O Feiticeiro Parte II - A Dimensão Z escrita por André Tornado


Capítulo 40
VII.7 Despertando para a verdade.


Notas iniciais do capítulo

Capítulo narrado na primeira pessoa.



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A escuridão coloriu-se de cinzento, primeiro um tom mais carregado que foi mudando gradualmente para tonalidades mais claras, até ser quase branco, até despertar.

Doía-me a cabeça mas fiz um esforço para abrir os olhos. Aquele dia estava a ser pródigo em despertares inusitados. Não sabia muito bem onde me encontrava, se no meu sofá depois de um duche, se no carro do Tiago, se na minha cama depois de ter sonhado em que tinha passado a noite a dormir no banco de trás do carro do Tiago, se em frente à minha casa com Trunks em forma de rapaz, se noutro lugar qualquer.

Percebi que estava deitada.

Definitivamente, a última hipótese: noutro lugar qualquer.

As pálpebras pesavam-me uma tonelada, mas consegui entreabri-las.

Estava num quarto, deitada numa cama feita, apalpei uma colcha debaixo de mim. As persianas da janela estavam corridas, passava luz pelos buraquinhos. Nas sombras, não reconheci a mobília, os recantos.

Encontrei uma miúda a olhar para mim, debruçada sobre a cama. Não consegui assustar-me, estava dormente.

A voz saiu-me rouca:

- Quem… quem és tu?

A miúda era bonita. Loira, olhos azuis, uma cara redonda, um vestido a combinar com o laço que lhe prendia o cabelo.

Lembrei-me dela. A miúda estava no hospital, naquela noite em que soubera da notícia do acidente do Tiago.

A cabeça encheu-se das memórias dos últimos instantes antes de ter desmaiado. O Tiago dizia que se chamava… E se ele se chamava… então, aquela miúda era a irmã dele e chamava-se…

- Bra – murmurei.

Ela reagiu. Correu para a porta, mas não chegou a sair. Falou em japonês para alguém que se aproximava:

- Okaasan, ela já acordou.

- Vai para baixo. Estamos quase a começar a almoçar. Venho ver se a nossa convidada já está em condições para ir comer.

- Hai!

A miúda desapareceu e entrou uma mulher. Também a reconheci, também estava no hospital.

- Estás acordada? – Perguntou em castelhano, inclinando-se sobre o meu rosto. – Já te sentes melhor?

Era a mãe dele e se ele se chamava… então a mãe dele chamava-se Bulma. O nome atordoou-me e fechei os olhos.

- Sentes-te melhor? - Insistiu preocupada.

Respondi a gaguejar:

- Sim.

- Consegues levantar-te?

- Eu… acho que preciso de um banho.

- Queres tomar banho? Este quarto tem casa de banho privativa. Arranjo-te roupa e uma toalha.

- Se não se importar…

- Não me importo nada. Se não te importares de usar a minha roupa.

- Eu? – Soltei um risinho nervoso. – Usar a sua roupa? Essa é boa!

- Podes tratar-me por tu.

Ela foi até à janela dizendo:

- Vou levantar as persianas, para deixar entrar um pouco de luz no quarto. Bem, tomas banho e depois vens almoçar connosco. Concordas?

Fiquei tensa.

- Almoçar aqui?

- Hai.

A claridade do dia que inundou o quarto encandeou-me e tapei os olhos com os braços.

- Gomen nasai.

- Não faz mal. Tenho de me levantar e deixar de ser piegas, certo?

- Vou trazer-te o que precisas. Ah… Só uma coisa.

A cabeça parecia um carrossel. Pisquei os olhos, espreitei-a por entre os braços, era ainda mais esquisito do que quando a vira no hospital, agora que sabia quem ela era.

- Como é que te chamas, querida?

- Ana – respondi.

- Ana… Gosto do nome.

Saiu do quarto.

E apeteceu-me desmaiar outra vez.

***

O aroma saboroso de comida acabada de fazer vinha até mim, saindo, invisível e tentador, pela porta da cozinha. A sandes de queijo e o leite achocolatado do início da manhã há muito que tinham sido digeridos e estava outra vez com fome.

Parei, a tomar coragem. 

Belisquei-me. A dor dos meus dedos a apertar a pele foi bem real e eu acreditei que não estava a dormir.

