O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado
Bra alinhava os lápis de cor, antes de dar início à tarefa artística de pintar uma cena quotidiana na folha branca de papel. Gostava de se organizar antes de começar qualquer coisa, percebendo que, depois da ordem, viria o caos e depois vinha a ordem, porque a mãe detestava coisas desarrumadas.
No vidro da janela soaram duas pancadinhas discretas. Bra sobressaltou-se. A janela ficava no primeiro andar e se alguém batia no vidro significava que só podia ser uma pessoa.
- Pan-chan!
Abriu a janela de par em par, a filha de Gohan saltou para dentro do quarto.
- Vamos treinar – anunciou.
Bra fez beicinho. Negou com a cabeça, sacudindo o rabo-de-cavalo.
- Não posso. A minha mãe não me deixa sair de casa.
- Ora… – Pan sussurrou: – E por que é que julgas que vim pela janela e não pela porta? Para podermos sair à socapa. Vá, despe esse vestidinho de menina bem comportada, veste o dogi e vem comigo.
- Pan-chan, se a minha mãe descobre… Ou se o meu pai descobre, faz-me o mesmo que fez ao nii-chan.
- E o que é que Vegeta-san fez a Trunks-san?
- Rebentou-lhe com a boca.
- E Trunks-san deixou?
- O meu pai é muito forte.
Pan cruzou os braços e anunciou:
- Eu não vou deixar!
Bra começou a rir e Pan riu-se com ela.
Ainda teve dúvidas, olhou para os lápis alinhados, para a folha branca de papel. Tudo em ordem, preparado para o caos. Pan percebeu e empurrou-a até ao armário.
- Não percas tempo. A tua mãe ainda aparece aqui e estraga-nos a nossa brincadeira.
- Pensei que íamos treinar.
- E treinar não é a mesma coisa que brincar?
Bra concordou entusiasmada:
- Hai!
Vestiu o dogi verde que costumava usar quando se treinava com o pai na Câmara de Gravidade, guardado no fundo de uma gaveta do armário. Enquanto se calçava revelou com tristeza:
- O ‘tousan nunca mais se treinou comigo. Acho que ele já não quer que eu seja uma verdadeira saiya-jin.
- Não digas isso, não é verdade. Não é a Dimensão Real que precisa de verdadeiros saiya-jin, é a Dimensão Z. Vais ver que, quando regressarmos a casa, Vegeta-san volta a treinar-se contigo.
- Honto?
Os olhos de Bra brilharam.
- Claro que sim! E vais lutar contra quem, nesta dimensão, Bra-chan? Os nossos inimigos não estão aqui.
- Pois, deves ter razão.
Bra levantou-se, ajeitou o cinto que lhe prendia a túnica por cima das calças largas. Saíram pela janela e desceram até ao jardim a pairar no ar, dominando perfeitamente a sua energia vital.
- Onde é que vamos treinar?
- Na praia.
- Na praia?!
- Não faças essa cara, Bra-chan. A praia fica aqui perto e existem muitas ilhotas isoladas onde podemos brincar à vontade. O ojiisan treina-se nessas ilhotas, com Ubo-san.
- Ah!
Pan agarrou na mão de Bra, abriram a cancela e desceram a rua numa corrida.
- Como é que vamos para a praia, Pan-chan? A correr?
Dobraram uma esquina, aproximaram-se de um grupo de pinheiros que espalhavam uma sombra aprazível num terreno onde ainda não se tinha construído nenhuma vivenda. Havia caruma espalhada e algum lixo também, latas enferrujadas, sacos de plástico e pacotes de batatas fritas.
- Não. Vamos nisto!
Pan retirou uma pequena motorizada vermelha que, naquela dimensão, tinha o nome de scooter, e que estava escondida atrás dos troncos dos pinheiros. Bra avisou a amiga:
- Acho que nós não podemos conduzir isto. Somos muito pequenas, não somos? Tu tens oito anos e eu tenho sete.
- Hai! – Concordou Pan a segurar a scooter pelo guiador. – Por isso, vai ser uma grande aventura!
- Podemos meter-nos em sarilhos.
- Só se conduzir isto for interagir.
A observação de Pan fez Bra soltar uma gargalhada. As duas riram-se e depois subiram para o assento almofadado, num tom mais claro de vermelho, a filha de Gohan à frente, pois era a mais velha, e a filha de Vegeta atrás, agarrando-se à amiga. Pan carregou num botão do centro do painel de instrumentos, situado no centro do guiador, a motorizada deu um solavanco. Já não tinha o descanso, era a perna curta e musculada de Pan que segurava o peso desta, acrescido do peso das duas ocupantes.
