Asas Negras escrita por Jenny Fell


Capítulo 8
Capítulo 8




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/209036/chapter/8

Entrei na cozinha com um ligeiro ar de indiferença. Charlie me observou cautelosamente. Respirei fundo, e pude sentir o doce e fresco aroma dos cookies.

- Como estão nossos biscoitos? – perguntei.

- Eu os coloquei no forno. – Charlie falou, abrindo um sorriso satisfeito.

- Estou tão orgulhosa de você. – falei com um sarcasmo contido.

Avaliei o estado da cozinha. Estava toda suja, cheia de talheres esparramados para todos os cantos, com pedaços de massa de cookies no chão, farinha para todos os cantos da mesa e pedaços de chocolate meio amargo no chão.

- Tia Dorothy vai me matar. – falei, arregalando os olhos.

- Se você quiser, eu... – Charlie começou.

- Nada disso. Você não vai limpar isso tudo. – interrompi-o. – Você olha os cookies e eu limpo.

Charlie não falou nada, o que eu entendi como um sim. Fui até a despensa e peguei uma vassoura que estava encostada na parede. Varri todos os pedaços de alimentos no chão de joguei no lixo. Logo em seguida, peguei um pano molhado e esfreguei-o pela mesa, mas a farinha insistia em permanecer ali. Suspirei.

- Olha, Emy, você tem certeza que não quer que eu... – Charlie começou, mas novamente eu o interrompi.

- Cuide dos cookies. Eu limpo a cozinha.

Por fim, consegui limpar a mesa completamente. Olhei para a pia de soslaio e fui juntando todos os talheres esparramados pela cozinha.

- Já está na hora. Pode tirar do forno. – falei, consultando meu relógio de pulso.

Enquanto Charlie tirava do forno uma bandeja de cookies frescos e quentinhos, lavei os talheres, um por um. Depois os sequei, e os pus de volta no lugar.

- Parece bom. – refleti, enquanto enxugava as mãos na minha calça jeans. Peguei um cookie cuidadosamente da bandeja, segurando-o com a ponta dos dedos, para não me queimar. Quando experimentei, não pude deixar de abrir um sorriso.

- E aí? Ficou bom? – Charlie perguntou.

- Devíamos abrir um programa de culinária. – sugeri, brincando.

Charlie também pegou um cookie. Peguei a bandeja e saí andando em direção à garagem.

- Aonde você vai? – perguntou.

- Oferecer um para o Dean.

Quando cheguei à garagem, logo fui atingida pelo cheiro de velharias. Dean estava de costas para mim, com um joelho no chão, tentando decifrar alguma coisa nos pneus dianteiros.

- Oi, Emily.

- Como sabia que eu estava aqui? – perguntei. – Eu não fiz barulho algum.

Dean virou-se para mim. Pareceu um pouco desconcertado, como se procurasse uma desculpa para sair de uma roubada. Coisa que Dean Lakeford nunca faz.

- Eu senti o cheiro dos cookies. – falou, enfim.

Puxei uma cadeira velha de madeira para perto de Dean e do Chevy e me sentei ali, olhando para ele, fascinada, enquanto ele trabalhava.

- Você quer um cookie? – perguntei.

- Não, obrigado.

Franzi o cenho.

- Mas eles estão uma delícia.

- Eu não estou com fome. – falou gentilmente.

Assenti e dei mais uma mordida no meu cookie, saboreando a massa e os pingos de chocolate enquanto via Dean mexer nos pneus.

- Está tendo sorte aí? – perguntei.

Dean sorriu.

- Não muita, na verdade.

- Isso é mal. – murmurei.

- Nem tanto. – falou, abrindo mais um sorriso de sua imensa coleção.

Deixei minha expressão se transformar em pura confusão.

- Por que não? – perguntei.

Dean largou suas ferramentas no chão e olhou para mim com um sorriso zombeteiro.

- Assim posso passar mais tempo com você.

Torci para não ter ficado boquiaberta. E então pigarreei.

