se ninguém daquelas montanhas a tinha encontrado, então tudo levava a crer que ela tinha despertado e ido embora pelo próprio pé. Provavelmente, não estaria assim tão ferida.

E que tipo de influência o seu encontro com a criatura tinha tido nele próprio, para que o tivesse feito rebolar-se inquieto na cama, uma noite inteira?

E por que razão sentira o desejo imperioso de regressar ao local onde vira a criatura?

E mesmo que ela tivesse ido embora pelo próprio pé, estava ferida e, por isso, não andaria longe. E ele poderia encontrá-la, sentindo-lhe o ki? Todas as criaturas vivas emitem ki e não lhe era difícil pressentir as auras de cada uma, distingui-las e marcá-las. E ele conseguiria fazer isso, encontrar a criatura se seguisse o ki da corça?

Terminou o guisado. Depositou a colher, empurrou o prato ligeiramente e agarrou na caneca de cerveja. Pelo canto do olho descobriu, à sua direita, na parede por cima da janela redonda dos vidros embaciados – aliás, todos os vidros das janelas da taberna estava embaciados – a cabeça empalhada de uma corça macho que fitava o vazio com uns olhos mortiços. Sentiu um arrepio e ficou incomodado. Bebeu o resto da cerveja de uma assentada e pousou a caneca com um baque. Olhou intrigado para a cabeça empalhada, à espera que esta abrisse a boca, de repente, que os olhos cobrassem vida e que desatasse a responder a todas as suas dúvidas. Devia lá estar desde sempre, a taberna estava toda decorada com motivos alusivos à caça e à vida nas montanhas, mas só agora lhe prendera a atenção.

E saberia aquela triste cabeça empalhada o que lhe matraqueava o cérebro, para que fosse capaz de lhe responder?

O ruído ensurdecedor que enchia habitualmente a taberna calou-se subitamente quando se escutou, vindo do exterior, o som inconfundível de uma explosão. A dona levou as mãos ao ar e lançou um grito histérico:

- Mas o que foi isto, senhores?

Ele deu um salto do banco, antes deixando algumas moedas no balcão, ao lado do prato e da caneca vazia, retiradas do bolso do casacão e que pagava a comida e a bebida. Seguiu a trupe que saía aos encontrões da taberna para ver o que é que se passava lá fora, suficientemente afastado para escapar daquela excitação. Era raro acontecer alguma coisa naquela aldeia, pelo que qualquer evento invulgar era motivo de ajuntamento e de falatório. Enfiou as mãos nos bolsos das calças de ganga, indiferente ao que estaria a suceder, com um certo ar de fastio no rosto pálido, porque ele, definitivamente, não era um humano qualquer.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Prémio.



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