O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 33
VI.3 Silêncio.




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O pôr-do-sol.

A altura do dia que encerrava a mais suprema das poesias. O céu a diluir-se em vermelhos variados, os derradeiros raios de sol a se perderem por detrás dos picos das montanhas e das copas das árvores. O mundo a entrar na escuridão, no momento em que o dia morria para a noite. A despedida era tão melancólica quanto bela.

Toynara observava calado o pôr-do-sol. Desde sempre que a magia dos ocasos fascinava-o. Havia neles algo de eterno… De pé, braços cruzados, sentia o vento frio bater-lhe na cara e algo parecido a felicidade encheu-lhe o peito. Estava vivo.

Não sabia precisar como recuperara dos terríveis ferimentos que lhe infligira Zephir. As suas memórias eram confusas, recordava-se apenas de fragmentos intermitentes, mas estranhamente vívidos, ampliados como telas monumentais pintadas em cores berrantes. Saíra do Templo da Lua, vagueara pelo meio das árvores, fora recolhido por muitos braços, acordara numa cama quente.

Escutou chamarem o seu nome e voltou-se para a casa. Desde a porta, o pequeno que se assemelhava a um boneco de porcelana, de voz doce e maneiras delicadas, acenava-lhe.

- O jantar está servido.

Olhou uma última vez para o pôr-do-sol e entrou em casa.

Lanch acabava de colocar os pratos na mesa. Ten Shin Han puxou uma cadeira e sentou-se, enquanto Chaozu retirava de uma panela os legumes cozidos, que iriam acompanhar o arroz também cozido que fumegava numa travessa. Aquele trio estranho, que funcionava quase como uma família, era o responsável pelo seu miraculoso salvamento.

Toynara ainda não se tinha habituado totalmente a eles e mantinha um silêncio que o ajudava a criar a barreira necessária para desfazer a confusão em que se encontrava mergulhado, sentindo-se tão emaranhado como um novelo de lã desfeito. Fechou a porta da rua e uma aragem fresca irrompeu pela casa. Lanch sentiu essa aragem e ficou muito direita, a franzir o nariz. A morena Lanch ia espirrar. Tanto Ten Shin Han, como Chaozu, suspenderam as respetivas respirações, olharam para ela, que esfregava o nariz. Toynara não compreendeu. Quando se sentou, puxando devagar e sem ruído a cadeira para junto da mesa, ouviu um espirro.

- Até que enfim! – Desabafou a mulher.

A surpresa foi avassaladora. Toynara sentiu-se gelar por dentro. Lanch sacudiu o cabelo, que lhe caía em ondas loiras pelos ombros. Mas ela antes não era morena? Chaozu deixou a travessa do arroz em cima da mesa sem comentar e Ten Shin Han ficou no seu lugar, com o olhar vago.

- Muito bem, rapaz. Vejo que já estás curado.

Toynara dominou o receio que o abafava como uma manta fria. Ali havia magia. Crescera rodeado de mistérios e de feitiços, mas tudo aquilo que escapava ao seu controlo e que não conseguia explicar, assustava-o de uma maneira irracional. Os olhos verdes da mulher fitavam-no com intensidade e tinha a boca torcida num sorriso orgulhoso. Toynara sentia a tensão a congelar-lhe os movimentos. Nisto, a mulher assentou-lhe uma palmada no braço que o abanou e que por pouco não o derrubava da cadeira e disse:

- Tiveste uma boa enfermeira, rapaz. Nunca te esqueças disso.

A seguir, deu meia volta e agarrou numa mochila, que começou a encher com roupas, cápsulas, caixas de munições e artigos de higiene.

- O que é que estás a fazer, Lanch? – Perguntou Ten Shin Han.

- Estou a fazer as malas – respondeu. – Vou-me embora desta espelunca. – Fechou a mochila, puxando os cordões com um safanão. – Já há algum tempo que queria ir embora, mas, entretanto, apareceu um imprevisto que não estava no programa e atrapalhou-me um bocado. Mas como o rapaz já está curado e eu recuperei o lado saudável da minha personalidade, posso retomar os meus planos. Além disso, esta casa não é minha.

Chaozu estacionara ao lado da cadeira de Ten Shin Han, que não fez qualquer menção de se levantar e acompanhar a mulher. Retorquiu simplesmente:

- Tu é que sabes.

- Ah, pois sei… Sempre soube o que era melhor para mim. E tu não és, certamente, o melhor para mim.

Colocou a mochila às costas, ajeitando as rebeldes madeixas loiras. Debruçou-se sobre o sofá e retirou de um esconderijo que arranjara entre este e a parede uma impressionante metralhadora. Toynara arrepiou-se ao vê-la segurar na arma com tanta descontração e desviou a cara, fixando os olhos no tampo de madeira da mesa. Mas a voz dela fê-lo olhar de repente para a porta que se abrira, deixando entrar o vento frio das montanhas:

- Até à vista, rapaz. E afasta-te de sarilhos…

O sorriso da mulher era demasiado efusivo para a ocasião. Voltou-se para Ten Shin Han.

- Até ao meu regresso. Sabes que volto sempre, não é?

