Garota De Papel escrita por Robs Moraes


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Depois de muito muito muito tempo, volto a postar. Resumidamente, alguns problemas me fizeram perder a vontade de escrever, mas resolvi voltar e agora a atualização vai ser frequente. Sejam bonzinhos (:



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Nos dias seguintes, passei a olhá-la ao acordar e antes de dormir. Durante quase uma semana, apenas a observava de longe, do meu quarto para seu apartamento, e durante as aulas. Ela não falava comigo, apenas sorria. Não vi mais o espelhinho de mão, ela devia estar apenas entediada no dia. Confesso ter ficado magoado. Esperava que Júlia viesse falar comigo, demonstrar algum interesse... Mas nada aconteceu. Odiava confirmar a razão de Luiza. Mas adorava alimentar a paixão recém-descoberta.

Júlia sempre deixava a janela fechada, mas metade da cortina aberta. Acordava dez minutos depois de mim e fechava a cortina, provavelmente para dormir mais. Júlia dormia de barriga para baixo na cama e amanhecia com os cabelos pretos no rosto. Bufava para soprar os cabelos, mas não dava certo. Júlia vestia pijamas para dormir. Um shortinho cor-de-rosa e uma camisa que parava em seu umbigo, com um desenho do Mickey num fundo branco. Júlia lia um capítulo de um livro todos os dias antes de dormir, depois de fazer as unhas. E uma vez, vi Júlia trocar de roupa. Foi rápido. Foi só a camisa, na verdade. Usava um sutiã azul com bolinhas brancas. Não cheguei a ver nada, porém. Abaixei-me, com medo de ser visto. Não podia deixá-la pensar que eu era algum tipo de tarado. Quando olhei de novo, a cortina estava completamente fechada.

E, mais importante, uma semana depois de me conhecer, Júlia veio falar comigo.

– Oi, vizinho – ouvi uma voz alegre cumprimentar atrás de mim, na saída da aula. Fiquei sem graça, então apenas sorri – Onde está a sua amiga?

– Luiza... Ela... Ela não pôde vir à aula hoje. Está gripada – era verdade.

– Me disseram que você é bom com roteiros. É verdade? – é claro que ela ia me pedir ajuda. Por que mais falaria comigo?

– Não, acho que não. Enganaram você, eu receio. Eu tenho bastante dificuldade com roteiros, sempre tive – era mentira. E ela sabia disso.

– Engraçado – ela mordeu o lábio e arqueou as sobrancelhas, como naquelas fotos onde se faz uma careta com intuito de ainda ser atraente – Porque me disseram que você já ganhou alguns desafios de roteiro aqui na faculdade... Dois?

– Sorte. Foi sorte, eu acho – tentei disfarçar. Não pretendia fazer os trabalhos para ela, por mais bonita que fosse. Eu sabia como terminava essa história.

– Ei... – ela abriu e fechou a boca algumas vezes, como se esquecesse o que ia dizer – Qual é o seu nome mesmo?

– Guilherme.

– Guilherme – ela repetiu – Eu não quero fazer de você meu escravo. Aliás, eu odeio que as pessoas fiquem fazendo as coisas para mim. Eu não quero que você faça nada para mim. Eu só estava pensando se você podia fazer uma pequena coisinha por mim.

Não pude deixar de me interessar.

– E o que seria essa coisinha?

– Me ajudar – ela respondeu de uma vez – Eu preciso de uma dupla para o trabalho. E, para ser honesta, eu não conheço ninguém dessa turma. Eu não quero correr o risco de escolher aleatoriamente e acabar ficando com alguém ainda pior que eu. Se você pudesse me fazer esse favor...

– Tudo bem – disse sem pensar – Quando você pode? Estudar, quero dizer.

– Quando você quiser – ela tinha um sorriso enorme. Aquele sorriso tão reto e branco que era quase monótono – Na minha casa, na escola, no parque... Na sua casa não seria uma boa ideia.

– Eu juro que eu não sou um psicopata que vai te atacar – me defendi, rindo.

