Fotografado escrita por Kalhens


Capítulo 1
A fotógrafa


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura~



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O bom da fotografia é que a imagem é exatamente aquilo que você vê.

E o mau da fotografia, é exatamente esse.

O quarto estava escuro, como sempre.

A bagunça reinava, como nunca.

Um cheiro estranho de tinta, incomum.

A umidade delicada de uma pintura, suspeita.

E ele ali, sentado de modo satisfeito, os olhos cerrados, eternamente.

Foi tudo o que encontraram e , ironicamente, diria aquele se o pudesse, imediatamente fotografaram.

Não tinha mais o direito de ver as coisas. Tinha a obrigação de registrar, fotografar, Qualquer cena que contasse a alguém, era logo questionado: ‘’ e porque não tirou uma foto?’’. Era justo, admitamos, posto que vivia com a máquinas nas mãos, preparadas. ‘’ É que era lindo demais’’, argumentava, revirando sua amiga, nervoso. ‘’Por isso mesmo, oras!’’. E por que esse argumento jamais lhe convenceu?

Fotografava desinteressadamente. Ou tão desinteressadamente quando o filme limitado poderia lhe permitir. E era bom. Ângulo, luz, tudo encontrava com uma facilidade incrível. Era bom em ver as coisas belas, e torná-las marcantes.

Mas tinha que ganhar a vida, afinal. Pensando, resolveu que era bom com fotos, e que deveria ganhar a vida fazendo aquilo no que era bom. Simples e prático, como o apertar de um botão. E esse apertar às vezes trazia resultados tão incríveis...!

Poderia mostrar o que via, como via, aos outros, e ainda ganhar por isso. O problema é que as coisas não eram assim tão simples. Nunca eram.

Realmente, precisava de dinheiro. Não desceu ao ponto de um papparazzo, e agradecia aos céus, que lhe renderam tantas imagens lindas, por tal. Não via a menor graça naquela vida de tentar mostrar escândalos de pessoas comuns, que se tornavam incomuns, por aparecerem na TV com freqüência.

Com boa vontade e habilidade, e com o apoio de sua amiga, sua amante, claro, conseguiu ir para uma revista. Para um jornal. Para a realidade;

Viajou, e muito. Andava, bastante. Viu coisas que jamais pensara que conseguiria sem locar um filme ou ir a um cinema.

Mas... As coisas já não era tão belas. A máquina não mudara, continuava em seu trabalho fiel, a mostrar as coisas exatamente como eram, nada mais, nada menos.

O sangue, era sangue. A morte, era morte. O céu, era o céu.

Foi quando começou a pensar, se seria assim tão estranho não quere fotografar algo por ser demasiado belo. Sabe-se lá o que a lente, em sua perfeição sádica e indiferente, sem sentimento algum por aquilo que mirava, mostraria.

O nascer do sol... Quando o olhava, era tão bonito. Com seus tons e degrades, o sol saindo passo a passo, e já logo marcando com suas faixas cor-de-rosa a mais cinza das nuvens...

E se o flash ofuscasse tudo aquilo, para mostrar a chuva que se aproximava?

Mas, enfim, não tinha tempo pra isso, não é?

Antes, tinha os velhos. Os oprimidos. Os injustiçados. Os doentes. E eram todos só e somente aquilo. Uma imagem valia, definitivamente, mais do que mil palavras. Para se ver o quão perigosas podem ser!

Destrutivas. O que machucava mais, perguntava-se as vezes, uma noticia sobre bebes que morrem por falta de cuidados, ou a foto dos mesmo.

E será que alguém pensava, ainda, no que acontecia com aquele que tinha que tirar as tais das fotos?

Quantas coisas já vira?, parou para pensar num dia qualquer. Colocou a mão no queixo, e olhou para sua fiel companheira, de todos os momentos, com quem compartilhava tudo. Não. Mentira. Nunca compartilhava tudo. Só o que olhavam.

Tamborilou ainda os dedos na mesa, e decidiu-se por fim.

Saiu, e voltou com os braços carregados.

Não importava quantas coisas já tinha visto, precisava mostrá-las. E, agora percebia, só a máquina já não lhe era suficiente.

Jogou os móveis num canto, amontoando tudo para que tivesse a parede e o chão, e o teto até, só para si.

Sempre registrara exatamente o que vira.

Ao menos uma vez, marcaria aquilo que queria ver. Como queria ver.

Foram-se segundos, dias, horas, minutos, toda uma vida. Não fazia diferença, quando estava imerso naquele frenezi insano.

Não precisava comer ou beber, e já não sabia quando dormia, em sonhos surreais, tão precisos, ou estava acordado, a tornar real tudo aquilo que antes só via ao fechar os olhos.

Cada rosto, cada olhar, cada sorriso, cada abraço, cada lágrima.

Os gemidos mudos, o choro estático, a risada congelada, o pavor eterno.

Tudo, não do modo que seus olhos viram, por trás do vidro.

Mas do modo que ele, de fato, viu, e que ainda via sem muito esforço.

Enlouquecera, qualquer um poderia firmar. Assim como afirmaram ao entrar.

Mas... A loucura fora tão doce.

Pois é que pena. Sem graça até. Alguns morrem de amor, outros de medo, e ainda tem aqueles que simplesmente morrem. Ele morreu da febre, da euforia, das cenas, da beleza.

Morreu de exaustão. Morreu feliz, ou tão feliz quanto alguém pode estar ao morrer.

Seu túmulo foi velado pela companheira por dias, silenciosa, tal qual seu dono.

Fotos fizeram as vezes de flores, solidárias, tombando calmamente da prateleira na qual estavam empilhadas ao menor impulso do vento, que teve ainda o cuidado de cerrar as janelas.

Lápide de verdade, não teve. Não precisava de nome ou de alguma frase elegante. Precisava apenas daquele mural.

Nada de filme, mas toda a sua mente e suas lembranças, admirável.

Nada de bateria, mas toda a sua existência, espantosa.

Nada de lentes, mas ele próprio, incompreensível.

E alguém, um alguém qualquer, como ele, com uma amiga como a dele, a registrar a cena.


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Notas finais do capítulo

Eu realmente gosto dessa história. Nem sei o porquê.
Achei arrumando minhas pastas também...