O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 4
I.3 A caverna da salvação.




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A chama trémula de uma tocha iluminava as paredes da caverna, desenhando na rocha figuras fantasmagóricas. Estava quente, era um sítio aconchegante. O cheiro doce do incenso enchia o ar e reconfortava a alma. O burburinho de um riacho interior, a água a gorgolejar pelas pedras, soava a música aos ouvidos adormecidos. O resto era silêncio. Por momentos, julgou estar no Templo da Lua.

Uma sombra passou-lhe diante dos olhos cansados. Um sentimento de ansiedade assaltou-o. Seria o espírito que o visitara nas montanhas? A seguir, deixou os pulmões inundarem-se de ar, relaxou os músculos. Devia concentrar-se e não se deixar embalar pelas emoções. Não, não era o espírito. A sensação era distinta àquela que ele sentia quando os espíritos do Outro Mundo o visitavam.

Respirou fundo, mais uma vez, descerrando as pálpebras sobre os olhos. Sentia-se melhor, mais descansado e mais forte. O corpo ainda conservava a dor incómoda que o tinha acompanhado naqueles últimos dias, fruto das múltiplas feridas que lhe tinham infligido, mas agora era mais suportável. Em vez das pontadas terríveis que o faziam padecer de um sofrimento tão atroz que apenas desejava a morte, agora parecia apenas que uma onda quente e perturbadora ia e vinha com cada pulsar do coração. Tolhia-lhe os movimentos, condicionava-lhe os reflexos, mas nada mais.

A mente divagou por pensamentos estranhos, misturados com sensações fugidias de outros tempos. Sonhava. Recordou dias mais felizes no Templo, ao lado dos monges, ao lado de Toynara… A lembrança perturbou-o. O corpo crispou-se e um lampejo de raiva invadiu-lhe a alma. Não tinha esquecido a vingança. Agora que sentia estar a curar-se, sabia que veria, por fim, o seu desejo satisfeito de fazer sofrer todos aqueles que o tinham feito também sofrer.

A sombra voltou a agitar-se na caverna. Não estava sozinho, havia mais alguém com ele. Resolveu despertar convenientemente, pois não gostava de se sentir indefeso perante ninguém e muito menos perante estranhos. Podia ser aquele ou aquela que o salvara, mas a gratidão nunca fora o seu forte e nem esse merecia a sua confiança. Uma vez tinha confiado em alguém e esse tinha-o traído. Nunca mais… Prontificou-se, assim, em recuperar a consciência, pois até ali encontrara-se mergulhado num estado sonâmbulo.

Percebeu que estava deitado numa cama feita de palha. As mãos tocavam numa manta de lã que o cobria até ao peito, com os braços e a cabeça de fora. Estava abrigado num lugar escuro, que ele viu mais claramente ser uma gruta rochosa, meio iluminada pela luz difusa de uma tocha. E, perto da luz, estava um homem sentado a uma mesa de pedra com uma malga de barro entre as mãos. Levantou os olhos assim que o sentiu desperto. Abanou a cabeça lentamente, de cima a baixo, como que a analisar o estado de saúde do hóspede, e disse num sorriso:

– Vejo que estás melhor. Despertaste por fim, homem!

Não se mexeu e deixou-se ficar a observar aquele homem que se levantava e vinha para junto da cama de palha.

– Estavas bastante ferido quando te encontrei nas montanhas, há três dias atrás – continuou o homem, sentando-se numa saliência rochosa perto da cabeceira. – Estavas à beira da morte, sabias? Na primeira vez que te vi, pensava que já tinhas ido desta para melhor. Sem sentidos, gelado, branco que nem um fantasma, quase sem sangue. Ainda estás branco, mas pareces-me bem melhor. Isso agora vai passar com uma boa comida e um bom descanso!… - Ficou mais sério e perguntou – O que foi que te aconteceu? Foste atacado por algum animal? Foste atacado por alguém que te queria roubar?

A recordação do colar de contas de coral vermelho a cair desfeito a seus pés fê-lo estremecer com uma dor na alma tão forte, que jurou senti-la com igual intensidade por todo o corpo. O rosto arrepanhou-se num esgar de aflição. Os golpes que recebera dos cinco monges estavam ainda marcados na carne e bem vivos na pele e recordou-os um por um. O homem que estava ao seu lado percebeu que não estava completamente curado.