– Eu nem tinha pensado nisso – ela olhou para baixo e riu da confusão – É que a sua amiga... Ela não está gripada? Eu prefiro estar o mais longe possível de gripes. Sério, você não quer me ver doente.

– Você fica feia quando está doente? – perguntei, duvidando. Depois percebi quão mal isso devia ter soado. Mas ela não disse nada, só sorriu e negou.

– Não muito mais que o normal – silêncio meu. Silêncio dela. Silêncio meu – Enfim, eu tenho que ir agora, eu tenho coisas para fazer. Você sabe. Vida de estudante é um pouco corrida sempre.

Concordei com a cabeça e segurei um sorriso amarelo no rosto. Ela me deu um pedaço de papel azul com um número escrito.

– Esse é meu telefone. Se quiser marcar para fazer o trabalho... Ah tanto faz, é só gritar da janela, não? – ela deu uma amassada no papel, acho que sem nem perceber, se despediu e saiu correndo. Não sabia para onde ela ia e nem o por que de tanta pressa. Mas agora que as coisas ficavam menos desconfortáveis, não queria que ela fosse. Luiza estava errada, pensei novamente. Júlia era legal. Um pouco diferente. Falava mais rápido do que qualquer pessoa que eu já tivesse conhecido. Sorria mais também. Mas não parecia tão assustadora ou manipuladora quanto soava na boca de minha amiga.

Nessa noite, fui recebida em casa com o barulho de Luiza tossindo, enrolada em um lençol na poltrona da sala.

– Está tão ruim assim? - recebi uma mexida de sobrancelhas como resposta - Eu vou fazer um chocolate para você.

– Não precisa. Eu não aguento mais chocolate ou café ou chá. Não têm gosto de nada mesmo. Como foi o dia?

– Normal. Aparentemente nós temos um trabalho de roteiro para fazer - avisei.

– Aparentemente?

– É, eu tinha esquecido - fui andando até a cozinha para pegar uma água. Não que a sala e a cozinha tivessem divisões tão concretas naquele apartamento minúsculo - Mas a Júlia veio falar comigo hoje e me lembrou.

– Já estão tão amiguinhos assim? Que ótimo – Luiza bufou - Você vai ser dupla dela então?

– Não sei... Você se incomodaria?- questionei receoso.

– Por que me incomodaria? Você é meu agora?

– Não, eu só pensei que... – parei de falar. Não valia a pena. Joguei-me no sofá e respirei fundo de olhos fechados. Quando os abri, Luiza me encarava.

– Eu não quero que você pense que eu estou te controlando, Gui –explicou, com calma – Eu não quero ser uma dessas escandalosas que fala “você não pode andar com ela”. Eu gostar dela ou não... Isso não importa. Se você quer ir lá, tentar ser o príncipe encantado dela... Boa sorte.

– Obrigado, Lu – não pude evitar um sorriso – Mas acho que ela já encontrou o príncipe encantado.

– Então você pretende ajuda-la sem nenhuma outra intenção? – sua pergunta foi interrompida por um ataque de tosse – Meu deus, nem implicar com você eu posso mais sem parecer que vou morrer.

Esbocei um sorriso.

– Enfim, isso vai ser interessante – concluiu e voltou a se enrolar em seu lençol na poltrona.

De fato, eu pretendia ajuda-la e apenas ajudá-la. O que não excluía totalmente o que pudesse acontecer no meio do caminho. Só estava tentando não pensar tanto nisso. Não parecia certo, em respeito ao seu namorado e tudo. Não que eu gostasse dele. Mal o conhecia, mas o estilo alternativo chamativo não ajudava meu conceito sobre ele.

Na terça, consegui chegar no horário para a aula. Vi Júlia entrando com seu namorado, vi-os se despedirem do lado de fora da porta e vi-a entrar sorrindo. Ela parecia gostar bastante dele. Não consegui evitar achar isso bonito. Júlia vestia um short de cintura alta, combinando com o clima calor constante e uma camiseta que parecia ter sido jogada sobre uma pilha de tintas diferentes.

– Bom dia – percebi-a sentar na cadeira ao meu lado.