E Lanch sumiu-se na noite.

Era, realmente, gente estranha. Um boneco de porcelana, um homem musculado com um terceiro olho na testa, que funcionava como os outros dois olhos normais, e uma mulher, descobria-o agora, que mudava de personalidade e de fisionomia quando espirrava. Mas não devia ser ingrato. Afinal, eles tinham-no salvo e Toynara manteve o silêncio que se auto impusera, refreando qualquer comentário que poderia soar a ofensivo.

Como se nada se tivesse passado, Chaozu começou a servir os pratos de arroz e de legumes. Toynara achou que era o mais ajuizado, prosseguir como se fosse um dia como os outros e deixou-se enlevar pelos seus pensamentos.

O aroma da comida enjoou-o. Os monges e os sacerdotes do Templo da Lua estavam habituados a longos períodos de jejum e ele nunca fora de comer muito. Mas, agora, parecia estar permanentemente alimentado e desconfiava que era um dos efeitos do remédio que lhe tinham dado que, para além de lhe ter curado os graves ferimentos que o estavam a matar, também lhe tinham confortado o estômago.

Fixou a porta fechada por onde Lanch tinha saído e sentiu-se ansioso. Ela tinha partido e, provavelmente, ele deveria fazer o mesmo. Depois de ter despertado, tinham passado dois dias, mas as horas solitárias e silenciosas legaram-lhe a sensação de estar ali há demasiado tempo.

O rosto contraiu-se. Se fosse embora, iria para onde? A sua casa era o Templo da Lua, mas O Templo da Lua já não existia. Claro que o edifício ainda estava de pé, junto ao lago, junto à floresta, mas dentro daquelas sagradas paredes vivia agora um blasfemo que matara todos os seus companheiros e que o quisera assassinar também, que usurpara o Trono de Marfim e que conspurcara a estátua da Deusa Suprema da Noite. Esse maldito deveria ser derrubado, derrotado e eliminado e seria ele, Toynara, que comandaria o exército que haveria de reconquistar o Templo da Lua.

E pela primeira vez desde que se curara, Toynara sorriu. Um sorriso fugaz que depressa se diluiu quando Chaozu lhe entregou o prato com arroz e legumes. O enjoo regressou.

Uma desilusão pesada como um pedregulho abateu-se sobre os seus ombros, esmagando-lhe as ideias voluntariosas. Como faria Toynara para derrubar Zephir, se não tinha nenhum exército, se não possuía a magia suficiente para enfrentar o renegado? Se nem sequer se via como um sacerdote? As suas vestes rasgadas tinham sido substituídas por roupas normais e a sua imponente autoridade como jovem feiticeiro foi derretida na mesma fogueira onde arderam os trapos que um dia vestira no templo.

Porém, ele haveria de lutar até ao limite das suas forças. Tinha perdido a primeira batalha, mas não tinha perdido ainda a guerra. Essa iria começar dentro em breve.

Olhou para Ten Shin Han que comia a sua refeição, saboreando devagar cada porção que mastigava. Poderia utilizá-lo, como Zephir havia utilizado o guerreiro ruivo que ele tinha visto no dia do assalto ao templo. Precisava de força bruta, para além de magia. Mas como convencê-lo a juntar-se à sua causa?

Tantos dilemas deixavam-no confuso e cada vez mais enjoado. E chegou à conclusão de que talvez só o próprio kami-sama o poderia ajudar.

A pergunta de Chaozu arrastou-o do mundo sombrio das suas congeminações, puxando-o para a luz intensa da realidade:

- Existe algum problema com a comida?

Negou com a cabeça e forçou o som através dos lábios:

- Não.

Sentiu-se um traidor por ter falado. Debaixo do tampo da mesa, apertou os punhos, arrepanhando o tecido de lã das calças.

- Então, porque é que não comes?

Tornou a negar. Engoliu em seco, enraivecido consigo próprio por estar a falar, embora o registo não passasse o de um simples murmúrio:

- Estou cansado. Ainda não recuperei totalmente dos meus ferimentos. Se não se importarem, vou deitar-me.

Levantou-se, inclinou ligeiramente a cabeça e refugiou-se no único quarto da casa, que passara a ser o seu, como uma sombra a esquivar-se por uma fresta. Chaozu perguntou inquieto:

- O feijão senzu não cura totalmente qualquer tipo de ferimentos? Como é que ele se sente cansado?

- Não lhe ligues, Chaozu – respondeu Ten Shin Han sem levantar os olhos do prato. – Ele fugiu daqui porque não quer responder a perguntas.

- Mas nós não lhe fazemos perguntas.

- Temos muitas a fazer, no entanto…

- Ele é tão estranho! É demasiado reservado. Se não quer responder a perguntas, é porque tem coisas a esconder.

- Talvez…

- Quando tratámos das roupas antigas dele, disseste que pareciam as vestes de um monge. Se soubermos a que templo pertence, talvez as coisas de esclareçam.

- Devemos primeiro saber como se chama.

Ten Shin Han levantou os olhos e Chaozu sentiu um arrepio gelado pela espinha.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Encontros divertidos.



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