Esse dia realmente existiu? Aliás, algum dos últimos dias foi verdade? Ainda não consegui alinhar tudo em minha cabeça. E agora que acabei de ouvir no rádio que a guerra é pra valer, sinto os nós no meu cérebro ficando ainda mais apertados.

“Haymitch!” Peeta exclama assim que consegue sair do estado de choque. Talvez eu também estivesse desse jeito se fosse meu instrutor dos jogos quem tivesse dando notícias numa rádio clandestina em prol da revolução. Todos reconheceram a voz do bêbado que caiu do palco da colheita semanas atrás. E, se até ele aderiu a alguma coisa, é porque precisam urgentemente de ajuda.

“Temos que entrar em contato com ele. AGORA.” Katniss disse enquanto dispara pela sala em busca de um telefone. Achei a idéia meio mal formulada, já que não tínhamos sequer um número para o qual discar, mas ajudei na procura sem dizer nada. Assim que encontramos um aparelho a ficha caiu, e deixamos o rádio ligado na esperança de ouvir algum telefone de contato. Mesmo tendo acabado de acordar, estávamos todos moídos, com as mesmas roupas sujas da arena. Comemos uma espécie de sopa que Katniss tinha preparado, colocamos remédios nos ferimentos (meus braços já estão bem melhor) e tiramos na sorte para ver quem teria a chance de usar o banheiro primeiro. O da direita ficou para as meninas, e eu e Peeta alternaríamos o uso do da esquerda, começando pela vez ele. Sentei no sofá para esperar minha vez, enquanto Clove também esperava Katniss liberar o banheiro delas. Ficamos assistindo ao gato e a criança (Katniss disse que se chamava Phia) destruir o carpete com a boca.

“Acha que devíamos a deixar comer isso?” Perguntei. Clove fez uma careta, ela realmente detestava a menina. Será um problema se formos ter filhos.

“Por mim ela pode comer até doce de ácido sulfúrico. Devíamos aproveitar que estão distraídos e arremessá-los pela janela, o que acha?”

“Você não ficou nem um pouco boazinha depois de tudo que aconteceu?” Perguntei, deitando minha cabeça em seu colo e sorrindo. Tenho certeza que continuo bonito mesmo com o rosto coberto de fuligem, pois ela apertou a boca para impedir o sorriso e ficou vermelha. Comecei a brincar com as pontas de seus cabelos, esperando por uma resposta. Ela só mostrou a língua e segurou minha mão em seus fios castanhos.

“Não pense que só porque passamos por maus bocados que me tornei misericordiosa. Menos má, talvez. Mas não com todo mundo”

“Só comigo?” Perguntei levantando uma sobrancelha. Ela continuava teimosa, e se recusou a responder. Empurrou minha cabeça para longe, cruzou os braços e me olhou, desafiadora. Não consigo imaginar o que ela tem em mente, não parece a mesma Clove que disse que me amava há apenas alguns dias atrás. Era como se estivéssemos nos conhecendo outra vez ou algo do tipo. A verdade é que a situação me agradava bastante, afinal de contas foi tudo muito rápido na arena. Agora, mesmo com a guerra, sinto que podemos nos dar ao luxo de flertar um pouco mais. Apesar de achar que uma aproximação mais rápida não seria nada ruim...

Estava prestes a agarrá-la quando Phia mordeu o rabo do gato, e este pulou em minha direção. Levei um susto enorme e fui unhado por todo o braço esquerdo, então acho que agora estou no time “sumam com esses bichos daqui” também. Clove riu e disse que tinha avisado que eles só trariam problemas, mas resolvi dar uma segunda chance aos nossos novos companheiros, afinal, são só uma criança e um bichinho de estimação. 

Mesmo tendo sido criado para os Jogos, nunca fui privado de ter uma vida normal perfeita, com escola e companheirismo familiar. Meus pais eram meus maiores fãs, me davam lições sobre como ser um bom exemplo masculino e sempre fui modelo em tudo o que já fiz. Seria depor contra minha boa criação me livrar de Phia agora. Na minha casa a família se assemelha bastante àquelas das propagandas da capital. Para ser sincero fomos convidados para fazer gravações uma vez. Meus pais, eu e minhas irmãs possuímos uma beleza incomum mesmo para o Distrito 2, e até a vovó e nosso gato gatsby são anormalmente belos. Mas eles sempre gostavam de ressaltar que de nada valia ser apenas um rosto bonito.

Katniss foi a primeira a ficar apresentável, e Clove correu para se lavar logo que ela abriu a porta. Assim que Peeta saiu do banheiro, ele e Katniss foram discutir sozinhos na varanda. Imaginei que eles quisessem um pouco de privacidade e não me demorei em entrar no banho. A água era quente e senti que estava nascendo de novo. Ao sair fui direto para o quarto, e lá dentro já estava Clove, em um vestido rodado azul estonteante, com o cabelo solto, penteando as madeixas em frente ao espelho. Ao me ver ela deixou cair o pente e tentou agir naturalmente, mas estava claro que tinha ficado desconcertada com o fato de eu estar só de toalha. Foi ainda mais divertido que da outra vez que ela me viu assim.

