Cípsela escrita por Taticastrom


Capítulo 2
Zahir




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Zahir: em árabe: algo ou alguém que uma vez tocado ou visto jamais é esquecido. Situação que ocuca o pensamento e pode levar à loucura


Não me lembro do que fazia fora de casa, mas sabia que havia um par de olhos vermelhos me encarando. A coruja me observava com atenção, como se cada passo que eu desse fosse essencial que ela guardasse. Comecei a andar e adentrei a floresta de pinheiros existente na frente de minha casa. Meus passos eram rápidos, de uma forma sobre-humana.
A coruja pairava sobre mim e eu apressava meu passo, como se cada passo pudesse me salvar. Meu corpo começava a arder, queimar. Tinha a sensação de que cada célula do meu corpo estivesse em chamas, mas não havia fogo nenhum. Os passos aumentaram ao ponto em que as árvores pareciam borrões, mas a imagem a minha frente tinha uma nitidez a longo alcance. Mesmo sem ver, eu sentia a presença da ave rodear a minha cabeça e sabia que precisava despistá-la, mas não sabia como nem o porquê.
Tentei andar em zig-zag por entre os pinheiros, mas a ave repetia meus passos. Tentei aumentar a corrida e adentrar na parte mais densa da floresta, mas ela continuava ali. Sem ter um local mais adequado para me esconder, eu corri para o lago. Na água cristalina vi refletido a minha perseguidora, mas havia algo a mais ali.