– Bom... Bom dia – estranhei a atitude. Ela sorria, como sempre, e tinha os olhos cobertos por um delineador forte – A que devo a honra?

– Você é meu parceiro de trabalho, lembra? Eu acho que o primeiro passo para ter uma cena descritiva em uma semana é dar bom dia.

– Isso quer dizer que você vai ficar sentada do meu lado agora? – perguntei, me arrependendo em seguida de como havia soado.

– Se quiser, eu posso ir embora, sem problemas – ela se fingiu ofendida. Abaixei a cabeça rindo.

– Não, não, eu...

– Relaxa, cara – ela fez de novo. Aquele sorriso espontâneo e aquela mexida nas sobrancelhas – Nós já temos alguma ideia?

– Eu acho que discutir sobre o trabalho de um professor na aula de outro não é muito inteligente – aconselhei, fazendo sinal com os olhos à senhora que entrava em sala.

– Você pode me encontrar depois da aula então? – ela sugeriu, como eu esperava que fizesse – A gente vai para algum lugar, fazer o trabalho.

A professora pediu silêncio e concordei com ela. Confesso que nunca torci tanto para o tempo de aula passar rápido. O barroco, métodos de organização, gramática 1... E pronto, hora da saída. Luiza ainda estava em casa doente, então nem me preocupei em procura-la para dar explicações. Em vez disso, virei-me para falar com Júlia – dessa vez não foi necessário esperar a sala esvaziar.

– Para onde vamos? – quis saber.

– Surpresa –ela mordeu os lábios.

– Eu tenho que te falar... Eu nunca fui muito fã de surpresas – alguma coisa sobre não saber o que esperar sempre me dera arrepios e frios na barriga. Ela fez biquinho.

– Eu passei a aula toda pensando em algum lugar legal a que nós pudéssemos ir, Guilherme – meu nome soava bem em sua voz fina. Talvez isso tenha contribuído para seu trabalho de convencimento.

– Tudo bem – aceitei a derrota rápido demais – Aonde vamos?

– Surpresa – ela repetiu. Percebi o que tinha feito e me envergonhei. Seguimos pelos corredores da faculdade em algum silêncio enquanto eu remoía tudo o que pudesse ter falado de idiota, até sairmos pelo portão – Você não está falando. Por que você não está falando?

– Eu... – abaixei a cabeça e ri sozinho – Eu não sou exatamente uma pessoa cheia de amigos, então...

– Você fica com medo de falar comigo porque acha que vai dizer alguma coisa estúpida? – concordei – É, já passei por isso. Não se preocupe. Eu posso apostar o que você quiser que eu vou falar alguma bobagem antes.

Ri da possibilidade.

– Eu não saberia dizer o que eu quero – murmurei – E eu duvido que você seja menos habilidosa com pessoas do que eu. Quer dizer, todo mundo parece conhecer você. Você tem um namoradinho, vários amigos...

– Eu não tenho vários amigos, cara – ela rebateu, parecendo estar ofendida. Respirou fundo – Tá... Eu vou contar isso, mas você não pode rir, certo?

Reparei no caminho. Seguíamos uma rua calma e eu já podia ver onde ficaríamos: um parque marcava a esquina com a avenida. Não era muito grande, mas possuía árvores adoráveis e grama. Eu gostava de grama.

– Por que eu riria? – questionei.

– Hmm... Tudo bem. Uma vez eu fui numa festa...

– Todas as boas histórias começam assim – interrompi e ela mandou que me calasse fazendo biquinho.

– Eu fui numa festa e estávamos brincando de verdade ou desafio. Eu pedi desafio e uma amiga deu uma ideia adorável: você vai dançar as próximas cinco músicas em cima da mesa. Até aí tudo bem, desafio típico de festas. Mas eu já estava um pouquinho alterada... Você tem que lembrar que o ensino médio não foi uma boa fase para mim, eu andava com as pessoas mais bêbadas e burras que eu já conheci – eu estava adorando sua empolgação para contar as histórias, alterando a entonação para fazer os comentários.

