POV Katniss

Como descrever a sensação de que a qualquer minuto o chão pode explodir? Talvez eu pudesse dizer que é igual aos 60 segundos nas plataformas antes de ir para o banho de sangue, estaria bem realista. Mas a realidade é que a melhor forma de dizer isso é: estar no mesmo ambiente que Finnick e Percy.
Não que eles estivessem brigando ou coisa assim, mas o clima em si estava tenso. Dado que Finnick sabia sobre os meio-sangues, eu quase considerava ele um meio-sangue também.
Ambos agiam e olhavam para os lados como se partilhassem um segredo que não sabiam ao certo o que era.
Depois de Annie ser entregue a sua casa em segurança, Finnick nos guiou até sua própria casa na Vila doo Vitoriosos. Era semelhante a nossa no Distrito 12, com difereça apenas nas cores das paredes que foram pintadas para lembrar o mar.
Entramos na casa e nosso anfitrião tratou logo de trancar a porta, embora eu não ache que isso impediria a Capital de tentar nos espionar.
– Podem se sentar. - ele disse se sentando em um dos sofás e apoiando os cotovelos nos joelhos - Então...Você disse que Hera trouxe você aqui, certo? - ele disse para Percy com o olhar sério.
– Sim, como um teste. Ela pretende tentar uma nova aliança com os romanos. - ele disse com o olhar um pouco perdido.
Finnick suspirou.
– Hera não é a melhor diplomata nem de longe.
– Eu fiquei sabendo...
Finnick levantou uma sobrancelha.
– Sabe da história?
– Grande parte. - disse Percy dando de ombros.
– Entendo. Para refrescar a memória deixe-me recaptular. Com a volta de Gaia ficando previsível Hera pensou em juntar os romanos e os gregos novamente. Não deu certo. Tudo que ela fez foi dizer "Amanhã vocês encontrarão seus aliados" e no dia seguinte havia uma legião romana em frente ao Acampamento Meio-sangue. Obviamente aquilo não deu certo, eles não cooperavam em nada. Você, Percy, foi um dos poucos que via a união com bons olhos. Romanos e Gregos entraram em guerra, esquecendo quem é o verdadeiro inimigo. Enquanto isso o exército da Deusa ficava mais forte e fazia mais vítimas. Terremotos, furacões, tsunamis. Tudo isso deixava a vida dos mortais cada vez mais difícil. Como se não bastasse Gaia mandou seus servos, os Eidolons, plantarem a discórdia entre os líderes mortais. Eles possuíam os presidentes, ministros, reis e faziam com que provocassem guerras entre si. O resultado foi uma Terceira Guerra Mundial. Agora imagine uma guerra onde você precisa tomar cuidado com o inimigo e com a possibilidade de o chão ceder sob os seus pés? Essa era a realidade naquele tempo.
Com os semideuses se matando e os mortais fazendo o mesmo, Gaia não precisou de muita coisa para trabalhar. Ela retirou o atual presidente dos Estados Unidos da América de seu cargo e colocou um de seus pupilos no lugar. Ele era um semideus, mas até hoje ninguém sabe seu parentesco divino. Alguns acreditam que era filho da própria Gaia, outros apostam em algum titã. A questão é que o mal brilhava nos olhos daquele homem. Ele exalava poder. O novo presidente criou um exército poderoso. Os filhos de Hefesto aliados de Gaia criaram armas poderosas para esse exército. Os soldados hoje se chamam Pacificadores.
O presidente tinha espiões em ambos os acampamentos, de forma que tinha acesso a informações importantes de cada um dos lados.
–- Ahn, desculpe - eu interrompi - Mas por que você o chama apenas de "presidente"? Qual era o nome dele?
Finnick pareceu desconfortável com aquilo.
–- Nomes tem poder. E o nome dele em especial dá azar. Considerando que temos problemas com as autoridades, vamos manter o nome dele em segredo. Chamemos ele apenas de Snow por enquanto.*
No dia que ambos os os campos entraram em conflito, o presidente atacou. Foi uma jogada de mestre, pois os semideuses ficaram perdidos, não sabendo ao certo quem atacar. Ele deu uma chance para nós nos recompormos, provavelmente porque seria mais divertido brincar com a vítima assim.
Em um periódo de cerca de duas semanas gregos e romanos fizeram uma aliança. Houve muitas vítimas na última batalha e agora havia dois inimigos: Gaia e seu servo.
Até o final de todo o evento decorreram cerca de 16 anos. Os deuses chegaram ao seu fim, mas não antes de ajudarem na derrota de Gaia que voltou a adormecer.
