Jogo de Palavras escrita por Blitzkrieg


Capítulo 7
Capítulo 7: Xadrez Argumentativo


Notas iniciais do capítulo

Milhões de sinapses entre neurônios ocorrem neste momento. A minha percepção da realidade depende exclusivamente desses impulsos elétricos involuntários que ocorre neste momento em meu cérebro. Pensamentos, idéias, lembranças, sentimentos, consciência são exemplos do que essas conexões neurais são capazes de realizar. Durante a morte as sinapses deixam de ocorrer e os impulsos elétricos cessam silenciosamente. O que acontece com os pensamentos, as lembranças, os sentimentos e principalmente a consciência? Desaparecem? Não. Depende na verdade. Depende da capacidade de cada um em preservá-las. Cada um possui o seu meio. O meu é este. Estou imortalizando neste momento todos esses produtos das redes neuronais em funcionamento. As idéias e pensamentos ocuparão o mesmo espaço das lembranças, os mesmos sentimentos talvez sejam sentidos por outros e a consciência talvez sobreviva aqui, entre as palavras e suas possíveis interpretações projetadas nessas folhas. Os neurônios se tornam as palavras, as conexões se tornam as frases e os impulsos elétricos se tornam a interpretação. Desta forma, eis a minha consciência.



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Após o estudo, fomos jogar xadrez na biblioteca da casa. O pai de Ivan era apaixonado por livros de todos os gêneros, por isto tratou de montar uma biblioteca com exemplares diversos referentes aos seus variados gostos. Enquanto nos preparávamos para jogar, refleti se deveria relatar ao meu amigo, a estranha alucinação que se formara naquele dia no colégio; quando soltou aquelas palavras certeiras procurando interpretar meu ato juvenil perante os colegas das palavras venenosas.

 

Percebi que ele estava concentrado observando as peças, como se já estivesse planejando cada jogada antes mesmo do jogo começar. Era injusto jogar contra o Ivan, pois eu ainda era bastante inexperiente neste tipo de jogo. Esperei-o chamar a minha atenção, pois saberia que logo perceberia que eu estava silencioso.

 

- O que foi? No que está pensando? – perguntou-me, inclinando-se na cadeira, o som do ruído ecoou pelo extenso cômodo.

 

- Tive uma visão estranha hoje de manhã. – respondi, franzindo a testa e encarando seu olhar logo depois.

 

- Pode me contar enquanto jogamos. – suas palavras não assumiram aspectos extravagantes, simplesmente flutuaram ao seu redor como a maioria das palavras que eu enxergava. As alucinações extravagantes não chegavam a ser raridades, mas também não eram comuns; parecia haver uma condição para que elas se manifestassem.

 

- Hoje jogarei com as peças brancas. – provavelmente iria jogar sério desta vez comigo, pois na vez passada me deixou utilizar tais peças sem problemas. Mesmo relembrando que eu havia treinado bastante no computador, eu me sentia inseguro em enfrentá-lo.

 

Inclinei-me, procurando me concentrar para relembrar uma das inúmeras estratégias de jogo que eu havia pesquisado. Era um jogo difícil no meu ponto de vista. Claro que para avaliar o nível de dificuldade deste jogo em um determinado momento, era preciso conhecer as habilidades do adversário. Eu conhecia. Por isto o considerei difícil naquele instante.

 

Fiquei preocupado no momento sobre o tempo que iríamos utilizar durante o jogo. Uma partida com Ivan costumava demorar uma hora e mais uma porção de minutos. O tempo voava, mas a ansiedade pesava sobre meus ombros, impossibilitada de voar pelo seu peso. A ansiedade me dominava por saber que tinha um limite de tempo para permanecer ali. Meu adversário também sabia deste limite.

 

- Vamos começar. – anunciou Ivan. – Enquanto jogamos você me conta a sua visão, ok? - posicionou o dedo indicador de sua mão esquerda sobre o peão da E2 de seu tabuleiro.

 

- Está bem. – acenei positivamente com a cabeça.

 

O primeiro movimento do Ivan foi curioso: moveu seu peão da E2 para a ala E4. Tal movimento dava margem para o início de uma das estratégias das quais eu havia pesquisado.