– Então você foi dançar bêbada em cima da mesa... Por mais que não seja uma decisão louvável, eu não acho que isso faça de alguém famosa.

– É... – ela pressionou a mandíbula – Nessa época eu era da equipe de, não fala nada, nado sincronizado. E nesse dia eu tinha ido para a festa direto do treino.

– Como isso...?

– Espera – ela me cortou – Eu dancei em cima da mesa, ligeiramente torta, com um vestido de botões. Até que algum adorável ser humano presente resolveu equilibrar um galão de cerveja em cima da mesa em que eu estava. Resultado: eu caí, meu vestido agarrou em uma das cadeiras...

Vendo minha expressão de interrogação, ela explicou.

– Elas tinham aqueles negocinhos, aquelas pontinhas em cima do apoio, sabe? – Júlia falava mexendo as mãos. Bastante. – Então, meu vestido ficou na cadeira e eu fui para o chão. E o nado sincronizado?, você me pergunta. Eu não tive treino nesse dia porque a piscina estava sendo utilizada pelas preciosidades do pólo aquático. Não precisei nadar, não precisei tomar banho, fiquei com preguiça de tirar o maiô.

– Que lindo – imaginei a cena. Ela de maiô no meio de uma festa cheia. Não parecia tão ruim.

– Você prometeu que não riria – fez cara feia – Como a nossa apresentação era temática, meu maiô basicamente era uma versão imprópria do vestido da Branca de neve. Fim.

– Eu não vou rir – afirmei, me controlando – Eu só sempre presumia que o “Branca de neve” viesse de seu cabelo negro como o ébano, pele branca como a neve...

– É, é, todos vemos esse filme, cara. Enfim, passei algum tempo sendo chamada de Branca de neve, e essa história chegou em pessoas da faculdade que eram amigas de amigos meus.

– Você não tem amigos, então – constatei.

– Não, eu tenho. Com o tempo, nos conhecemos direito, eu me expliquei, eles falaram coisas do tipo “você é divertida” e “traz seu maiô pra dar uma volta lá em casa” – ela fez cara de nojo – O que vocês, garotos, têm com meninas comprometidas?

Chegamos ao parque. Sentamos na grama, embaixo de uma árvore. Suspirei. Como não conhecia aquele lugar ainda? Parecia tão calmo, no meio de uma cidade tão agitada.

– Surpresa – ela disse, calma.

– Foi uma boa escolha.

– Vamos trabalhar? – ela abriu a bolsa e pegou um caderno e uma caneta – Uma cena descritiva, cinco páginas... Sobre o que podemos falar?

– Se eu estou aqui pela técnica que você diz que eu tenho, pretendo abusar de sua criatividade – afirmei – Se a senhorita não se importar.

– A senhorita não se importa – ela sorriu – Saiba você, jovem, que eu sou uma artista.

– Uma artista? – entrei na brincadeira – Uau, eu sabia que conhecia esse rosto de algum lugar... Em que consistem suas obras mesmo?

– Três poemas sobre comida, uma redação sobre o futuro que eu levei muito a sério e um final alternativo para lost – ela estampou uma expressão orgulhosa – Todos trabalhos originais, muito obrigada.

Gargalhei, enquanto tinha a sensação de perceber cair num encanto. Eu conseguia sentir cada vez gostar mais daquela menina baixinha de boca vermelha. Era o jeito com que ela falava, indo de adorável a ríspido em segundos, eram os comentários, eram os sorrisos... Tudo era encantador.

– Eu acho que podemos falar sobre um encontro – ela sugeriu –É bem simples, fácil de desenvolver, mas funciona. Digo, um encontro é uma situação em que predomina linguagem corporal, e, se precisamos descrever alguma coisa...

– Viu? Ótimo. Agora que já me deu a ideia, pode ir embora que eu faço o trabalho todo sozinho como o escravo da senhorita princesa.

– Eu acho que eu devia ter pedido para você não fazer referências ao ocorrido em vez de simplesmente “não ria”. Risadas são menos inconvenientes que ser chamada de princesa o tempo todo.

