O Feiticeiro Parte I - O Livro de Magia escrita por André Tornado


Capítulo 32
VI.2 Parceiros de combate.




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Kang Lo foi sacudido pela sensação de estar novamente desperto. Manteve os olhos fechados, contudo. O corpo estava tão moído que julgou impossível conciliar o ânimo suficiente para se levantar.

Mas tinha de o fazer, não podia ficar ali estendido eternamente a ouvir aquelas gargalhadas. A custo, apoiou as mãos na terra dura e com os braços trémulos impulsionou-se, conseguindo sentar-se. A cabeça rodopiava como um pião descontrolado e baixou a fronte para tentar recuperar o raciocínio, o equilíbrio e tudo o mais. Sentia-se agoniado e demasiado cansado. Focou as energias num ponto imaginário, recuperando as poucas forças que ainda sentia e ergueu os olhos, encontrando Kumis sentado numa pedra, rodeado por seis kucris.

Ouviu a voz de Julep.

- Então, já acordaste?

Estavam perto do lago que existia nas imediações do Templo da Lua. Um local amplo, com pouca vegetação, que formava uma arena natural de terra batida. Kang Lo apertou os dentes, a tentar digerir o golpe poderoso que o derrubara e que ainda latejava no corpo dormente.

Pensou na sua pouca sorte, na oferta venenosa de Zephir. Os seus parceiros de combate, Julep e Kumis, eram muito poderosos. A sua força física era impressionante, os seus ataques flamejantes eram arrasadores e a sua técnica de combate imbatível. Era rara a vez em que Kang Lo os conseguia atingir e mesmo quando alcançava essa proeza, a alegria durava o tempo de um piscar de olhos, pois não lograva fazer a mínima mossa em qualquer um deles e a réplica abafava-o sem dó, nem piedade. Passara, simplesmente, a odiá-los, pois em vez de usufruir do presente do feiticeiro, era ele o brinquedo dos dois demónios.

Para piorar ainda mais as coisas, como se não bastasse o escárnio constante de Julep e de Kumis, tinham aparecido umas criaturas negras horrorosas, que passaram a infestar o Templo da Lua. Os demónios conheciam-nos e contaram-lhe que se chamavam kucris, relembrando que o mestre – era assim que tratavam Zephir – os tinha avisado que não podiam tocar neles.

Essas criaturas, que apenas grunhiam e rosnavam, eram bons lutadores e, para desgraça de Kang Lo, eram igualmente melhores do que ele. O seu aspeto enganava. De estatura meã, tinham os braços compridos que lhes chegavam quase até aos pés, semelhantes os dos chimpanzés. Os pés e as mãos contavam com apenas três dedos. O corpo estava coberto por um pelo espesso e curto, escuro como o carvão. Na cabeça tinham dois cornos, encurvados para cima. Junto ao nariz, um botão informe de carne preta permanentemente húmido, brilhavam dois pequenos olhos vermelhos e a boca recheava-se de presas amarelas desalinhadas.

Julep perguntou:

- Queres continuar? Ou estás demasiado cansado por hoje?

O amor-próprio de Kang Lo fora fatalmente ferido. Os seus infindáveis treinos nas montanhas para se tornar no maior lutador do mundo pareciam-lhe, naquele momento de dor e de raiva, ridículos. Mas não queria desistir e mesmo sabendo que as probabilidades estavam todas contra ele, apoiou-se nas pernas bambas e levantou-se.

- Quero continuar – sibilou.

Recordou-se que aqueles demónios, apesar de fortes, não eram nada. Foram criados por Zephir a partir de dois ramos retorcidos que ele próprio fora buscar. Foram-lhe oferecidos, eram propriedade sua. Haveria, de algum modo, de lhes retribuir a humilhação.

- Ótimo! Ele quer continuar – exclamou Julep olhando para o irmão.

- Kang Lo não desiste facilmente. Já o devias saber – observou Kumis enfastiado.

A voz efeminada do gémeo do brinco na orelha esquerda irritou-o. Endireitando-se, soltou um brado, ao mesmo tempo que reunia o seu ki. Contava empregar-se a fundo na próxima ronda daquele combate.

Julep, todavia, não se mostrava impressionado com o poder que ele acumulava no corpo inchado. Kang Lo fazia tremer o chão, gritava como se fosse expulsar os pulmões durante o processo, as veias palpitavam com o sangue fervente e o demónio exibia propositadamente um fastio de morte.

O tremor de terra cessou e começaram a chover pequenas pedras, que Kang Lo fizera levitar com a sua energia. Julep aumentou o tamanho dos seus músculos com um simples movimento, abrindo ligeiramente os braços, dobrados pelos cotovelos, apertando os punhos.

Kang Lo respirou fundo e atacou.

Os kucris começaram a grunhir, incitando o combate, apreciando a desigualdade de forças com um prazer doentio. Kumis cruzou os braços, mimando a expressão enfastiada do irmão.

A luta corpo-a-corpo era violenta, cheia de golpes rápidos e de defesas mais rápidas ainda. Kang Lo dava tudo por tudo, mesmo sabendo que a sua resistência era praticamente nula e que era apenas uma questão de tempo até sucumbir novamente. Só que tinha a alma de um guerreiro e o orgulho correspondente, pelo que desistir não fazia parte dos seus planos.