– Foste atacado por algum malfeitor? – Tornou o homem. – É isso mesmo que parece. Tantas marcas pelo corpo, tanto sangue perdido. – Como não obteve resposta, insistiu preocupado – Não consegues falar? Não sabes falar? Não me ouves? Percebes o que te digo?

Controlou-se. Era um sacerdote e os sacerdotes estavam treinados para não sentirem os males do corpo. Fome, sede, cansaço, sono, dor ou desejo. O homem continuava a olhar para ele, com um ar imbecil e abrutalhado, à espera de uma resposta. Resolveu dar-lha.

– Percebo perfeitamente o que tu me dizes.

O homem ficou mais descansado.

– Ah! Então, falas! Diz-me…

– Agora, sou eu que faço as perguntas – interrompeu. Não gostava de falar deitado, à mercê daquele homem rude, mas ainda não tinha forças para se sentar. Tentou, contudo, manter a superioridade conferida pelo estatuto de sacerdote do Templo da Lua. – Foste tu que me recolheste? Conta-me o que aconteceu.

O homem fez que sim com a cabeça e acrescentou:

– Encontrei-te, como te disse, nas montanhas há três dias atrás, no início da noite. Estavas muito ferido, não dava nada por ti, mas… Sei lá! Resolvi trazer-te para cá e arriscar a salvar-te. Não tinha nada a perder. No primeiro dia, mal te mexias e mal respiravas. Tratei-te os ferimentos. Lavei-os e liguei-os. Ainda tentei alimentar-te, mas como estavas inconsciente, não o consegui fazer. No segundo dia, deliravas. Parecias um louco! Gemias e só falavas em monges e num templo… No terceiro dia, melhoraste bastante. Tornei a tratar-te das feridas, fiz-te novas ligaduras. A febre baixou, consegui fazer-te engolir um caldo para te alimentares e uma tisana que eu mesmo preparei com ervas da montanha que ajudam a sarar mais depressa qualquer tipo de ferimento. E hoje, finalmente, acordaste…

– Pelo que me disseste, estou aqui há três dias. E este é o quarto dia.

– Precisamente, homem! – Exclamou com um rasgado sorriso. Estava contente por ter conseguido salvar-lhe a vida. – Ainda não estás na melhor das formas, mas dentro de dois ou três dias penso que já recuperaste parte das forças e vais conseguir sair dessa cama. Confia em mim que sei o que digo!

Franziu a testa, incomodado com os modos do homem. Era um autêntico brutamontes, que devia pensar com os músculos e não com o cérebro. Também, não se podia esperar mais de quem vivia sozinho como um eremita, numa gruta situada no local mais agreste, desolado e sombrio que jamais conhecera. E quando recordou a vegetação em redor do Templo da Lua, a crescer viçosa nas margens do lago, a garganta ficou apertada.

– É aqui que vives? – Perguntou para afastar lembranças que lhe eram desnecessárias naquela altura.

– É, sim. Vivo nesta caverna, sozinho. O meu treino exige-o.

– Treino?

– Sim. Estou a treinar para ser o maior campeão de artes marciais sobre este planeta! - Disse, com orgulho.

Estranhou a pretensão do homem, mas sentiu curiosidade em relação a esta, pois gostava de ambição sob todas as formas. As artes marciais nunca lhe interessaram, mas sabia algumas coisas sobre um mítico campeão que nunca conhecera a derrota, através de alguns monges do Templo que dedicavam os seus tempos livres a ler sobre os Grandes Torneios que se realizavam e dos seus campeões.

– Então, queres ser superar a arte de Mr. Satan?

– Mr. Satan? – Grunhiu o homem ofendido e levantou-se. O corpo musculado brilhou, sacudiu os seus fartos cabelos ruivos para trás das costas. – Mr. Satan é um incapaz, um falhado, um inútil, um impostor. A maior fraude de todos os tempos!