– Eu acho que você devia – respondi, recebendo um soco no ombro – Você sabe que você é metade do meu tamanho, não sabe? Não vai doer, cara, não vai.

– Saiba você que eu já fiz boxe – ela mostrou muque, se é que aquele braço branco fino pode ser chamado de muque – Já bati em muito homem maior que você.

– Júlia. Trabalho. – ordenei. Ela mostrou uma expressão derrotada.

– Tudo bem. Ajuda?

– Antes de descrever as pessoas, você precisa descrever o lugar. Como seria o lugar?

– Um parque. Um lugar calmo no meio de uma cidade agitada. Algumas árvores tão altas que parecem competir com os prédios sobre quem alcançaria o céu primeiro – Roteiros não devem conter tanta subjetividade, pensei, mas não quis interrompê-la. Gostava de assistir a seus devaneios – A grama já precisa ser cortada, suas pequenas folhas enrolam-se formando um fofo tapete. Acima, vê-se o céu, completamente ausente de nuvens. O tempo, no entanto, não está tão quente. Um vento ocasional faz chover flores da maior árvore do parque.

A certa altura, fechei os olhos e fiquei apenas ouvindo. Sua voz não era a voz mais bonita do mundo. Era um pouco fina demais, aguda demais, esganiçada até algumas vezes. Mas não sabia se era o que falava ou como falava. Só sabia que fazia tudo parecer mais bonito do que realmente era.

– É uma boa primeira descrição do cenário? – ela questionou – Eu não sei fazer essas coisas de apresentações e...

– Foi ótima. De verdade – elogiei, provocando um sorriso confiante que inflou suas bochechas – Você pode descrever os personagens agora?

– Eu vou fazer o trabalho todo sozinha? – ela questionou. Neguei.

– Você pode dar as ideias agora e eu transformo em texto quando chegar em casa. Trabalho em equipe, lembra?

Ela aceitou.

– Os personagens? Certo... É um encontro, não? Então são um rapaz e uma moça. Sejamos heteronormativos – ela riu da própria piada e eu permaneci quieto – Um rapaz jovem, não podia ter mais de vinte anos. Cabelo preto, ondulado, dá aparência de que esqueceu de cortar. Ele não é alto, deve ter um metro e setenta. Mas isso não é problema: a garota com que está saindo mal passa do um metro e meio. Antes de descrevê-la, é melhor terminar de falar dele, não acha?

Concordei, sorrindo, esperando até onde sua descrição de cena se assemelharia à nossa tarde de estudos. Segurei o pensamento, no entanto, temendo que ela parasse se eu ousasse questionar.

– Certo. Ele é aquele tipo de garoto que pega a primeira roupa antes de sair de casa, não pensa muito. Até porque não espera encontrar ninguém importante em seu dia. Então ele vestia uma camiseta e calça jeans. Nada mais genérico. Tinha uma covinha do lado esquerdo da bochecha, que só aparecia quando ele sorria. As sobrancelhas, grossas, expressivas, cobriam os olhos que pareciam sem graça, mas apresentavam uma iluminação esverdeada se observados de perto. Ele precisa de um nome?

– Não, ele não precisa de um nome – respondi.

– Então é isso. Ele era um cara comum, normal, uma página em branco para ser a melhor ou a pior pessoa que você pode conhecer – ela concluiu.

– É assim que você me vê? – não consegui me controlar.

– O que?

– Uma página em branco para ser a melhor ou a pior pessoa que você pode conhecer – repeti. Ela sorriu de um jeito doce, quase mostrando compaixão.

– É assim que eu vejo todo mundo que eu conheço – respondeu como se fosse óbvio – Você não?

Não prossegui o assunto. Não me adiantaria. Tive medo de parecer presunção perguntar se ela me descrevia, depois de tantos detalhes subjetivos. Como ela poderia saber como eram meus olhos de perto, se nunca se aproximara para olhar? Que eu lembrasse, pelo menos... Pensar nisso não me levaria a nada. Forcei um sorriso neutro e pedi que continuasse.