“Não precisa ficar sem graça, a primeira vez que nos falamos eu estava exatamente desse jeito, se lembra? E uau, você está linda” Eu disse estendendo os braços. Ela revirou os olhos

“E eu fiquei sem graça exatamente da mesma maneira naquela vez, se você não se lembra. Tive que vestir uma das coisas que estavam no armário. Katniss já tinha pegado a roupa mais discreta, infelizmente. Tem algumas do antigo morador que devem servir em você, mas devo dizer que o Peeta também foi rápido” Ela respondeu enquanto se levantava e avaliava sua imagem no espelho. Em cima da cama estavam uma calça preta e uma blusa social branca. Agradeci por não terem me deixado uma gravata. Vesti-me atrás do armário enquanto Clove tentava ouvir pela porta o que Peeta e Katniss conversavam.

“Acho que estão pensando em liderar a revolta, mas não posso dizer com certeza. Katniss começou a chorar e Peeta levou-a para o quarto. Acho que ela dormiu, ele estava cantando para ela e os soluços pararam.”

“O que você acha?” Perguntei, cortando o assunto. As roupas ficaram perfeitas, eu tinha arregaçado as mangas até os cotovelos e ‘me esquecido’ de abotoar a camisa na frente. Ela virou-se e me encarou com os olhos verdes cheios de cobiça. Mordeu um lado do lábio inferior e tentou respirar. Lancei-lhe um olhar convidativo indicando a direção da cama e levantei as sobrancelhas, fazendo o possível para atraí-la. Não posso dizer que estava sendo injusto com Clove, já que o vestido que ela usava também era muito sedutor, e sua aparência cortava todas as minhas linhas de raciocínio.

“Ah, Cato, hm, isso não parece prudente. talvez a gente devesse jogar um pouco mais devagar...” Ela tentou evitar. Concordei com a cabeça, mas logo mudei de idéia. Talvez essa coisa de ir devagar pudesse esperar para mais tarde.

Avancei em sua direção e tomei Clove em meus braços, beijando-a depois do que parecem ter sido séculos que fiquei sem tocá-la. Não houve resistência, o que só confirmou que seu discurso anterior não passava de uma tentativa de refrear seus próprios sentimentos. Ela se encaixou em meu tronco e deslizou as mãos até meu peito nu. Abracei-a com mais força, por reflexo de meu corpo. Mas sua mente acordara, e ela tentou se distanciar. Tarde demais. Separamos os lábios para respirar e novamente nossos olhares se cruzaram.

“Posso te soltar, se você não me quiser mais” Provoquei-a. E então ela sorriu maliciosa e roubou-me um beijo, mais desejoso. Podia sentir o cheiro de lavanda que vinha de seus cabelos limpos, e o gosto viciante de seus lábios nos meus. Ela não era mais a garota distante que nunca tinha sentido nada por ninguém. De repente ela sabia exatamente o que fazer. E estava me deixando louco.
Eu desejava a envolver nos meus braços, desejava tocar sua pele, desejava tê-la para mim. Minhas mãos percorreram a cintura, descendo até o quadril, apertando sua pele suavemente. Senti um pequeno gemido no beijo. Sabia que havia feito algo bom para ela. Desci mais um pouco, segurando a coxa dela, levantando sua perna, a fazendo envolver minha cintura. Parei de beijá-la, só para sussurrar-lhe no ouvido

“Eu quero você”

Deslizei a mão que não segurava sua coxa até seu ombro, derrubando uma alça do vestido. Clove desceu um braço e abriu lentamente o zíper da minha calça. Senti meu corpo reagir imediatamente. Ela beijou meu pescoço, vários beijos seguidos, subindo até meus lábios, e a beijei com mais urgência. Tenho certeza de que teríamos ido mais longe se Phia não tivesse escancarado a porta.

Soltamos-nos imediatamente para olhar a criatura na porta, que estava agora sentada no chão nos fitando com um enorme sorriso no rosto. Sentei na cama, cheio de ódio pelo fim daquele momento. Clove cobria o rosto com as mãos, mas tenho certeza que sua vontade era de ter algumas facas escondidas no vestido e fazer de Phia um lindo amolador para elas.

“Isso não pode ser sério!” Exclamei “O que você veio fazer aqui, Phia?”

Ela soltou uma risada sonora, e conseguiu dizer as palavras “Comida” e “Gato”, então deduzimos que algum dos dois devia estar com fome. Clove foi contrariada até a cozinha preparar-lhe um lanche, e fui tentar ajudá-la. Para a sorte de Phia não havia ácido sulfúrico na despensa, então Clove usou apenas alguns cereais para a receita. Enquanto Phia dava comida para o gato na colher, ouvimos algo relevante no rádio

“...Os que quiserem entrar em contato com a rádio para mais informações, disquem *876 55 002 9783. Estaremos respondendo quaisquer perguntas nas próximas duas horas”

Não precisei me mover, e Clove já estava com o telefone nas mãos. Corri para chamar Peeta e Katniss, e eles vieram rápidos até a sala. Mas infelizmente nem eu nem Clove conseguimos decorar o número a tempo.