- Onde é que a foste arranjar, Pan-chan?
- É da minha mãe.
- E ela não vai dar por falta disto?
- Esperemos que não. Ou seremos castigadas. Estás pronta, Bra-chan?
Estava na altura de esquecer os receios e de partir à aventura. Bra lançou um punho ao alto e gritou entusiasmada:
- Hai!
A scooter meteu-se na estrada. Um pouco antes da rotunda que conduzia à saída da urbanização, viraram para um caminho empoeirado que atravessava um lugar deserto, entregue à natureza. Havia muitos buracos e a motorizada saltitava pelo caminho, com o motor a protestar por causa das sucessivas acelerações e travagens.
- Porque é que estamos a ir por aqui?
- Para evitar a polícia. Eles estão sempre ao pé do aeroporto. Vamos por este atalho e, num instante, estamos na praia.
- Eu disse-te que somos muito pequenas para conduzir uma coisa dessas.
- Estás com medo, Bra-chan?
- Não. – Apertou a roupa da amiga com mais força. Atirou cheia de bravata: – Eu até queria que a polícia me apanhasse. Dava um murro na barriga de um deles e voava para fugir.
- Nani?
Bra continuou com a fantasia:
- Diz lá se não era engraçado. Um murro na barriga e depois eu voava… Imagina só a cara do polícia de boca aberta a ver-me voar.
Pan começou a rir com Bra. Riram-se tanto que Pan acelerou a motorizada sem querer. Passaram por cima de uma fileira de buracos, chocalharam por todos os lados, Bra magoou o traseiro, gritou, engoliu uma nuvem de pó, engasgou-se e riram-se ainda mais.
Mais adiante entraram na estrada alcatroada que levava até à praia. Conseguiam ver a ria, entre a mata de eucaliptos, e conseguiam cheirar o aroma salgado da água que refletia o sol que baixava no horizonte. A scooter aumentou de velocidade, o motor zumbiu. O vento brincava com os cabelos delas, sorriam com aquela inesperada liberdade. O troar de um avião a descolar na pista do aeroporto, que terminava na elevação que ficava à esquerda, encheu-lhes os ouvidos e Bra olhou para cima. Acenou ao avião que conquistava os céus, a gritar eufórica. Pan sorriu.
O som do avião foi substituído pelo som de uma buzina estridente e maçadora. Um automóvel azul ultrapassava a scooter e o homem que ia ao volante gesticulava e falava, a apontar a testa com um dedo, como se estivesse a chamá-las de loucas. Pan disse:
- Bra, faz-lhe adeus!
- Hai!
Bra acenou ao homem com a mesma euforia que dispensara ao avião. O automóvel ultrapassou-as com uma aceleração repentina. Abanou a cabeça comentando:
- As pessoas da Dimensão Real são muito esquisitas.
Na curva seguinte, antes da reta que levava à ponte por onde se entrava na praia, a scooter virou para a direita, galgou uma pequena rampa, contornou umas traves de madeira desconjuntados que tinham sido, em tempos, uma espécie de portão, e entrou num caminho de terra batida. Galgaram alguns metros a acelerar entre pinheiros, arbustos e erva rasteira ressequida. Bra apontou para trás.
- A praia fica ali! Para onde vais?
Pan avançou com a scooter para dentro de umas moitas, desligou o motor calcando no botão. Saltou do assento, arrastando Bra com ela. A motorizada caiu de lado, no meio da vegetação.
- Chegámos! – Anunciou.
- Chegámos onde? Isto não e a praia.
- Baka! Não podíamos entrar na praia a conduzir isto, há polícias na praia.
Bra acalmou-se.
- Ah…
- Segue-me.
Desataram numa corrida, fazendo o caminho inverso. Depois do portão destruído e descendo a rampa, atravessaram a estrada alcatroada. Meteram-se pelos arbustos da berma e desceram o barranco que levava às águas calmas da ria. Pan parou e apontou para a paisagem do fundo.
- Vês estas ilhotas?
- Hai.
- A maré está a baixar a e cada vez vão aparecer mais.
- E como é que vamos para as ilhotas?
- A saltar.
- A saltar?
Pan deu uma cotovelada em Bra e piscou-lhe o olho. Dobrou as costas, fletiu os joelhos, impulsionou o corpo, alcançou uma altura considerável e foi aterrar na ilhota mais próxima. Chamou-a com um aceno. Bra pulou com o mesmo ímpeto. Enterrou as pernas no lodo quando chegou junto da amiga. Pan voltou-se para outra ilhota, que impunha um salto maior.
- Estás a ver aquela?
- Hai!