Entrei na cozinha. Era espaçosa, quadrada, com eletrodomésticos brancos e brilhantes, bancadas de madeira clara, os azulejos e as cortinas em tons de amarelo. Junto à parede, debaixo de um candeeiro quadrado cromado, estava uma mesa de seis lugares, com três cadeiras ocupadas. O pai à cabeceira, a filha e o filho de cada lado. Disse os nomes deles mentalmente. Vegeta, Bra e Trunks.

Não conseguia avançar. Era como penetrar num sonho alheio.

- Senta-te ao pé de Trunks, Ana – indicou a mãe.

Disse o nome dela mentalmente. Bulma.

Respirei fundo e dirigi-me para o lugar que me tinha indicado. Puxei a cadeira com cuidado para não arrastá-la pelo chão. Sentei-me sem fazer qualquer ruído. Era um fantasma a entrar no mundo dos vivos. Ou então, o contrário, um ser vivente a visitar o mundo etéreo. Deixei as mãos no colo, debaixo da mesa. Não conseguia olhar para ele, que se sentava ao meu lado direito.

Bulma guarneceu a mesa de diversas travessas onde fumegava arroz, legumes variados, pedaços de carne envolvidos em molho espesso. Pousou ainda um jarro de água e dois pacotes de sumo. Começou a servir os pratos, começou por Vegeta.

Tomei coragem e levantei os olhos. Estremeci aflita com o que descobri. 

- Tiago, o que foi que te aconteceu? Tens a boca rebentada.

Ele olhou primeiro para o pai. Respondeu:

- Não foi nada… E podes parar de chamar-me Tiago. Já sabes que o meu nome não é esse.

- Ah… Desculpa, não me apercebi.

Bulma acabou de servir os pratos.

- Ana-san, podes começar a comer. - Voltou-se para a filha. - Bra, para de olhar para a nossa convidada e olha para o teu prato.

A miúda agarrou imediatamente no garfo a dizer:

- Gomen nasai, ‘kaasan.

O almoço começou em silêncio. Apesar da simpatia de Bulma, o ambiente estava longe de ser simpático. Agarrei também no meu garfo. A comida parecia apetitosa, mas perdera inexplicavelmente o apetite. Espreitei Trunks, mais a sua boca rebentada. Tragava garfadas de legumes e de arroz como se não comesse há três dias e agora, conhecendo a sua identidade, já percebia por que comia ele tão esganado, fosse uma sandes de queijo, um gelado ou legumes com arroz. Sorri. Sem querer, o meu olhar desviou-se para Vegeta e descobri que tinha um olho negro, a testa arranhada, um grande penso na face direita. Teriam andado a lutar os dois, pai e filho? Outra vez?

- Passa-se alguma coisa? – Perguntou-me aborrecido, batendo com os talheres no prato.

- Não, nada. - E mergulhei os olhos no meu prato.

- Vegeta esteve a treinar-se ontem à noite - explicou Bulma.

Vegeta tornou a bater com os talheres no prato, em sinal de protesto.

- E apesar de não me ter dito, aposto que foi com Son-kun.

- Quem?

- Goku.

- Com… com Goku? - Gaguejei.

Bra olhava para mim com um sobrolho franzido.

Trunks não reagia e continuava a comer, como se o mundo fosse acabar dali a dois minutos.

Bulma perguntou-me:

- Estás a gostar do almoço?

Acenei que sim.

- Não estás a comer, querida.

- Ah… Ainda me dói a cabeça.

- Faz um esforço, deves alimentar-te. Estás muito pálida.

Acenei outra vez que sim e enfiei um garfo cheio de arroz na boca.

- Eu sei que não sou uma excelente cozinheira, mas esforcei-me para que hoje saísse tudo bem. Nunca gostei muito de cozinhar, admito. Agora, se quiseres provar comida divinal, feita com todos os preceitos, terás de ir visitar Chi-Chi.

Vegeta levantou-se de repente. Encolhi-me.

- Onde vais? - Perguntou Bulma.

- Já terminei. - E saiu da cozinha, com as mãos enfiadas nos bolsos. O prato estava cheio de comida.