– Você disfarça muito bem, nobre cavaleiro – ela observou, e, antes que eu pudesse responder, fingiu que não tinha falado nada – A garota. Ela é mais nova que ele. Se não for, parece. Tem cabelos pretos, sobrancelhas grossas, pele branca, olhos azuis, sardas, e boca vermelha.

Fiquei assustado com a velocidade que Júlia usou para descrever a garota da cena. Ela continuou.

– Vestia um... – olhou para suas próprias roupas – um vestido de passeio , coberto por um casaquinho e tênis. Tudo bem?

Que ela estava se descrevendo era óbvio. Mas, mesmo assim, por que o fazia de modo tão vago? Eu poderia descrevê-la cinquenta vezes melhor, falar sobre o formato de seu rosto, suas bochechas arredondadas, sua franja de lado, seus joelhos e ombros e sobre como cada ponta de seu corpo parecia formar-se de forma tão sinuosa que mal pareciam pontas. Tudo bem, ela nunca falaria desse jeito. Mas pelo menos podia falar alguma coisa a mais, ou explicar melhor.

– Existe uma coisa na língua chamada adjetivo, sabia? – comentei em tom irônico – Serve para atribuir características. Basicamente, descrever.

– Eu sei. Mas, francamente, essa personagem não me parece uma pessoa muito interessante.

Ela esperava que eu desse uma resposta. Fui direto.

– Você é interessante, Júlia. E você sabe disso, você sabe bem disso. Não precisa pescar elogios desse jeito.

Ela riu baixinho.

– Pescar elogios – repetiu – Certo...

Senti-me mal por ter falado daquele jeito. Ela não tinha falado nada de mais, afinal.

– Desculpa – disse, a contragosto – Na minha cabeça não pareceu tão ruim.

– Tudo bem. Não é a primeira pessoa a me dizer como sou fútil – ela deu de ombros.

– Eu não falei que era fútil. Só disse que você não precisa da opinião de ninguém para se auto afirmar. Até porque metade da faculdade faz isso todos os dias.

Ela revirou os olhos.

– Os garotos de lá? Eles me falam como eu sou bonita, tentando me fazer ficar com eles. E a grande maioria não é nem por mim, é só para contar para os amigos depois. Acredite: “você é tão gostosa que eu não acredito que não está na minha casa” está bem longe de ser um elogio.

Era engraçado vê-la falando desse jeito. Se abrindo, conversando de forma humilde. Não parecia estar tentando ser legal ou flertar comigo. Só estávamos sentados no chão, conversando. Ela mal me olhava, na verdade. Imaginei o que se passava em sua cabeça. Seu olhar ia para o chão, para o céu, para mim, para o resto das pessoas... Tudo isso no tempo de uma respiração minha.

Talvez eu estivesse respirando bem devagar.

– Eu não acredito se você me disser que não gosta da atenção – afirmei.

– Eu não vou falar isso. Não vou ser hipócrita nem me fazer de “pobre menina rica”. Eu gosto da atenção porque é mais fácil conseguir as coisas. Convites, favores... – ela se aproximou um pouco para olhar em meus olhos – Se eu fosse feia, estaríamos aqui agora? Você me ajudaria no trabalho?

Tentei responder, mas não sabia o que dizer. Queria dizer que sim, mas estaria mentindo. Não queria parecer o cara que só ajudou a garota com o intuito de ter algo com ela, mas no fim não passava disso. Não me orgulhava.

– Provavelmente – demorei mais a responder do que deveria. Ela bufou.

– É incrível você mentir assim tão perto dos meus olhos, Guilherme – ajeitou sua postura e me encarou de novo, agora olhando mais fundo, me fazendo voltar à questão dos olhos verdes. Agora sim aceitava que ela poderia vê-los – E se eu fizesse uma proposta agora? Um beijo aqui, um bom beijo, para você arranjar outra parceira de trabalho. Você aceitaria?

Dessa vez cuspi a resposta na hora.

– Não.

– E por que não? – ela quis saber.

– Você tem namorado. Eu nunca beijaria uma garota com namorado, não faz parte da minha política – tentei parecer o mais relaxado possível.