 

- Naquele momento em que todos riram de mim por eu ter agradecido o sinalizador do colégio, você passou por mim e me disse algumas palavras, lembra? – respondi o movimento movendo o peão da ala E7 do meu tabuleiro para a E6, acabei ignorando o cavalo próximo deste peão por enquanto.

 

- Sim. Claro que me lembro. Percebi naquele momento que alguma alucinação havia lhe induzido a tomar aquela atitude. Não tive certeza como era tal alucinação, mas creio que minha frase lhe afetou de alguma forma. – disse Ivan, e logo depois posicionou seus dedos acima de seu cavalo da ala G1. – Moverei meu cavalo? – perguntou a si mesmo me ignorando e inclinou seu rosto um pouco para a direita. – Não... – sorriu. – segurou seu peão da D2 e moveu-o para a ala D4. – Sou canhoto, prefiro começar atacando pelo lado esquerdo.

 

- O quê? – fiz uma careta e em seguida assumi uma expressão séria tentando entender sua estratégia argumentativa. – Você é ambidestro.  Não tente me enganar. Aliás, morro de inveja por você conseguir escrever com as duas mãos, como você consegue? – soltei uma curta risada, envergonhado, por ter revelado tal coisa.

 

- Treino. – respondeu sem hesitar. – Basta você treinar durante 23 dias. Tente escrever com a mão que você sente dificuldade e logo irá perceber a diferença. Hoje eu sou canhoto, está bem? – ofereceu tal informação gentilmente, enquanto soltava uma risada divertindo-se com seu comentário. – Vamos, mova sua peça.

 

- Hum... – repousei meu cotovelo no “braço” da cadeira e apoiei meu queixo na minha mão direita que estava fechada. – Não sei por que você comentou isto. – refleti se moveria meu bispo. – Vou ignorar isso e vou contar o que eu vi hoje de manhã. Ah! – inclinei-me rapidamente para mover a peça. – Já sei! – movi meu peão da ala D7 para a ala D5.

 

 - Interessante. – provavelmente Ivan já havia percebido que eu iria iniciar o famoso “trocar de peças’’. – Gostei da jogada. – moveu seu cavalo da B1 para a C3 rapidamente, neste momento percebi que ele havia percebido a minha estratégia simples e com este movimento procurou se preparar.

 

- Ah! – recostei na cadeira. – Você percebeu?

 

- Lógico. – confirmou.

 

- Bom... – Tomei minha posição característica de reflexão. Com esta jogada percebi que o Ivan ameaçou o meu peão da D5, mas também percebi que ele ofereceu seu peão da E4. O jogo começava a complicar, ele me forçou a pensar e eu detestava isso. Parecia que o maior prazer de Ivan, tratava-se de me fazer raciocinar. – Eu enxerguei primeiro um tabuleiro de xadrez e o jogador que eu enfrentava era um espelho que refletia minha imagem. – somente depois de fazer tal comentário, percebi que se eu eliminasse o peão de Ivan que estava na casa E4 ele me atacaria com seu cavalo da C3. Que situação!

 

- Nossa! – exclamou, arregalando os olhos.

 

- Tem mais. – disse, e logo depois resolvi atacar de qualquer forma o peão dele da casa E4 movendo o meu peão da D5. Por alguma razão naquele momento, eu pensei que aquela peça estava me atrapalhando, por isto tomei tal atitude. Estranho não é? Aliás, o que é normal nesta história?

 

- Conte. – Ivan colocou a mão no queixo e depois ajeitou seu cabelo de cosplay do L. – Legal sua jogada.

 

- Legal?

 

- Vou atacar também. – moveu seu cavalo da C3 para a E4, atacando meu peão.

 

- Aiai... – suspirei por perceber que com certeza eu iria perder aquele jogo. – Depois de eu enxergar aquele tabuleiro, eu enxerguei um carrossel, e neste carrossel várias pessoas nuas brincavam em cima dos cavalos.  – me esforcei para ter uma visão futurista sobre aquele jogo de xadrez, mas não estava acostumado a raciocinar daquele jeito.

 

- Nuas!? – exclamou. – Essa alucinação foi muito estranha. O que será que significa? – indagou-me, como se eu fosse mais capacitado que ele de responder tal pergunta.