E antes de tomar balanço, já Bra tinha saltado. Pan também saltou, mas Bra escapou-se para outra ilhota, incitando para que começassem um jogo, a ver quem chegava primeiro, a testar quem saltava mais alto. Fugiam, de ilhota em ilhota, afundando os pés no lodo e na areia, repisando algas secas, Pan adiantando-se a Bra, Bra fugindo de Pan, às gargalhadas e aos gritos.
Quando encontraram a ilhota perfeita, afastada de todas, num local deserto e onde viam, ao longe, os barcos a passar pelos canais pouco profundos da ria, estenderam-se a descansar. Depois, entreolharam-se e riram-se ainda mais, porque tinham ervas e areia colados ao cabelo.
E só depois iniciaram os treinos.
O combate era lento e divertido, brincavam mais do que lutavam. O peso esquisito dos corpos da Dimensão Real confundia Bra e atrapalhava Pan, mas tentavam superar as dificuldades o melhor que podiam e descobrir técnicas novas que potenciassem as limitações que sentiam.
As investidas sucediam-se, ora de Pan, ora de Bra. Empenhavam-se de coração e alma, acreditavam naquilo que estavam a fazer, concentradas e esforçadas. Por vezes, parecia que era a sério. Depois, alguma tropeçava nas próprias pernas, caía com espalhafato e havia risadas, troça, comentários inocentes, uma pausa acolhida com alívio.
Bra estendeu-se na areia branca e fina. Abriu as pernas e os braços. O suor encharcava-lhe o dogi, escorria pelo rosto vermelho, o rabo-de-cavalo meio desmanchado. Pan sentou-se ao lado dela, ofegante.
- Por que é que… – disse Bra entre a respiração irregular – que estamos tão… tão cansadas?
- São estes… corpos – respondeu Pan entre arquejos. – São diferentes, perdem demasiada energia.
- Isso não é uma coisa má?
Bra sentou-se, limpando o suor da testa com a mão, colando grãos de areia à pele. Sacudiu a mão, mas não conseguiu livrar-se da areia.
- Bem… Se queres que te diga… acho que não. – Pan fechou os punhos. – Ao treinarmos nesta dimensão, com estes corpos esquisitos, ficaremos mais fortes quando regressarmos à nossa dimensão.
- Hai! Parece que estou a treinar na Câmara de Gravidade.
Pan sorriu. Segurou a amiga pelos ombros.
- E temos de ser mais fortes para podermos lutar contra Zephir e ganhar.
- Nós… vamos lutar contra Zephir? – Estranhou Bra fazendo beicinho.
- Hai! – Afirmou Pan. – Para derrotar um feiticeiro tão mau, todos os guerreiros da Terra terão de se enfrentar a ele. Vão precisar também de nós as duas.
A possibilidade de lutar ao lado do pai e de o deixar orgulhoso com as suas proezas, fez Bra sorrir. Pan levantou-se. Colocou-se em posição defensiva, retesando os pequenos músculos que lhe doeram, por estarem a ser tão esforçados naquela tarde.
- Continuamos com os treinos? Não podemos descansar, ou perdemos tempo. Temos de estar na nossa máxima força quando formos para o Templo da Lua.
Bra também se levantou, foi colocar-se no seu lugar.
- Espero bem que desta vez consigamos chegar até esse templo – disse.
- Hai, quero conhecer esse feiticeiro tão mau.
Bra estremeceu e perguntou:
- Não tens medo?
- Não! Tu tens medo, Bra-chan?
A filha de Vegeta negou enfaticamente com a cabeça.
- Nem te atrevas a sentir medo, senão ele lança-te um feitiço, como fez com o teu irmão.
A observação irritou Bra.
- Cala-te!!!
Pan abriu muito os olhos.
- Nani?
- Não te atrevas a falar nisso, Pan!
Percebeu que pisara terreno minado e não queria deixar a amiga zangada. Pediu num fio de voz:
- Gomen nasai…
- Vais ver o que é que te vou fazer!
E, inesperadamente, Bra atacou. Pan agarrou no punho dela, cerrou os dentes e disse aborrecida:
- Não te esqueças que foi o meu tio que morreu.
Defendeu alguns golpes e aplicou um murro que fez Bra dar uma pirueta e aterrar de cara voltada para baixo. Apoiou-se nos braços, soergueu-se a tossir e a cuspir areia.
Segundo ataque. Bra saltou, fez uma simulação, conseguiu derrubar Pan com um pontapé. Procurou atingi-la com um soco, Pan levantou-se, dando uma cambalhota invertida. Atacou, seguiu-se uma breve luta corpo-a-corpo, a energia aumentou, as duas meninas cintilavam. Investiram uma contra a outra, Pan agarrou nas mãos de Bra, entrelaçaram os dedos, mediram forças. O chão começou a tremer, a água agitava-se em pequenas ondas que espumavam nos limites da ilhota.