– Talvez… Agora já está velho e já não combate como antes. Perdeu a capacidade de defender o seu título de campeão…

– Não, não! Ele sempre foi uma fraude, mesmo quando era campeão – explicou o homem com desprezo. – Claro que não lhe retiro mérito por ter ganhado um campeonato ou dois de artes marciais. Se alcançou o título foi porque combateu bem, acabou por ser superior no tatami e mereceu-o. Mas Mr. Satan não é o lutador mais forte do planeta. Existe alguém com mais poder!

A palavra fascinara-o desde sempre de uma maneira especial. Poder! De repente, a conversa sobre artes marciais pareceu-lhe interessante e desejou saber mais. Os olhos arregalaram-se e perguntou:

– Dizes-me que existe neste planeta um lutador capaz de superar Mr. Satan nas artes marciais? Capaz de rivalizar com as façanhas heroicas que contam dele e mesmo ultrapassá-las?

– Não é só um. São vários! – Respondeu o homem e tornou a sentar-se na rocha, perto da cama.

– Vários?

– Sim! Ao princípio, também julguei que Mr. Satan era um herói… Era apenas um miúdo acabado de fazer catorze anos e só ouvia falar do nome do grande campeão que nos tinha salvado a todos. Mas o verdadeiro herói não foi Mr. Satan!… Descobri isso ao ver na televisão, uma vez, o filme que fizeram na altura do grande torneio organizado pelo monstro que veio do espaço para nos conquistar, a quem chamavam Cell. Junto ao tatami desse torneio havia mais alguém, no deserto… Muitos lutadores! No filme, vê-se claramente que Mr. Satan foi logo derrubado no primeiro assalto contra o monstro. Depois, quem subiu ao tatami foi um homem com uns cabelos dourados muito esquisitos que desafiou o monstro e iniciaram o combate, mas não se percebe nada da luta. Só se vê céu, areia e pedras do deserto. Existiu ainda um último lutador, que já não vi, porque interromperam a emissão do filme por razões desconhecidas. E houve ainda algumas escaramuças entre uns monstrinhos pequenos e os outros lutadores. Aqueles que aguardavam junto ao tatami e não Mr. Satan! Foram eles que nos salvaram, porque só eles tinham a força necessária para derrotar aquele monstro tão poderoso!

– Monstro?

– Sim. Não sabias? Devias saber, tens ar de ser mais velho do que eu… Há vinte anos trás, o planeta foi ameaçado por um monstro. E foi Mr. Satan quem ficou com os louros da vitória! Ainda há outra história esquisita… Sete anos depois desse primeiro monstro aconteceu alguma coisa realmente extraordinária, da qual não me lembro, nem ninguém se lembra. Apenas sei que devemos estar gratos a Mr. Satan, porque, ao que parece, ele salvou-nos outra vez. Bah! Para mim, são tudo mentiras!

A história não tinha pés nem cabeça. No entanto, o monstro da narrativa apaixonada do homem não lhe era totalmente desconhecido. Passara os últimos quarenta anos no Templo e tudo o que sabia existir no mundo exterior ouvira contar nesse lugar. Um dia, tinham-lhe falado de um monstro que viera do espaço e que estava a dizimar grande parte da população mundial. Mas já tinha sido há tanto tempo!

O que estava bem marcado na sua memória, porém, eram os sermões do Sumo-Sacerdote quando lhes contava sobre dois monstros que tinham destruído o planeta e que nessa altura os poderes do Templo da Lua tinham sido inúteis. Avisava-os assim da vulnerabilidade do Templo, do limitado alcance da magia mais poderosa, da humildade perante os mistérios do mundo. Agora, aquele homem falava-lhe num desses monstros, com um dado novo: tinha havido alguém que fora capaz de derrotar o monstro, com um poder tão imenso que superava o poder lendário de Mr. Satan e das suas artes marciais! E mesmo do Templo da Lua, pela lógica.

– O que contam de Mr. Satan é tudo uma grande aldrabice – prosseguiu o homem. – Ele não nos salvou e nem tem essa força enorme que diz possuir. Quem nos salvou do Cell foi outro guerreiro. E num dia de Outono, há muito, muito tempo, tive a prova de que o que vi no tal filme do torneio do monstro era verdade. Conheci um desses lutadores que aguardavam junto ao tatami!