- Eu... Hum... Já vou.

Eu queria ter retrucado, queria ter algo para dizer. Mas Dean sempre me deixava sem palavras. Seu efeito sob mim me deixava misteriosamente vazia, desprovida de imaginação.

Dean não respondeu, apenas voltou sua atenção para seu trabalho. Enquanto eu ia para a cozinha, consultei meu relógio de pulso. Lucy provavelmente chegaria dali a cinco minutos. Dei uma olhada rápida na sala. Charlie estava lá, entretido com algo que passava na TV a cabo. Seus cachos castanhos caíam desgrenhados sobre seus olhos.

- Eu vou trocar de roupa. – avisei gentilmente.

Subi os degraus cuidadosamente, imediatamente me lembrando de quando eu tinha achado que havia alguém na casa. Seria minha imaginação? Tentava me lembrar, mas quanto mais insistia no assunto, mais os detalhes se tornavam difíceis de serem relembrados. Era como se alguém tivesse distorcido a imagem, dificultando o acesso a minha memória. Era um homem ou uma mulher? Teria mesmo falado comigo? E se eu tivesse apenas tropeçado na escada enquanto minha imaginação me pregava peças? O que ele tinha dito?

Afastei essas lembranças perversas de minha mente e me concentrei em como eu iria tomar banho e me arrumar em apenas cinco minutos. Tirei minhas roupas o mais rápido possível, tomando o cuidado de trancar a porta. Tia Dorothy havia saído para seu passeio diário com suas – idosas – amigas, de modo que ela não me incomodaria, já que ela não gostava que eu trancasse a porta do meu quarto.

Fui direto para o chuveiro, me contorcendo de frio enquanto esperava a água esquentar. Meus músculos relaxaram quando entraram em contato com a água. Quis ficar ali o resto da tarde, apenas sentindo a água batendo em meus ombros, mas Lucy já estava para chegar. Com esse pensamento, agilizei no meu banho.

Vesti um suéter de caxemira branco e uma calça jeans preta, e calcei chinelos de dedo. Destranquei a porta com desleixo, e desci as escadas rapidamente, esperando encontrar uma Lucy entediada sentada no sofá da sala. Mas não foi isso que vi.

Havia fogo por toda parte. As chamas consumiam pouco a pouco a geladeira e o fogão. Olhei em volta, percebendo que todo esse fogo vinha do forno. Gritei, mas minha voz não saiu. Minha garganta parecia áspera, e eu disparei a tossir. Corri, tentando alcançar o telefone para ligar para o corpo de bombeiros, mas quando o peguei, ele se transformou em chamas, queimando minha mão. A dor me atravessou com veemência, e dessa vez consegui gritar. Bati a mão na minha calça várias vezes, esperando que o fogo se apagasse, mas ao invés de diminuir, ele aumentava, se espalhando pelo meu corpo como se me engolisse.

Minha cabeça ardia, e senti minhas pernas vacilarem. Desabei no chão num baque surdo, me contorcendo e tentando me livrar daquela sensação. Tentei me agarrar em alguma coisa, mas minhas mãos só encontraram o ar e a fumaça. Eu me debatia inutilmente, sentindo que estava bem próxima da morte. Meus braços foram perdendo a força, até que pararam de se mexer. Senti como se estivesse sendo sugada para outro lugar, como se estivesse tentando me manter acordada depois de um mês sem dormir.

De repente, a dor cessou. Eu não sentia mais o cheiro da fumaça, e minha garganta estava renovada. Eu estava renovada. Estava tudo completamente escuro, e eu não conseguia enxergar nada além do vazio. Estava eu morta? Será que morrer era assim? Imediatamente, ouvi uma voz familiar.

- Emy? O que você está fazendo aí?!

Não consegui identificar quem era. Mas sabia que era alguém conhecido. Estaria eu no céu? Será que aquela voz era da minha mãe? Não. Era uma voz masculina. Então seria a voz do meu pai? Não. Era uma voz mais jovem, uma voz de adolescente. Seria um anjo? Ou será que era...