- O que é que as meninas estão a fazer aqui?
As duas miúdas separaram-se. A comoção que modificava a paisagem desapareceu imediatamente, o chão parou de tremer, a água acalmou-se. Olharam para ele e disseram ao mesmo tempo:
- Ubo-san!
O jovem pupilo de Son Goku segurava numa mão quatro peixes de escamas prateadas. Vestia uma camisa de xadrez desabotoada e umas calças largas enroladas por cima dos tornozelos.
- E o que é que tu estás a fazer aqui? – Desafiou Pan.
- Eu moro aqui perto.
- Nós também.
- Não moram na praia, que eu saiba.
- Moramos perto da praia.
Bra puxou pela túnica de Pan, sussurrando:
- Não te metas com ele. Não vês que está zangado?
- E depois?
A filha de Gohan cruzou os braços, insistindo no desafio. Ubo desatou a rir.
- Descansem, meninas – disse num enorme sorriso sincero. – Descansem, que o vosso segredo está seguro. Eu não vou contar aos vossos papás que as encontrei por estes lados, a fazer coisas que não deviam.
- Treinar não faz mal nenhum! – Exclamou Pan.
Bra estava encolhida atrás dela.
- No entanto, o meu silêncio… tem um preço – anunciou Ubo inclinando-se para diante, sobressaltando Bra que se encolheu ainda mais, acicatando os nervos de Pan, que já se via a lutar contra o pupilo do avô. Adotou uma posição que lhe permitiria partir para o confronto e defender a amiga.
- O que é que tu queres? Nós não temos dinheiro.
- Não quero dinheiro, Pan-chan.
E então, contra o que Pan esperava, em vez de um ataque rápido, de um golpe traiçoeiro, Ubo hesitou e, quase envergonhado, perguntou:
- Porque é que nós estamos na Dimensão Real?
Pan e Bra entreolharam-se.
- Não sabes? Toda a gente sabe – disse Bra confusa.
- Estamos aqui por causa do feiticeiro mau – explicou Pan.
A fronte de Ubo crispou-se.
- Chama-se Zephir – continuou Pan. – Ele não sabe lutar, mas tem ao lado dele guerreiros muito fortes que foram capazes de derrotar o ojiisan e Vegeta-san.
- Foi o feiticeiro mau que fez mal ao meu irmão e foi por isso que Goten-san perdeu a vida – acrescentou Bra.
- Hai, o feiticeiro conseguiu derrotar os guerreiros da Terra – completou Pan.
- Hai, no Templo da Lua – concluiu Bra.
Perturbado, Ubo afastou-se, às arrecuas. Despediu-se delas com um aceno atabalhoado, as palavras mastigadas na boca que elas mal o conseguiram entender, e foi-se embora a voar, pairando vagarosamente por cima da água.
Com uma mão na testa a servir de pala, para proteger os olhos do sol, Bra observou Ubo a afastar-se, até se confundir com o horizonte.
- Pan-chan, por que é que Ubo-san se foi embora assim? Pensei que nos fosse castigar.
- Sei lá… Ele ficou tão esquisito quando lhe falámos de Zephir.
- Achas que Ubo-san tem medo de Zephir?
- Se tiver medo, é um idiota – sentenciou Pan com desdém.
***
Fizeram o caminho inverso, saltando de ilhota em ilhota até alcançarem a estrada que levava até à praia. Se foram avistadas por alguém, não se aperceberam e também não estavam preocupadas com isso. Atravessaram a estrada, subiram a rampa, passaram pelo portão partido e andaram pelo caminho de terra batida em passo normal. Estavam cansadas, mas nenhuma se queixou, nem revelou o facto, temendo a censura da outra.
Bra disse:
- Sabes que ontem conheci uma menina da Dimensão Real?
- Honto?
- Chama-se Ana e é amiga do meu irmão. Esteve a almoçar connosco. Quero dizer, fingiu que almoçou… Acho que não gostou da comida da minha mãe, porque não comeu nada.
- Ana? Que engraçado – disse Pan pensativa. – Eu também conheço uma menina da Dimensão Real que se chama Ana. É aluna do meu pai, vai lá a casa para aprender a falar japonês.
- Será a mesma menina?
- Era muita coincidência, não achas?
- Hai – concordou Bra.
Encontraram a scooter no sítio onde a deixaram. Pan foi novamente a conduzir e regressaram a casa, depois daquela maravilhosa aventura na praia.
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Próximo capítulo:
Pequenas distrações.