Snow acabou saindo vitorioso, mas após algumas negociações os semideuses foram deixados em paz. Foi feita a divisão por distritos. Os semideuses seriam divididos de acordo com seus parentescos divinos. O distrito 4 ficou com Poseidon e parte de Apolo.
Sem o poder dos deuses para controlar o tempo, as tarefas deles foram dadas aos seus filhos. Você, Percy, virou um deus do mar temporário. Se isso não fosse feito provavelmente não haveria mais vida na Terra. Basta analisar um mapa atual em comparação com a época pré-Panem. Os estados do sul como Califórnia, Texas e o próprio México foram afundados. Um terremoto na América Central separou o a América do Sul do resto do continente. Não sabemos ao certo o que aconteceu lá. Provavelmente algum terremoto ou os vulcões dos Andes dificultaram a vida dos latinos. O Canadá passou por uma espécie de Era do Gelo, agora tudo o que resta lá é selva e neve.**
Voltando, os semideuses tomaram o lugar dos deuses por um tempo breve. Fomos separados em distritos para "facilitar o governo de Panem", mas isso na verdade era para impedir os meio-sangues formassem um exército poderoso novamente. O Distrito 13 não aceitou nada bem isso. Era o distrito com mais romanos, então conseguiram deixar a batalha equilibrada por um tempo razoável quando se rebelaram. Mas como vocês devem saber eles perderam a Guerra e hoje temos os Jogos. Alguns dizem que o real objetivo dos Jogos é encontrar mortais com habilidades especiais, como ver através da Névoa, e elimina-los para evitar que comecem uma rebelião.

Percy levantou a mão como um aluno na sala de aula.
–-Sem querer ser chato, mas você me trouxe aqui só para contar essa história?
Finnick suspirou e sorriu sem-graça.
–- Para falar a verdade era mais pra saber os seus planos com a mocinha a aqui. - ele disse apontando pra mim.
–- O que? - eu e Percy dissemos ao mesmo tempo com uma careta.
Ele levantou as mãos em sinal de rendição.
–- Desculpe, não foi o que eu quis dizer. Mas tente entender o meu lado: eu e o resto do Distrito 4 passamos nossa infância ouvindo suas histórias e todas as aventuras que passou ao lado de Annabeth Chase. Imagine a minha reação quando eu vi Percy Jackson, herói do meu Distrito, nos Jogos Vorazes e ainda junto com outra garota que não era a filha de Atena?
Percy colocou a mão na testa e eu pude notar um leve rubor em suas bochechas.
–- Até aqui isso me atormenta...Finnick riu e levantou do sofá. --Vem, vou mostrar uma coisa pra vocês.
Nós seguimos ele até um canto mais escuro da sala, onde ele abriu um alçapão no chão. Na escuridão abaixo eu conseguia destinguir a leve forma de uma escada e nada a mais. Olhei para os dois como se dissesse "Querem que eu entre aí?". A ideia não me agradava nem um pouco.
Felizmente Finnick pegou uma lanterna e desceu primeiro iluminando parte do caminho. Eu fui a última a entrar. Quando alcancei o último degrau uma luz amarelada iluminou todo o ambiente e eu sufoquei um suspiro de admiração.
O porão era muito maior do que eu imaginava, talvez um pouco mais da área da casa. As paredes eram bem cuidadas e enceradas feitas de uma madeira avermelhada que eu não consegui identificar. Mas o real espetáculo eram os objetos ali guardados.
Espadas, facas, arcos, flechas, armaduras, todas em ouro e bronze, estavam espalhadas por todo o lado em caixas de vidro como se fossem exibições em um museu. Era um verdadeiro arsenal, poderia equipar o distrito 12 para uma batalha facilmente. Não haviam apenas armas, mas também alguns objetos comuns do dia a dia. Achei dois colares como o que Percy usava, várias fotografias e um boné azul.
–- Isso foi tudo o que conseguimos guardar da época pré-Panem. - Finnick começou - Algumas coisas ficaram desgastadas pois não foram bem guardadas, mas depois que eu virei vitorioso pude deixar elas em um lugar digno.
–- Por que é você que guarda? - perguntou Percy ainda vidrado nas relíquias.
–- Esse trabalho é dado aos descendentes do grande filho de Poseidon. Digamos que eu sou um tataraneto seu ou coisa assim.
Percy ficou encarando ele por uns segundos com uma cara confusa, enquanto eu apenas revirei os olhos. Não é de se admirar que são parentes.
Meu olhar parou em uma certa fotografia. Parecia a mais desgastadas de todas, como se além de suportar o tempo fosse obrigada a aguentar muita água, amassados e poeira.