– Qual a parte de “esteja pronta as quatro” você não entendeu? – Alguém falou, me despertando de meu sonho, me deixando curiosa para entender a imagem do lago.
Abri os olhos lentamente e me deparei com uma Fortini raivosa. Ela estava com as mãos na cintura e seu olhar que parecia avançar em mim. Olhei o relógio ao meu lado e lá estava marcando 16h05. Comecei a rir alto.
– Cinco minutos de atraso, Nic. – Falei, me levantando – Como você entrou aqui?
– Com a chave que o Gabe deixa em baixo do tapete, óbvio. – Ela falou sorridente e depois me puxou e me empurrou para meu banheiro. – Agora, vai tomar um banho, tirar essa cara de sono, que vou tentar algo para você usar.
– Sim, senhora. – Falei, fechando a porta do banheiro. Nota Mental²: Retirar a chave de debaixo do tapete e perguntar ao Gabe se existem mais chaves supostamente escondidas.
Depois de alguns poucos minutos eu saí do banho e Nic já havia decido meu look. Um short jeans, camisa de escritos e meu all star. Com mais alguns minutos estava vestida, maquiada e com o cabelo quase apresentável. Olhei o relógio novamente, 16h30.
– Agora vamos, pois o Hortz está esperando no carro esse tempo todo. – Nic falou descendo as escadas rapidamente, e eu segui seu ritmo, diminuindo para trancar a porta com cuidado.
– Sabia que garotas demoravam, mas vocês batem recordes. – Lucca disse, me dando um sorriso torto enquanto me acomodava desajeitadamente do seu lado.
– Recordes de eficiência, você quer dizer. Essa ruivinha aí me acordou como se minha casa tivesse em chamas. – Eu ri e Lucca me acompanhou, fazendo Nic revirar os olhos.
O percurso até o Bobby’s não era longo, mas foi um tanto quanto desconfortável o fato de eu estar quase no colo do . Mas ele não parecia se incomodar de maneira alguma. De uma forma bem atrevida colocou a mão em minha cintura como se seus braços fossem meu cinto de segurança. Minha bochecha devia estar da cor do cabelo de minha amiga, porque ele riu e apertou ainda mais os braços.
– Chegamos! – Nicolle falou animada ao parar poucos metros do nosso destino. Desci do carro, agradecida por Lucca ter retirado suas mãos frias de mim, pois estava totalmente arrepiada, também não gostava da sensação que sentia com sua respiração em meu pescoço e o movimento de seu diafragma fazendo seu corpo se colar no meu por alguns instantes.
O Bobby’s estava cheio já. Cumprimentamos as pessoas e nos juntamos para assistir o final da competição de boliche que acontecia ali. Uma das garotas mais metidas que eu conhecia estava ali, Evellyne. Ela usava um short extremamente curto e blusa do mesmo tamanho, acho que a mãe dela não conseguia dinheiro para comprar roupas com pano suficiente.
– Quer jogar no meu lugar, Lucca? – A garota falou, se jogando em cima do menino com uma intimidade impossível de ter sido adquirida nas poucas horas que eles conversaram em aula.
– Claro, priminha.– Lucca falou, fazendo a menina espumar de raiva. Fiquei observando a cena com um provável sorriso no rosto que nem tentei esconder. Havia me esquecido que Evellyne era uma Hortz, e que apesar de Lucca nunca ter visitado a cidade isso não significava que sua família não ia para capital. Cheguei a recordar alguns finais de semana em que Evellyne viajava e, quando voltava, contava a todos que estava ficando com um primo de terceiro grau, um menino de cabelos loiros, sensual.
Aposto que qualquer semelhança com o suposto ficante e Lucca ela alegaria como mera coincidência, mas quem sabe contar dois mais dois sabia que Evellyne nunca havia sequer atraído seu primo, que apesar de parecer apenas mais um filhinho de papai pegador, não caíra na tentação pelo corpo da prima, que só era o que era graças aos avanços da medicina estética.
Ele pegou a bola, se posicionou de forma confiante e arremessou. Strike! Brilhava acima da pista. Os olhos verde folha seca me encaram e ele sorriu. Aproximou-se de mim para esperar a sua próxima jogada.
– Acho que alguém jogava muito boliche na capital. – Comentei.
– Já ganhei alguns campeonatos, nada de mais. – Ele fingiu humildade. – E você, gosta de jogar?
– Não sou muito boa de mira. Então nunca tentei. - Falei sorrindo
– Que sorte a sua, acaba de achar um professor disponível. – Assim que ele terminou de falar tinha chegado a sua vez e ele me empurrou. – Primeiro, escolha uma bola, tente achar a mais leve. – Peguei a bola rosa, o que o fez rir. Acho que não parecia o tipo de menininha que escolhe rosa. – Agora, você faz assim. – Ele estava atrás de mim, me colocando na mesma posição que havia feito para jogar. – E arremessa. – Ele falou no meu ouvido.
O toque dele me trouxe aquela sensação de que todas as células do meu corpo estavam em chamas. Tentei manter meu foco na bola, mas sem muito sucesso. Meus olhos desfocaram tudo a meu redor, deixando apenas os pinos brancos nítidos. Eu ouvia a conversa, a respiração de Lucca e tudo mais em câmera lenta. Peguei um pequeno impulso e joguei a bola. Ela seguiu uma linha reta perfeita. Strike! Brilhou mais uma vez.
– Sorte de iniciante. – Evellyne disse, me lançando um olhar ameaçador, enquanto seu primo me dava a mão para descer da pista.
– Provavelmente. – Falei sorrindo. – Vamos descobrir.
O resto da tarde continuou assim, com a galera conversando. Eu não interagia muito, mas sempre fazia algum comentário e me mantinha atenta na conversa. Não gostava de me sentir por fora. Em certo momento me levantei para ir ao banheiro e vi que Evellyne havia tomado meu lugar ao lado de seu primo e falava algo com ele.
Foquei minha atenção neles. Gabe costumava a dizer que eu tinha audição anormal. Mesmo em uma distância considerável grande eu conseguia captar os sons com nitidez, e foi o que fiz:
– Primo, por que você está dando bola para aquelazinha?
– Gostei do jeito dela. Tem algo misterioso naqueles olhos que eu estou ansioso por descobrir. – Ele falou. Como estava de costas para ele não podia ver seus olhos, mas corei em imaginar que ele devia estar me olhando e em seu rosto provavelmente estaria aquele seu sorriso torto.
– Sim, tem algo de muito misterioso. Ele é uma louca, nem a mãe suportava a menina. Ela é uma assassina, sai dessa.
Um nó se formou em minha garganta. Continuei o caminho para o banheiro sem ouvir o que Lucca havia dito. Estava muito bom para ser verdade. Por mais que eu quisesse, as histórias seriam contadas, as pessoas iram dizer a Lucca toda a minha má fama e todas as coisas horríveis que já estava até acostumada a ouvir. Segurei o pequeno colocar em forma de dente-de-leão que meu pai me dera e comecei a pedir silenciosamente para que conseguisse sair do banheiro sem que ninguém me visse e sair do Bobby’s. Infelizmente seria impossível que os fantasiosos seres mágicos atendessem meu clamor, afinal eu precisava pagar minha conta, e minha bolsa estava do lado de Lucca. Um lugar que não gostaria de voltar.