Escutou com atenção o que o homem lhe contava.

– Uma vez, estava a regressar de um dos meus treinos, encontrei aquele homem alto. Aquilo que me chamou mais a atenção não foi a sua posição de meditação, mas sim o seu terceiro olho, implantado na testa. Assim que cheguei ao pé dele, levantou-se e cumprimentou-me. Ia-se embora, mas ofereci-lhe uma refeição na minha gruta. Aqui! Ele, ao princípio, recusou, mas insisti tanto que acabou por aceitar. Vi que era um lutador, tal como eu, e um solitário, tal como eu. Podia aprender com ele e saber se buscava o mesmo que eu: desmascarar Mr. Satan, ser o mais forte do planeta! Comeu, agradeceu, mas antes de partir fiz-lhe algumas perguntas. De todas as vezes sorria e só respondia que sim, ou que não ao que eu lhe perguntava sobre o torneio do monstro e sobre o grande campeão. Por fim, depois de muita conversa fiada, disse-me que eu estava certo, que quem derrotara Cell não fora Mr. Satan mas sim um grande lutador que ele conhecia desde sempre!

– E quem era esse lutador?

– Só me disse que quem salvou a Terra de Cell… foi ele, os seus filhos e os seus amigos. “Posso-me humildemente considerar entre esses amigos”, revelou. E foi-se embora.

– Quem era? Aquele que veio até esta gruta?

– O seu nome era Ten Shin Han. Reconheci-o mais tarde como um dos lutadores do filme. Era um dos que esperava junto ao tatami, ao lado do guerreiro dos cabelos dourados. Ten Shin Han, um grande lutador… Acho que chegou a ganhar um dos Grandes Torneios de Artes Marciais… Claro que sou maior que ele! – Concluiu soberbo.

O enredo tornava-se fascinante. Encontrou naquela história algo que, com esperteza e subtileza, poderia reverter a seu favor e ajudá-lo na vingança e no sonho de conquista. Quem quer que tivesse sido esse monstro, não seria nada diante dos seus poderes mágicos e da sua crueldade. E aquele homem que o tinha salvo, com a sua ambição e orgulho desmesurado, que queria acima de tudo ser o maior lutador de artes marciais do planeta, seria o seu instrumento perfeito.

Mas… cada coisa a seu tempo. Conhecer aquele homem tinha sido um golpe de sorte. Agora, teria de convencê-lo a juntar-se à sua causa, pois iria necessitar de um par de mãos fortes e ágeis… Disse, prestável:

– Eu posso ajudar-te a descobrir quem são esses lutadores.

– A sério? - Perguntou o homem, desconfiado.

– Sim. Sei de um sítio onde existem mil e um registos de mil e uma histórias. Tudo o que aconteceu neste planeta está nesse sítio, a maior biblioteca do mundo, a Sala Sagrada. É um recinto guardado por monges especiais, que redigem todas as histórias que conhecem e de que ouvem falar. Nunca lá entrei, nem nunca estive autorizado a tal, mas se me ajudares, também te ajudo e conto-te aquilo que mais queres saber.

O homem cirandou pela gruta, pensativo. Aguardou, sabendo de antemão que a resposta seria positiva. O homem não iria resistir à tentação de saber que podia desvendar aquele mistério que pontilhava o seu treino nas artes marciais.

– Está bem – respondeu o homem. – Quando estiveres totalmente curado, voltaremos a falar nesse sítio que tu conheces. Agora… queres comer alguma coisa? Tenho ali uma sopa que fiz há bocado… Está muito boa. Queres?

Fingiu simpatia e aceitou a sopa. Desprezava aquele homem porque este conhecera o seu lado mais fraco, vira-o indefeso e estivera à sua mercê, mas precisava dele. Naquele dia e noutros dias que estavam para vir. Enquanto o homem foi até um pequeno caldeirão com uma malga de barro numa das mãos e uma grande colher na outra, disse:

– Ainda não sei o teu nome.

O outro apresentou-se:

– Chamo-me Kang Lo. E tu?

– Zephir.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
O mestre e o pupilo.



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