 

- Como vou saber? – movi meu cavalo da B8 para a D7 após tal pergunta. Procurei me defender ao invés de atacar e minha intenção era de fazer o roque para poder adquirir a defesa absoluta. – Os cavalos estavam vestidos com roupas sociais e essas roupas serviam perfeitamente neles.

 

- Seu pai estava de terno hoje não estava?

 

- O quê? Está chamando meu pai de cavalo?

 

- Não! – Ivan riu. – Talvez tenha alguma relação, sei lá. Não estou querendo formular hipóteses sobre suas alucinações agora.

 

- A visão aconteceu no colégio, antes de meu pai me buscar.

 

- É mesmo. – era raro ver o Ivan cometer mancadas como aquela. Pelo menos na frente das outras pessoas ele não as cometia. – Hum... – resmungou e logo depois moveu seu segundo cavalo da G1 para a F3 rapidamente.

 

- Não tem nenhuma opinião? – observei atentamente o tabuleiro, procurando elaborar uma estratégia, pois o roque não me pareceu ser útil naquele momento.

 

Estou me esforçando em evitar a palavra “comer” na narração deste capítulo, pois tal palavra carrega significados promíscuos que estimulam a imaginação. Ora, você não concorda comigo? Vamos fazer um teste. Uma palavra pode assumir diversos significados quando empregada de uma forma específica. Neste caso, estimularei sua imaginação a produzir imagens absurdas, mas não apenas com uma palavra e sim com sentenças inteiras que o farão imaginar situações ambíguas.

 

- Como disse antes, eu irei refletir sobre essas alucinações mais tarde. – disse Ivan.

 

- Está bem, não comento mais nada sobre as minhas alucinações. – movi meu cavalo da G8, logo depois de tal comentário, para a casa F6.

 

- Muitíssimo interessante. – Ivan se atentou em meu movimento, pela expressão dele pude perceber que estava cogitando se deveria comer o meu cavalo e daria o xeque no rei. Provavelmente a idéia de comê-lo era bem mais atrativa. Senti que seus dedos coçavam em tocar a minha peça para retirá-la do tabuleiro. Eu não o deixaria fazer isso, se ele quisesse comê-la eu mesmo a tiraria para fora.  – Comerei seu cavalo. – era inevitável realmente, mas não precisava anunciar tal coisa – Xeque.

 

- Oh! Que maldade! – retirei meu cavalo para fora do tabuleiro, fiquei triste por perder uma peça tão importante. O Ivan era inteligente, pela seriedade dele pude perceber que iria comer muito mais. – Sobre o quê vamos conversar agora? – comecei a refletir sobre a próxima jogada.

 

- Eu gostaria de chamar a Letícia para participar do próximo jogo. – olhou-me com um sorriso no rosto, como se quisesse me provocar com tais palavras.

 

- Não! – exclamei, era absurda a idéia, mostrar um jogo tão complexo como aquele para uma menina com a mente vazia como a Letícia não faria o menor sentido. – Espere eu salvar o meu rei. – como já tinha começado o troca-troca, resolvi comer o cavalo dele que estava na F6 com o meu da D7. - A Letícia é uma sonsa, ela não pode participar desse jogo Ivan! Sem falar que ela riria da cara da gente se explicássemos este jogo para ela e depois espalharia para todos em forma de piada.

 

- Você jogou bem. – recostou-se na cadeira. – Acho que ela tem habilidades para o jogo. – Ivan não podia afirmar ao certo se ela tinha habilidades para o jogo antes de testá-la, mas como qualquer ser humano, com certeza outras habilidades ela possuía. – Eu juro que um dia irei entender o motivo de você implicar tanto assim com ela. – dizendo tais palavras, me olhou com um olhar desconfiado. – Você...

 

- Não! Não é isso! – interrompi suas palavras de me constrangerem imediatamente. – Joga logo! – apoiei meu queixo sobre a minha mão fechada e virei meu rosto para a esquerda, desviando o olhar do acusador.

 

- Vamos ver... – disse após soltar uma ligeira risada, direcionando seu olhar logo depois de tais palavras para o tabuleiro. – Já sei. – moveu seu peão da C2 para C3.

 

- Tenho medo de ela me achar ridículo depois de você contar o propósito desse jogo. – balbuciei tais palavras emitindo um profundo suspiro depois.