– Mentira – ela me cortou – Você beijaria uma menina com namorado. Você só não quer ser o cara que beija garotas com namorado.

Pensei nisso. Talvez ela estivesse certa, quem sabe? Mas isso não alterava minha resposta. Eu não conseguiria trocar uma semana de dias como esse por um beijo. Um simples beijo. Devia ser um belo de um beijo. Mas mesmo assim. O que aconteceria depois? Eu seria o cara que trocou uma amizade por um beijo. E dessa vez não era medo de parecer estúpido que me incomodava. Ninguém ficaria sabendo, de qualquer jeito. Mas era a constatação de que realmente era uma coisa bastante estúpida de se fazer.

– Esse é o problema de vocês, crianças de hoje, sabia? Vocês pensam demais e fazem de menos.

Não pude evitar uma risada pesada.

– “Vocês crianças de hoje”? Quantos anos você tem, menina?

– Dezenove. E daí? Idade é uma questão de maturidade.

– E você se acha tão madura, não?

Ela balançou a cabeça afirmativamente.

– Ser maduro é ter confiança nas suas decisões. E, se eu não tiver isso, sempre vou ficar na dúvida.

– Certo – foi tudo o que pude dizer. Não diria que achava aquilo besteira pelo número de comentários maldosos já feitos. Talvez algum dia eu concordasse com ela. Assim como talvez algum dia ela fosse realmente madura.

Ficamos mais algum tempo lá. O trabalho acabou sendo esquecido. A meia página escrita nos primeiros dez minutos de conversa foi tudo o que tiramos desse dia. Em vez disso, nos conhecemos. Era fácil, era natural. Um assunto enganchava no outro e nossas vozes nunca pareciam se esgotar. Descobri que ela fazia teatro no ensino médio e que já fora desde Julieta de Shakespeare a Nossa Senhora de Suassuna. Ela contou que namorara um guitarrista quando tinha catorze anos e tudo o que tirou desse namoro foi a paixão pelo violão. Gostava de escrever músicas baseadas nos livros que lia. E os livros que lia... Fizemos listas de livros. E livros viraram filmes. E filmes viraram trilhas sonoras, o que levou a momentos embaraçosos de cantoria no meio do parque. “Não, senhoras, não estamos bêbados”, “Não, senhoras, não queremos parar de gritar”.

Rimos. Rimos. Rimos.

Eu também compartilhei histórias. A primeira garota por quem me apaixonara, Mariana, na quarta série. Pedi-a em namoro em frente à classe e ela começou a chorar de vergonha. Paramos de nos falar e nos encontramos novamente na sétima série. Acabamos rindo disso tudo e ela foi a dona de meu primeiro beijo. Falei que gostava de cozinhar, ela, que decorava bolos. Brincamos sobre abrir uma confeitaria. No ponto em que começamos a citar todos os lugares do mundo que gostaríamos de conhecer e os motivos, já deitávamos com as costas na grama.

– Irlanda – falei – Os castelos. Você já viu os castelos? São lindos. Na Inglaterra tem também, não? Mas não sei... Acho que tenho um certo preconceito com a Inglaterra.

– Como um estudante de literatura não se apega à terra de Shakespeare? – ela pareceu chocada. Fiz pouco de sua preocupação.

– Você só fala isso porque ele te tornou famosa no seu grupo de amigos atores alternativos – disse, brincando. Ela socou meu braço – Ouvi dizer que na Itália tem castelos também.

– Na Itália tem uma ilha bem pequena em que todas as casas são coloridas, sabia? – ela parecia contar uma história a cada coisa ou lugar que descrevia – Eu pretendo passar minha lua de mel lá.

– Lua de mel? – me assustei com o pensamento – Você pensa em se casar?

– Todo mundo pensa em se casar – ela falou sem que parecesse grande coisa.

– Eu não penso em me casar.

– Tudo bem, eu penso em me casar – ela fez cara séria, mas logo afrouxou um sorriso – Meu deus, por que essa implicância com tudo que eu falo?

– Desculpe – murmurei.