“Talvez seja *785...” Tentei

“Não, começa com 8, tenho certeza.” Clove esclareceu. Estávamos perdidos. Ficamos um tempo em silêncio, apenas trocando nervosos olhares com todos na sala, até que o gato pulou no colo de Clove, e ela o levantou pelas patas dianteiras cheia de ódio

“SAI DAQUI, SEU BICHO ESTÚPIDO! VOCÊ É APENAS UMA BOLA DE PÊLOS IDIOTA QUE NÃO SERVE PARA NADA!”

O gato encarou Clove assustado, miou baixinho e balançou o enorme rabo lilás. Ela não parou com a bronca

“Miar não vai ajudar a lembrar o número, vai, seu monstrinho imprestável? Agora me dê apenas um motivo para que eu te mantenha vivo, que tal?”

E então o gato fez algo inesperado. Sua coleira se iluminou, decodificando o que Clove tinha acabado de lhe dizer. Ele compreendeu, e então emitiu algo bem diferente de um miado

“*876 55 002 9783”

Peeta olhou incrédulo. Eu perdi o fôlego. Katniss começou a rir e Clove apenas colocou o gato no chão. Talvez ele não fosse tão inútil assim.

Katniss tomou o telefone das mãos de Clove e discou o número o mais rápido que pôde, que deu apenas dois toques antes de ser atendido. Mesmo há certa distância era possível escutar a voz de Haymitch do outro lado da linha. Katniss começou a falar ininterruptamente que era ela, e a contar sobre nós e nossa localização. Haymitch lhe fez várias perguntas e depois deu uma série de comandos. Ficaram pouco mais de uma hora ao telefone, e enquanto isso Clove, Peeta e eu ficamos esperando na sala, impacientes. Quando voltou, Katniss tinha muitas explicações a dar, e foi logo nos informando tudo

“Haymitch está bem, ele e Gale estão tomando frente no levante. O distrito 13 ainda existe, e é quem está fornecendo as armas e aerodeslizadores aos rebeldes.”

“O distrito 13?” Perguntou Clove, chocada. "Aquele lugar era apenas ruínas há mais de setenta anos, como podiam existir sobreviventes por lá?"

“A Capital fez um acordo com os moradores de lá, porque eles têm armas nucleares. Fingiriam que o distrito estava destruído em troca de paz. Eles agora vivem no subterrâneo. Haymitch disse que é organizado, mas não há bebidas.” Ela disse como se fosse irrelevante. Continuou depressa, dessa vez apenas para Peeta

“Querem nós dois na base antes de anoitecer. A presidenta do 13 pensa que divulgando nossa imagem vivos fará com que a causa ganhe mais prestígio e adeptos. Há uma especulação de que Snow regressará antes do previsto, e os bombardeiros começarão pelo distrito 12. Haymitch já mandou um aerodeslizador, deve estar a caminho nesse exato momento.”

“Ótimo, e o que iremos fazer assim que chegarmos no distrito 13?” Perguntei

“Vocês não irão com a gente” Ela respondeu “Eles também têm uma missão para vocês”.

Eu e Clove a encaramos espantados. Ela percebeu que uma explicação era necessária e prosseguiu

“Os distritos 1 e 2 não estão do nosso lado, ainda. Eles querem que vocês dois vão até lá e tentem convencê-los a lutar pela causa. As áreas de ambos os distritos estão bloqueadas, por isso vocês dois terão de ir por terra. Haymitch disse que mandará o que vocês precisam para a viagem amanhã de manhã. Ah, também falei para ele sobre Phia, ele disse que ela e o gato terão de ficar com vocês”

“O QUE?” Foi quando Clove se manifestou. “Prefiro engolir uma caixa de pregos enferrujados à ter que cuidar dessa pirralha. Com certeza há espaço para ela e o bicho no distrito 13, vocês podem levá-los com vocês”

“Ordens do Haymitch, desculpe Clove, não podemos fazer nada.” Disse Katniss sem muita emoção na voz. Peeta mudou de tópico rapidamente

“Vocês não estão surpresos por seu distrito não ter feito nada? Quer dizer, achei que fossem ficar insatisfeitos quando prenderam vocês dois na arena”

“Devem ter ficado.” Eu disse “Mas grande parte da população do 2 é constituída por pacificadores, a central de treinamento fica lá. Eles são condicionados para ficar do lado da Capital independentemente do que acontece nos jogos.”

Peeta e Katniss ficaram surpresos com a informação. Compreendi o espanto, pessoas de distritos diferentes não sabem nada sobre os distritos vizinhos, a não ser que sejam trabalhadores do governo ou algo do tipo. Ouvimos o aerodeslizador chegar e corremos para a varanda. Haymitch acenou para seus pupilos e lançou uma escada de corda. Katniss e Peeta nos abraçaram e subiram para o meio de transporte. De lá de cima, Peeta nos jogou um pacote e disse

“Manteremos contato”

Acenei com a cabeça e segurei a embalagem enquanto o aerodeslizador sumia no horizonte. Foi tudo tão rápido que continuei pensando que talvez esse dia realmente não tivesse existido.