Assim que saí do banheiro encontrei um olhar cor de mel terrivelmente familiar.
– Que isso, Kaká, você vai dar bola para o que Evellyne Hortz diz? – A voz masculina falou, enquanto me abraçava. Por mais que eu quisesse fazer as lágrimas não caísse, o abraço de Matt me vez desmanchar em um choro silencioso. – Você sabe que só aquela víbora fala isso de você, ninguém acredita nesses boatos. – O moreno tentou me confortar. Mas mesmo a sua voz não era capaz de passar a confiança que eu precisava. Eu sabia que havia pessoas que secretamente achavam que era um psicopata e que meu passado doentio devia me manter internada em algum centro para tratamentos mentais da capital.
– E o tal de Lucca nem acreditou nela. – Ele falou, secando minhas lágrimas. – Acho que o garoto conhece a prima dele e sabe que aquela é uma vaca mentirosa até o último fio de cabelo, então, senhorita Tharde, seca essas lágrimas, que vamos voltar para aquela mesa de cabeça erguida e você vai matar aquela vadia com os olhos e esquecer o passado. – Ele sorriu e retribuí. – Pare de usar seus superpoderes auditivos para o mal. – O garoto brincou enquanto caminhávamos de volta para o grupo.
Lucca continuou a conversar comigo normalmente. Mas eu conseguia imaginar que o que a víbora loira havia dito estava em seu subconsciente, apesar de ele saber do histórico de mentiras da prima porque ela diria coisas tão horríveis sobre uma garota.
O passado começava a tomar forma em minha mente, as cenas pareciam se misturar com a realidade. O passado passava como sombras em minha frente. Sentia tontura e não conseguia distinguir o ponto da realidade e do que meu cérebro queria apenas que eu relembrasse.
– Karly, vocês tá me ouvindo? – Lucca me perguntou. Seus maravilhosos olhos verdes folha seca pareciam preocupados. Respirei fundo.
– Preciso tomar um ar, já volto.
Levantei-me, mas ele me seguiu. Sentamos do lado de fora do Bobby’s. Na calçada.
– Aquele garoto moreno que estava conversando com você perto do banheiro te aborreceu de alguma forma? Você está estranha desde que voltou. – Ele falou, me observando. – Parece ainda mais calada, não sabia que era possível fazer tanto silêncio – Ele sorriu.
– Aquele moreno é meu primo. – Falei, enquanto respirava e tentava dispensar as sombras cinzas que se formavam na minha frente. – Matthew Tharde.
– Isso não explica se ele te aborreceu ou não. – Ele falou, sentando mais próximo de mim. – Veja a Evellyne, é minha prima e consegue me aborrecer a cada dois minutos.
Esbocei um sorriso que logo foi correspondido. Fechei meus olhos fortes e as cinzas sumiram por alguns instantes. Respirei fundo e falei:
– Matt é meu melhor amigo, e não estava aborrecendo. – Sorri – E meus pêsames por uma prima tão chata.
– Ela não é de todo mal, só é meio mimada. – Eu ri e ele completou: – Talvez complemente, mas não vem ao caso. O que houve então?
– Falta de ar. – Menti, como sempre. – Sou um pouco claustrofóbica.
– Vou pegar uma água para você então. Já volto. Não saia daí.
Assenti e ele caminhou de volta para o Bobby’s. As imagens voltaram com força total. Coloquei minha cabeça nas pernas, tentando impedir que as cinzas se formassem, lembrando a minha infância. Minha visão começou a ficar turva, eu estava claramente perdida em meu maior pesadelo, a realidade da memória.
Ouvia os gritos ao meu redor, as vozes me chamando e um par de olhos me encarando. Olhos cinza como todas as outras imagens que tomavam forma. Eles estavam fixos em mim e eu neles. Pareciam me chamar. Não havia como parar mais. Havia recomeçado toda a minha dor.
– Karly! – Braços fortes me erguiam, me tirando da posição quase fetal que estava. – Vou te levar para casa, meu Deus. – Lucca passou meu braço em volta do seu ombro e começou a me erguer.
Tentei dizer alguma coisa, mas estava claramente sem forças. Não queria ficar fraca na frente dele. Mas as crises sempre vinham em horas inesperadas. Lucca me sentou enquanto pegavas as coisas. Fingi estar bem para não alarmar as pessoas e Lucca me ajudou. Disse sobre a minha mentira de claustrofobia e pediu a Nicolle para nos levar. Mas Matt falou para deixar que a menina se divertisse, ele mesmo levaria. Obrigação de família, o ouvi dizer.
Lucca então pegou minha bolsa e me entregou para Matt, ele pagou as nossas contas. Tinha que me lembrar de pagá-lo no dia seguinte. Assim que saímos, as sombras já não me faziam companhia, mas ainda não tinha forças psicológicas nem físicas. Olhei para frente e vi uma coruja. Segurei o grito na minha garganta e encarei seus olhos negros. "Tudo normal Karly, você está bem. Basta lembrar que existe apenas uma realidade". Falei comigo mesma.
Matt me colocou no banco de trás e seguiu em rumo a sua casa, ele já sabia lidar com meus supostos surtos psicóticos e sequer perguntava o que estava acontecendo comigo. Ele apenas esperava tudo passar.
O caminho de casa pareceu mais longo que o normal. Tentava manter uma respiração estável, mas as memórias voltavam. Meu corpo inteiro começou a tremer, um frio repentino me tomou e o ar condicionado ligado de nada me adiantava.
Tentei levantar um pouco e vi que já estávamos quase chegando. Matt parou o carro e perguntou se tinha forças para descer sozinha, assenti.
– Vou estacionar o carro. Pode entrar sem pedir, vai estar tudo aberto, como de costume. – Matt falou, me deixando a duas casas da conhecida casa branca com detalhes azuis
O curto caminho parecia uma eternidade. Tentei manter minha visão nítida, algo que muito lamentei, pois poucos metros de nós estavam os ameaçadores olhos negros, aqueles olhos que me perseguiam ainda mais duramente do que a coruja de olhos vermelhos, mais que os olhos sem cor de meu passado. Era olhos reais, um presente que não estava em cinza. Aqueles olhos pertenciam ao pior pesadelo existente em Cípsela para mim. Pertenciam ao rebelde Aaron Spyer.




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Notas finais do capítulo

Oie galera, como não tenho alguém que bete meus textos normalmente fica um errinho, daqueles bem imperdoáveis, que passa desapercebido, então se perceber me avisem para editar. Obrigada e espero que gostem dos mistérios escondidos na cidade de Cípsela.