– E para de pedir desculpas.

– Desculpe.

Silêncio.

– Você é bobo – ela comentou.

– Com seu namorado? Qual é o nome dele?

– Victor.

– Com seu namorado Victor? – tive que perguntar – Com ele que você pretende se casar?

– Não sei. Talvez. Eu gostaria, mas... – ela balançou a cabeça em negativa – Provavelmente não. Ele não gosta dessas coisas, sabe? Eu o amo, mas ele não é muito chegado em compromissos muito sérios.

– Entendo – não podia julgá-lo. Casamento estaria longe de minha mente sendo um jovem de vinte e poucos anos com uma namorada de dezenove.

– Sim, eu também. Não me chateia. Só é... Seria legal pensar que houvesse alguma possibilidade.

– Entendo – repeti. Conversar com pessoas interessantes me fazia me perceber uma pessoa chata, com minhas respostas que beiravam monossílabas e perguntas inconvenientes.

– Você vai me levar em casa? – ela jogou a pergunta no ar, bruscamente.

– Já vamos embora?

– O Victor vai passar lá em casa mais tarde, nós precisamos conversar – Júlia mexeu as sobrancelhas enquanto falava. Seu pensamento estava longe de mim e eu podia perceber isto claramente.

– Eu te levo – confirmei – Não é como se fosse longe.

Levantar depois de tanto tempo parecia um esforço. O sol já começava a se pôr, passamos a tarde toda ali.

– Saldo do trabalho? – questionei, preparado para uma resposta sarcástica para a pergunta boba.

– Meia página mal escrita, dor nas costas e uma barriga vazia – ela respondeu apertando os lábios num bico – Está ótimo, cara. Meia página. É mais do que eu conseguiria sozinha.

– Então um brinde à meia página – levantei o braço fechado em torno de uma taça imaginária.

– Seria bom ter com que brindar – ela murmurou, envolvendo a barriga com as mãos – Eu estou realmente com fome.

– Eu juro que não estamos tão longe de casa, Júlia – lancei meu melhor olhar de reprovação para cortar o drama. Eu gostava do drama. Mas não seria bom incentivar, ela não me parecia uma pessoa controlável. E talvez eu até gostasse disso. É, definitivamente eu gostava disso.

Fomos a maior parte do caminho em silêncio. De algum jeito, o clima simplesmente morreu. Eu andava tomando conta de tudo e todos à nossa volta enquanto ela chutava pedrinhas da calçada. Estávamos na porta de seu prédio quando ouvi sua voz novamente.

– A proposta ainda está de pé, sabe – falou com cautela – Um beijo e não precisa fazer meu trabalho.

Balancei a cabeça.

– Por que isso, Júlia? Você não consegue mesmo acreditar que alguém possa querer ficar perto de você?

– Poucas pessoas fizeram isso. Eu tenho razão em duvidar – ela encarava o chão e a falta de luz não me deixava ter certeza de sua expressão – Além do mais, talvez eu queira esse beijo.

– Você não quer – cortei, segurando sua mão – Você quer me testar porque você acha que é assim que funciona. Eu não pretendo cair nisso, desculpe.

– Você pode parar de pedir desculpas – já poderia começar a anotar a quantidade de vezes que ela repetiria isso – Você é legal, Guilherme. Sério.

Dito isso, senti-a afastar a mão da minha.

– Boa noite – disse sem se aproximar nem esperar resposta e sumiu para dentro do prédio. Demorei algum tempo para me mover e arrastar as pernas até meu prédio. Quando entrei, Luiza não estava e nem pensei em me perguntar aonde ela poderia estar, ela que há algumas horas mal levantava da cama. Não. Meu pensamento estava longe. Ou perto. Estava do outro lado da janela aberta. A janela pela qual eu só via um armário, mas continuei encarando mesmo assim. E, algumas horas depois, foi a janela pela qual vi Júlia me olhar enquanto seu namorado a jogava contra o tal armário. Seu olhar encontrou com o meu. Ela o afastou. Chegou mais perto de mim. Fechou a janela e voltou para o quarto.


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