- Emily! – gritou outra voz. Essa era mais profunda, mais bela, e era bem provável que fosse um anjo.

Não demorou para que eu percebesse que estava de olhos fechados. Abri-os, bem devagar. Esperei encontrar-me em cima de montes de nuvens brancas e fofinhas, mas eu estava na cozinha da minha casa. Olhei em volta, procurando algum vestígio do incêndio, mas tudo estava intacto.

Havia dois garotos ajoelhados bem perto de mim. Suas bocas moviam-se, conversando comigo. Mas eu não os ouvia. Era como se meus ouvidos estivessem entupidos. Estreitei os olhos, tentando reconhecê-los. Eram bastante familiares, mas eu não me lembrava deles.

O tempo parecia correr em câmera lenta. Senti uma mão afagar meu braço, e tudo voltou ao normal repentinamente. No início, tapei os ouvidos. O barulho das palavras saindo da boca de Charlie era insuportável. Eu não estava mais acostumada ao barulho, tudo de repente parecia muito alto para meus ouvidos suportarem.

Sentei-me devagar, aproveitando a sensação de maciez do tapete em que eu estava deitada.

- Emy, o que aconteceu? – Charlie perguntou. Parecia desesperado.

Eu tinha as palavras na ponta da língua, mas quando fui contar a Charlie o que havia acontecido, nada saiu. Eu simplesmente não me lembrava. Não me lembrava de absolutamente nada. Vasculhei minha mente em busca de informações, qualquer lembrança que fosse. Mas a última coisa que eu me lembrava era de descer as escadas.

- Eu não me lembro. – falei, e minha voz saiu fraca.

- Ela deve ter desmaiado. – Dean comentou, com a voz baixa.

Charlie respirou fundo, tentando se acalmar.

- Lucy ligou. Disse que vai se atrasar um pouco.

Uni as sobrancelhas, num misto de alívio e confusão.

- Lucy? – questionei.

- Você não se lembra dela? – Charlie perguntou pasmo.

- Não. – admiti.

- Lucy é sua amiga. – Dean falou, parecendo milhões de vezes mais confiante que Charlie. – Ela vem te visitar hoje.

Levantei-me e olhei em volta. Tudo estava girando em todas as direções. Senti-me perdendo o equilíbrio, e estava prestes a desabar no chão novamente, quando um par de mãos fortes me segurou.

Quando tudo entrou em foco novamente, percebi que Dean me abraçava. Não, era eu quem o abraçava, procurando equilíbrio. Ele me segurava ali para que eu não caísse. Imediatamente percebi que eu gostava da sensação de estar ali tão perto de Dean.  

Afastei aquele pensamento da cabeça e recuei, soltando-me dos musculosos braços de Dean e imediatamente me arrependendo de tê-lo feito. Senti-me frágil e desequilibrada, mas lutei para não cair de novo. Pigarreei, testando minha garganta.

- O que houve? – perguntei. Para minha surpresa, minha voz saiu forte e absoluta, exatamente o oposto do que eu me sentia.

- Ouvi você gritar. – Charlie disse. – E vim correndo até aqui. Então te encontrei desmaiada no chão.

Eu não me lembrava do que havia acontecido para eu ter gritado. Eu não me lembrava de absolutamente nada depois de descer as escadas.  Era tudo um breu imenso que se estendia ainda mais a cada vez que eu tentava procurar alguma informação sequer nele.

- Eu preciso de água. – murmurei mais para mim mesma. Por que de repente eu sentia uma sede louca?

Um minuto depois, eu já tinha bebido três copos de água, e ainda queria mais.

- Emy... Acho melhor parar de beber tanta água.

- Mas eu estou com sede. – tentei resmungar, mas minha voz saiu em forma de choramingo, como uma criança pedindo um brinquedo ao pai.