Bra seguiu o pai com o olhar, enquanto mastigava devagarinho. Trunks terminava a sua refeição e arrumava os talheres no prato, colocando-os lado a lado, com tanto cuidado que nem sequer retiniram. A minha deixa. Arrumei também os meus talheres, limpei a boca no guardanapo. Agradeci o almoço e disse a Bulma que teria de me ir embora. Tinha gente preocupada comigo por não saberem do meu paradeiro e estava a faltar ao emprego. Ela concordou comigo e pediu ao filho que me levasse à cidade. Trunks levantou-se e saiu da cozinha. Despedi-me à pressa e segui-o, não queria perder a minha boleia.

***

O Toyota branco deixou a urbanização de Gambelas numa marcha regular, nada condizente com o condutor que havia afirmado que gostava de acelerar. Possivelmente, de noite transformava-se.

O silêncio continuava a imperar, mas não me achei no direito de o quebrar. Sentia-me constrangida com aquela situação e esperava que ele não tivesse mesmo de me matar, depois de ter revelado os seus segredos, mesmo que a ameaça se revestisse agora de um ligeiro toque cómico.

Foi ele que acabou por falar:

- Deves ter muitas perguntas que queres fazer.

Concedia espaço à minha curiosidade, queria revelar-se, totalmente despido de toda e qualquer máscara que o tinha resguardado dos perigos do meu mundo.

Sim, tinha muitas perguntas, todas atropelando-se, querendo ser a primeira, porque era a mais importante, a pergunta que responderia, de uma assentada só, a muitas perguntas, mas o que comecei por perguntar foi:

- Onde está o Toyota vermelho?

- Ficou destruído no acidente.

- Sempre tiveste… um acidente?

- Hai. Estive quase a morrer, mas um feijão senzu salvou-me.

- Claro! Um feijão senzu! – E desatei a rir pois aquilo soava de uma maneira tão fantástica. Lembrei-me do mestre que tinha a forma de um grande felino branco e estranhei: – Quer dizer que Karin está aqui? Mas onde?

- Não sei. Num qualquer lugar misterioso, para ocidente. Todos aqueles que estão ligados a Son Goku estão aqui.

Processei aquela informação devagar.

- Todos mesmo?

- Hai, todos. Já conheces alguns…

Lembrei-me e comecei a tremer.

- Gohan. – Olhei para ele e perguntei: – Eu tenho aulas de japonês com Son Gohan?

Ele também olhou para mim.

- Se quiseres continuar com as aulas.

- Que coisa… tão… espetacular. – Perguntei a seguir: - E que fazem aqui, em Portugal? Por que é que não estão no Japão?

- Escolhas.

- De quem?

- Ana, mesmo que te tenha revelado o meu nome verdadeiro, continua a haver segredos que não vejo necessidade de os conheceres – sentenciou com uma voz dura.

- Porquê?

- Pergunta outra coisa.

- E por que é que não falam em português?

- Ainda não temos uma voz portuguesa. Falamos apenas as línguas que nos foram atribuídas na tua dimensão.

- Ah… Compreendo. Conseguem falar os idiomas para os quais “Dragon Ball” foi dobrado. Estou certa?

- Se é assim que o entendes, acho que está certo.

- Por que é que não gostas de “Dragon Ball”? Se tu és… quem dizes que és?

Sorriu pela primeira vez.

- Para nós, ver a forma como existimos nesta dimensão é mortal. Se for exposto ao teu precioso “Dragon Ball”, perco a vida.

- Oh… Não sabia… E falei-te tantas vezes de…

- Não o poderias saber.

Entrávamos na cidade. O Toyota parou num semáforo fechado, atrás de uma fila de automóveis.

- Conheces-nos demasiado bem, não conheces?

- Conheço.

Ele olhava-me com uns olhos azuis profundos e agora entendia a beleza transcendental do rosto dele. Apaixonei-me por ele na curta duração daquele olhar que não pertencia ao meu mundo. Eu tocava no impossível, no universo dos sonhos, noutra dimensão. 

Ele aguardava que eu respondesse mais qualquer coisa.

O semáforo abriu.

- Já vi o teu pai chorar.

O Toyota arrancou atrás dos outros automóveis.

- Gostei da resposta – disse lacónico.

Comecei a divagar:

- Isto parece uma coisa dos “Ficheiros Secretos”!

Ele levantou um sobrolho, numa expressão admirada.