 

- Não se preocupe. Não revelarei tal coisa.

 

- Muito obrigado. – direcionei meu olhar ao tabuleiro e perguntei para Ivan qual foi sua última jogada. Assim que ele me apontou o peão que havia movido, me inclinei para mover minha peça. Após refletir um pouco, decidi mover meu peão da C7 para C5 procurando induzi-lo a comer meu peão.

 

- Não adianta. Não vou comer seu peão. – moveu seu cavalo da F3 para E5. – Com este movimento eu me coloco a um passo á frente de dar xeque.

 

- Você irá mostrar o jogo pra Letícia? – indaguei e procurei analisar sua jogada. Acho que ele estava me dando seu peão para que eu pudesse comê-lo, mas se eu comesse seu peão ele me comeria com o seu na D4.  Acabei movendo meu cavalo da F6 para D7, a única coisa que me veio na cabeça no momento foi ameaçar o cavalo dele.

 

- Meu cavalo! – exclamou e depois riu. – Seu cavalo!

 

- Meu bispo! – não agüentei, por um momento achei que ele não havia percebido o meu bispo pronto para comer o cavalo dele se ele comesse o meu.

 

- Você irá sacrificar seu roque com isso sabia? Isto é, se eu comer o seu cavalo e você comer o meu com seu rei.

 

- Uhum.

 

- Então lá vou eu. – moveu o bispo da F1 para D5 ameaçando o meu cavalo.

 

- Briga de bispo. – movi meu bispo da F8 para E7.      

 

Continuamos com o jogo e como era de se esperar o Ivan acabou ganhando no final. Espero que você que esteja lendo esta história agora, tenha percebido como uma frase pode influenciar nossos pensamentos. Sei que parece inútil narrar tal coisa e explicar este detalhe no momento, mas juro que isto que acabei de fazer, ajudará a transformar a prática do jogo de palavras em algo verossímil. Veja o meu lado no momento, estou fazendo o possível para você se interessar nesta narração. Preciso deixar registrada a minha vida nestas folhas porque acredito que uma pessoa que deixa suas idéias registradas de alguma forma acaba adquirindo imortalidade. No decorrer desta narração, irei tentar brincar com as imagens que seu cérebro é capaz de projetar e tentarei fazer com que esta brincadeira acabe se tornando divertida para você.

 

Vamos ver... Que tal um exemplo do que consigo fazer a você apenas com as palavras? Selecionando as palavras corretamente, serei capaz de induzi-lo ou induzi-la a projetar em sua mente, imagens que não estejam de acordo com as frases que aqui escreverei. Duvida? Vamos fazer um teste bastante simples. Vamos lá: Preciso que você não pense em uma maçã. E agora, preciso que você não pense na cor vermelha. Ora, será que você fez exatamente o contrário? Acabou pensando em uma maçã e na cor vermelha ou talvez até mesmo em uma maçã de cor vermelha? Se sim, por que você fez isto? Escrevi claramente que não pensasse.

 

Vamos tentar outra coisa: Não se atente a coceirinha que você está sentindo agora mesmo no seu dedo mindinho do pé direito.  Não foque nesta coceirinha, por favor, mesmo que ela pareça expandir por uma boa região do seu dedo, não procure se distanciar da história e não deixe a coceirinha atrapalhar a sua concentração, pois a coceirinha não é importante. Sentiu a coceirinha? Ora, você não estava com esta coceirinha antes de eu lhe chamar a atenção para ela. Isto aconteceu porque o seu corpo agiu a um estímulo mental e este estímulo esta relacionado à palavra “não” e na repetição da mesma juntamente com a palavra “coceirinha”. Bom, isto pode ter parecido bobo para você, mas no decorrer da história você perceberá que essa pequena “bobagem” será a chave para o entendimento do meu problema. Não vou contar como descobri dominar e aproveitar as alucinações a meu favor no decorrer dos anos. Deixarei que você descubra por meio da narração. É possível que você esteja se perguntando agora como sei isto e a resposta é que eu conheço um psiquiatra que adora conversar sobre essas coisas comigo. Acho interessante. Você não acha?


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Notas finais do capítulo

Comentem por favor.