Eu sentia algo queimando em minha garganta, e a cada copo de água que eu bebia, essa sensação parecia ser um pouco amenizada. O que era tudo aquilo? Senti imediatamente um desejo imenso de saber o que havia acontecido. Era um desejo tão grande que beirava o desespero.

Sobressaltei-me com um barulho eletrizante e agudo que registrei como a campainha. No momento, meu corpo e meu subconsciente trabalhavam mais rápido que minha mente. Eu diria que estava boiando.

- Pode deixar, eu atendo. – Dean falou. Não pude decifrar sua expressão, mas acho que ele notou minha confusão.

Quando Dean estava perto da porta, segurei-me no braço de Charlie. Ainda estava um pouco tonta, e um misto de confusão e cansaço quicava por meu cérebro, causando um pouco de dor de cabeça. Parecia haver uma partida de pingue-pongue dentro da minha cabeça, e eu não suportava todos aqueles sintomas estranhos.

Percebi que meus olhos estavam fechados. Esfreguei minhas têmporas e procurei concentrar-me em ouvir. Um som bem baixinho de espanto ecoou dentro de minha cabeça, e registrei-o como feminino.

- Ahn... A Emily está? – perguntou uma voz fina e aveludada, parecendo conter uma timidez fingida, não muito normal para quem estava falando.

Abri os olhos e deixei minhas mãos caírem pesadas em meu colo. Lucy estava na porta, enrolando uma mecha de cabelo avermelhado entre dois dedos. Tinha um olhar estranhamente alegre e insistente, que nunca teria reconhecido como seu. Dean estava encostado no batente da porta em uma postura meio preguiçosa, e pude sentir um sorrisinho quase simpático estampado em seu rosto e exibindo suas perfeitas covinhas. Senti a mão quente e macia de Charlie em meu ombro, e pude notar que ele estava olhando para mim com preocupação.

- Estou aqui. – falei. Tentei soar gentil, mas minha voz saiu um pouco abalada. – Entre.

Observei com o canto dos olhos Dean abrir passagem para Lucy, que o cumprimentou com um sorrisinho provocador.

Ela vestia jeans colados ao corpo e uma regata cor-de-rosa lisa com um simples casaquinho de algodão por cima, o que deveria ser realmente desconfortável, devido ao clima frio que vinha fazendo nos últimos dias. Dean remexeu-se, um pouco desconfortável, murmurou alguma coisa ininteligível e saiu da sala. Provavelmente estaria retornando ao seu trabalho. Lucy se aproximou de mim cuidadosamente, parecendo tentar se equilibrar em seus sapatos fechados de salto agulha. Ela pareceu aliviada ao sentar ao sofá.

- Você está bem? – perguntou, com um ligeiro ar de preocupação. Só então pareceu perceber a presença de Charlie ali, e deu a ele um sorrisinho tímido, que Charlie retribuiu.

Eles não costumavam se falar no colégio. Para dizer a verdade, eu nunca os vira se falando. Charlie e Lucy pertenciam a grupos escolares diferentes. Populares e não-populares. Não era muito comum que eles se falassem.

- Sim. – respondi. Infelizmente, minha voz disse o contrário.

- Você não parece bem. – Lucy falou, franzindo um pouco as sobrancelhas, como se diante de um enigma.

- Emily acabou de desmaiar. – Charlie contou, e sua voz saiu rígida.

- O que aconteceu? – perguntou.

- Não sabemos. – respondi.

Lucy parou de fazer perguntas. Ela não parecia realmente interessada em meus problemas. Juntou as mãos e respirou fundo.

- E aí, o que vamos fazer?

Não respondi.

- O que Dean está fazendo aqui? Onde ele foi?

- Ele está consertando o carro. – falei simplesmente, parecendo cansada.

Minhas pálpebras pesaram, e eu voltei a fechar os olhos. Aconcheguei-me no sofá e deitei a cabeça no colo de Charlie, sem me preocupar com o que quer que fosse acontecer a seguir, e me senti como se estivesse caindo. Tão logo já estava sonhando.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Asas Negras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.