Nela estava Percy abraçado com uma garota de cachos loiros que eu assumi ser Annabeth.
Depois de meses ouvindo falar da mesma eu não imaginei que teria a chance de ver como ela é. Annabeth poderia se passar por uma garota qualquer do meu distrito. Os cabelos talvez chamassem um pouco de atenção, mas os olhos cinzas lhe davam algum crédito.
Ver os dois ali juntos e felizes me deu uma sensação estranha. Um misto de ciúmes com o sentimento de que eu estava me metendo onde não era chamada.
Eu nunca pensei o que aconteceria se eu conhecesse Annabeth, talvez nós tivéssemos algumas discussões bobas por causa de Percy. Mas agora, vendo essa foto e sabendo que ela e o D4 tiveram uma vida inteira juntos, eu só consigo me imaginar tendo simpatia por ela. Em algum lugar ela deve estar chorando de preocupação sem saber ao certo o que está acontecendo com o namorado. E é assim que eu ficarei um dia, quando Percy ir embora.
Estava tão perdida em meus pensamentos que mal reparei na conversa entre Finnick e Percy.
–-O que Annie estava dizendo aquela hora na praia? Era uma profecia, não é? - disse Percy.
–- Sim, ela conhece algumas. Tem pesadelos frequentes com isso. Piorou quando ela voltou dos Jogos. - disse Finnick um pouco triste - Annie faz parte de uma família com problemas. Ela é descendente da ex-guardiã do Oráculo de Delfos.
Percy piscou um pouco confuso.
–- Não havia uma história sobre Oráculos não poderem se casar?
–- E há. Elas são servas de Apolo, não devem ter distrações como maridos, muito menos filhos. E esse foi o erro que a Oráculo cometeu: se apaixonou e teve um filho. Apolo obviamente não ficou contente com isso e considerando que naquela época os deuses já estavam com muita dor de cabeça por não saberem se estavam em sua forma romana ou grega, ele acabou exagerando no castigo e amaldiçoou os descendentes de Rachel Dare. A cada duas gerações aqueles que fazem parte de sua linhagem sofrem com pesadelos mostrando imagens da época da Guerra.*** - ele disse isso com um tom de raiva. Eu entendia isso. Como era amigo de Annie deve ter achado injusto que ela tenha recebido castigos por causa do erro de uma ancestral.
–- Acho que já é hora de voltarmos para o trem. Vão começar a suspeitar. - disse Percy, embora seu olhar mostrasse que ele queria continuar ali investigando tudo que rondava seu passado.

–--

Já no trem Effie nos bombardeou com muitas perguntas que ignoramos dando uma desculpa esfarrapada de que queríamos conhecer o distrito.
Em uma das paradas para abastecer nos foi permitido fazer uma caminhada perto dos trilhos.
Eu e Percy ficamos em um silêncio de meia-hora até ele dizer:
–- Eles precisam de um show. Algo que sempre irá causar muitas emoções. Um namoro qualquer não é tão convincente. - ele olhou pra mim - Por que não nos casamos?
Mordi o lábio ao ouvir isso. Baseado nos sonhos que eu já tive aquilo não era uma boa ideia.
–- Não dá, D4. Não quero que você fique preso a mim, a um relacionamento que não é verdadeiro...
–- Você é a parte importante do grupo, Katniss. A garota em chamas. Eu algum dia vou desaparecer no ar. Quero que esteja a salvo.
–- Mas e Annabeth? Você mesmo viu, vocês tiveram uma vida inteira juntos, tiveram filhos e netos. Eu me sinto como uma intrusa nisso tudo.
–- Você é, mais do que tudo, minha amiga, Catnip. Nunca será uma intrusa em nada. - ele disse com um pequeno sorriso.
Consegui sorrir também e falei:
–- Bom, vendo melhor assim, acho que um casamento não será tão ruim.
–- Sabia que iria concordar. Desde que Haymitch não dê vexame na festa, seremos um casal feliz. - ele disse rindo.
Ri junto e disse:
–-Acho melhor não convidarmos ele.
–- Ele vai se sentir excluído, então não. - ele colocou a mão no meu ombro - Não se preocupe, vai dar tudo certo. A sorte está sempre ao nosso favor, não é?
Dei de ombros e esbocei um pequeno sorriso.
–- É o que dizem.
Continuamos a andar pelos trilhos. Agora eu estava noiva, iria me casar. Porém, a sorte nunca estava ao meu favor. Eu sabia que aquilo não duraria muito tempo.