Atacava sem descanso, uma chuva de murros e de pontapés descia sobre Julep. Mas por cada golpe que acrescentava ao rol, a potência do seu ataque diminuía drasticamente, perdendo cada vez mais eficácia. Por seu turno, Julep limitava-se a defender, sem se mostrar incomodado com o esforço do adversário.

As mãos de Kang Lo uniram-se e tentou golpear o demónio de lado, para o afastar o suficiente para utilizar um ataque flamejante. Só que o movimento foi tão denunciado que este adivinhou-lhe as intenções e, com um salto para trás, fugiu do seu alcance.

Enfurecido com esse falhanço, Kang Lo correu para Julep, gritando, o suor a escorrer da testa e a cegá-lo. Foi atingido no meio da cara por um soco e caiu a metros de distância. Embateu no chão de costas e ficou aí, a gemer.

Julep inspirou ruidosamente e a seguir, com uma sonora expiração, fez com que os músculos voltassem ao tamanho normal. A imponência da sua figura diminuiu ligeiramente.

- Já não te chega a brincadeira? – Perguntou Kumis e bocejou.

- Não - respondeu Julep, apoiando os punhos fechados na cintura. Olhou para o irmão. – Estou a divertir-me bastante com este imbecil.

- E continua a ser assim tão divertido, mesmo ao fim de todos estes dias?

- Aborreces-te muito facilmente.

- Não gosto de perder o meu tempo com coisas inúteis.

- Desde quando combater é inútil? Estás a perder o gosto pelo sangue, Kumis?

- Se ao menos pudéssemos derramar o sangue dele, como deve ser… Não me satisfaço com meros arranhões.

- O mestre não quer que o matemos… para já.

- A força desse imbecil é tão insignificante ao pé da nossa, que é uma afronta enfrentarmo-nos a alguém como ele.

- Eu acho-lhe graça. Julga-se tão forte e capaz…

Ao fundo, Kang Lo punha-se finalmente de pé.

- Contentas-te com tão pouco – suspirou Kumis. – Nem sei como és meu irmão.

Uma bola violácea dirigia-se para os dois demónios. O seu tamanho fazia adivinhar uma explosão considerável, pelo que os kucris debandaram, a grunhir assustados e Kumis abandonou a pedra onde se sentava, elevando-se nos ares. Julep permaneceu onde estava, imóvel.

Kang Lo gastara a sua última energia naquele ataque. A bola violácea atravessou o espaço e desfez-se numa explosão brilhante de calor e faíscas quando encontrou a aura de Julep. A terra saltou, misturada com vegetação e pedras arrancadas ao solo. Uma espiral de fumo negro apareceu a substituir a luz da explosão, dissolvendo-se gradualmente no ar. Ao fim de alguns segundos, a figura do demónio apareceu sem um arranhão. Kang Lo estava ofegante e só um milagre o impedia de cair de borco e ficar ali adormecido. Já não aguentava mais… a energia esvaía-se por todos os poros da pele massacrada, mas ele devia continuar, porque sabia que, quando fechasse os olhos derrotado pela fadiga, iria ouvir as gargalhadas dos seus inimigos.

Julep acercou-se, parando a uma curta distância. Kang Lo tentava focá-lo, mas a imagem, mergulhada em nevoeiro, dançava na retina. Saltou para trás, disparou um raio amarelo com a mão esquerda. O reflexo fê-lo disparar um segundo raio, com a mão direita. Pendeu os braços pesados, gemendo. Sentiu o estômago contrair-se com um arrepio ao ouvir atrás de si a voz grave de Julep, que se tinha esquivado facilmente daquele derradeiro ataque.

Sem saber como, já meio adormecido, voltou-se para Julep, esticou o braço e tentou um murro. Cortou, simplesmente, o ar. Um segundo depois, apanhou com um pontapé na cara e foi cair longe, muito longe, de Julep. Nem força teve para gritar e abandonou-se à dureza do chão.

Kumis juntou-se ao irmão.

- Finalmente terminou – disse com desdém.

Julep encolheu os ombros.

- Hoje demorou menos tempo do que ontem. Achas que está a ficar desmotivado?

- Acho que ele é um imbecil!

- Nos primeiros dias era tão cooperativo. Empregava-se mais a fundo nos combates.

- Ainda julgava que estava à nossa altura.

- Está a perder capacidades…

- Esse imbecil alguma vez teve capacidades?

- Hum… – Julep cruzou os braços. – Acho que amanhã vou deixá-lo vencer-me, a ver se mostra mais motivação. Não posso crer que saiba fazer isto.

- Estou com fome. Vamos caçar qualquer coisa.

Kumis deu meia volta e Julep seguiu-o. Desiludido observou:

- Não estás a prestar-me atenção.

- O assunto, francamente, não me interessa.

Flutuando a escassos centímetros do solo, os dois embrenharam-se na floresta que se estendia pela paisagem circundante, enchendo-a de um verde-escuro sombrio. Os kucris, entretanto, já tinham abandonado o local e passavam pelo portão escancarado do templo no seu andar saltitante.

***

Kang Lo ouvira tudo. 

Estava sozinho, totalmente abandonado e desprezado. Sentiu-se ridículo, iludido, estúpido… Quem era ele para aspirar a ser o maior lutador do Universo? Julep e Kumis souberam mostrar-lhe, com uma frieza esmagadora, quem era… Era nada!

Riu-se de si próprio. E desmaiou.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Silêncio.



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