- Conheces? “Expediente X”? É uma série de televisão.

- Nós não vemos televisão, para não termos dissabores.

- Hum… Percebo, por causa de “Dragon Ball”. Bem, então eu conto-te a cena. Estás a ver, “Ficheiros Secretos”, dois investigadores do FBI. Aparecia o Fox “Spooky” Mulder, com aquele estilo muito compenetrado, mostrava-me as suas credenciais e dizia-me: “Bom dia!… ou Boa tarde! Agente Mulder, do FBI. E esta é a minha colega, a agente Scully”. A Dana Scully vinha atrás dele, olhos claros, cabelo ruivo, também compenetrada, enfiada nos seus fatos de duas peças, de saia travada. O Mulder começava com as perguntas, que nunca são diretas: “É verdade que conheceu um rapaz chamado Tiago, num dos bares da cidade, no mês de agosto?”; “É verdade que conheceu o pai do Tiago nessa mesma noite?”; “Não conheceu mais ninguém relacionado com o Tiago? Amigos da família?”; “Nunca achou nada estranho no Tiago?”. Então, eu começava a ficar preocupada… A Scully analisava as minhas reações com o seu olhar científico… As perguntas do Mulder não eram diretas, porque o que ele queria averiguar era a presença dos heróis de “Dragon Ball” em carne e osso, na minha… como foi que tu chamaste? Na minha dimensão. E, ao mesmo tempo, provava a sua teoria da existência de muitos universos e da existência de vida extraterrestre, pois, no fim de contas, vocês são extraterrestres.

Ele riu-se e eu ri-me com ele.

O Toyota estacionou na rua do meu prédio.

- É verdade, não é? Vocês são mesmo extraterrestres?

Trunks desligou o motor do automóvel.

- Meio saiya-jin.

Arrepiei-me, sorri.

Como já era habitual, as despedidas eram sempre difíceis e longas.

- Bem… - Não consegui dizer o nome dele, era tudo demasiado recente, precisava de absorver aquelas informações todas no seu tempo devido. – Obrigada por tudo.

- Eu também te agradeço. Por teres ficado e por teres escutado.

- Qualquer dia… Terás de me traduzir o que me disseste.

- Qualquer dia – concordou triste.

Abri a porta do carro.

- Vamo-nos vendo por aí.

- Se o meu pai deixar.

- Vegeta não gosta muito de mim. Porquê?

- Tem medo de ti.

Desatei a rir.

- O quê? Mas isso é impossível! Vegeta tem medo de…?

- Acredita que é verdade. Djá ná, Ana.

Sempre pensei que ele me fosse beijar, mesmo com a boca rebentada. Gostaria de curá-la com os meus beijos, mas ele agarrou-se ao volante e afastou a possibilidade dessa cura. Rodou a chave, o motor começou a trabalhar.

Fechei a porta do automóvel. Olhei desolada para a minha casa. Saía da dimensão dos sonhos, reentrava na realidade pardacenta. A janela do Toyota estava aberta e espreitei por esta.

- Espera! Quero perguntar-te uma coisa… Lembrei-me agora.

Trunks olhou para mim.

- Onde está Son Goten?

Empalideceu, gaguejou:

- Na-nani?

- Vocês são amigos, não são? Mas nunca te vi com ele. Tu disseste que tinham vindo todos para a minha dimensão. Onde está Son Goten?

O motor do Toyota roncou quando ele carregou no acelerador, com a mudança engatada e sem soltar a embraiagem. Larguei a janela.

- Desculpa Ana, mas tenho mesmo de me ir embora.

- Está bem…

E o condutor que gostava de acelerar revelou-se, mesmo à luz do dia, o Toyota branco desapareceu voando pela rua afora. Fiquei intrigada com aquela reação.

Entrei em casa mole e abatida. Não estava doente, apesar de ter sido essa a desculpa que inventei para não me aborrecerem com as inevitáveis perguntas, sendo a principal “mas por onde tens andado, desde ontem à noite?”. Estava esmagada com uma realidade que me parecera fantástica quando a descobrira, mas que agora se revestia de um peso monstruoso que eu não sabia se seria capaz de suportar.

E, no meio de tudo aquilo, qual era o lugar do André?

E o meu lugar?


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Aventura na praia.



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