Shindu Sindorei - as Crianças do Sangue escrita por BRMorgan


Capítulo 16
Capítulo 16




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Vilarejo dos Windrunner.

                Era final da tarde, ou pelo menos era o que lembrava. Tumba dos Auntumn-Leaves, amigos queridos, desonrados na morte. A vila, destruída. Sua casa, a bela casa que construíra com seu irmão mais velho. A família iria morar ali e abrigar os refugiados do Sul. Sangue seu espalhado pela estradinha que levava ao Windrunner Spire. Espíritos passavam por ele como se estivessem familiarizados com tudo aquilo. Ouviu alguém gritar ao longe, era uma de suas irmãs mais novas. Gritou de volta, mas o som que saiu de sua garganta foi um gorgolejo horrendo e nefasto. Ele sabia que estava ali, o seu corpo estava ali, a sua consciência também, mas por que sentia esse tremor nos ossos? Por que sua pele estava fria e insensível ao toque? Por que ao rasgar a carne do braço do próprio irmão que ajudara a construir parte daquela casa e não sentia remorso? Por que os gritos de Lirath não chegavam aos seus ouvidos? Por que a sensação de vê-lo morrer em seus braços era vazia e estupidamente prazerosa? Tentou perguntar isso para o irmão agonizante no chão, tão novo nas artes da vida. Seria mago caso terminasse os estudos.

                O som que saiu foi um gemido pútrido e desconexo. Lirath morreu sangrando aos seus pés, o Flagelo dominando seu corpo segundos depois da morte, o transformando em algo parecido como ele. Então a realidade veio à tona. Todas as memórias que escapuliram quando o poder do Rei Lich invadiu seu corpo morto há mais de 2 anos voltaram como um lampejo. Lirath gemia como um deles. E por Elune, era agora mais um deles!

 - Não confie em ninguém!! – gritou alguém atrás dele, a espada curva atravessou o coração da criatura antes seu irmão menor. Seu querido irmão Lirath, tão prodigioso nas artes da vida. A criatura caiu no chão com mais sangue espalhado em seus pés. Sentia seus pés agora. Descarnados e frios e bolorentos e terrivelmente doentios. A espada veio para seu corpo, mas ele conseguiu conter o ataque colocando o braço na frente, a lâmina penetrou em seu osso e o trincou até a metade. Era o seu pai, Theridion do outro lado da lâmina. – Não confie em ninguém... – repetia o velho feiticeiro que acabara de assassinar os seus parentes e jogado sua esposa no penhasco atrás da casa após incendiá-la com uma tocha.

 - Pai, piedade por favor! – gritou Sylvos estridentemente, sua garganta cuspiu teias de aranha e outros detritos. Há quanto tempo estava sem falar?

 - Você não é mais meu filho... Não confio em ninguém... – o velho balbuciava, rosto suado, roupa de batalha manchada de sangue e muco, os olhos estavam turvos e cheios de lágrimas.

 - Sou eu! Sylvos! Seu filho! – Sylvos tentou se aproximar, mas a lâmina da espada deslizou em seu braço, decepando-o e fazendo um corte em seu peito. Afastou-se imediatamente. Não sentira dor alguma? O braço se contorcia no chão. Mais decrépito que seu corpo agora. O anel de casamento estava naquela mão.

 - Fora de minha casa... – disse o pai no mesmo estado de choque, mas recolhendo o seu braço maldito e tirando a jóia que simbolizava o seu amor eterno por Serenath, sua donzela. Um grito estridente o fez virar os olhos para a entrada da casa em ruínas. O grito lamurioso de uma banshee. – Fora de minha casa!! – sentenciou o velho Theridion com espada em punho. Sylvos não pensou direito, correu em direção ao grito como uma criança atraída pelo pôr-do-sol. Tremia de medo pela primeira vez em sua vida adulta. Outro grito foi ouvido, mas dentro da casa dos Windrunner.

                Era seu pai cremando o irmão Lirath.

                Alguém o segurou pelas vestes quando atravessou pelo Portão principal da vila.

 - Sylvos, é você? – perguntou a voz um tanto cavernosa.

 - S-sim, sou eu... – o elfo reconheceu a figura a sua frente. Era sua irmã-gêmea, Sylvanas Windrunner, a arqueira mais habilidosa de Azeroth. Ela o abraçou fortemente.

 - Você está seguro comigo... Você está... – tateando as vestes do irmão e se certificando que ele estava bem. – Seu braço...?

 - Ficou lá atrás...

 - E Lirath...?

 - Eu o matei... – confessou Sylvos com a impressão de ter lágrimas nos olhos, mas era só uma ilusão em sua mente. Ele não choraria nunca mais. Sylvanas cerrou os punhos e rangeu os dentes, gritou estridentemente no rosto do irmão. – Eu o matei, Sylvanas... – a irmã gêmea o arrastou pelo caminho com uma força indescritível. Sylvos não sabia o que eu fazer a não ser dominado pela irmã. – Eu o matei... – repetia Sylvos pelo caminho lembrando-se da primeira coisa que viu ao acordar do domínio do Rei Lich: Lirath se contorcendo no chão, mortalmente ferido no rosto e pescoço.

                Outros se juntaram a eles. Outros piores, outros conhecidos. Nenhum deles era Serenath.

 - A nossa vida será mais difícil daqui em diante, Sylvos... – disse Sylvanas cobrindo seus cabelos tão prateados pela morte. – Seremos odiados e temidos. Confundidos com aqueles malditos que nos amaldiçoaram. Eles travarão guerras conosco por sermos o que somos. Nossas famílias não existem mais, ouviu? Não há mais os Windrunner! – sacudindo-o contra uma árvore. – Você não é mais meu irmão, é meu fiel servo, entendido? – Sylvos concordou por algum motivo bobo. Parecia realmente uma criança atraída pelo pôr-do-sol e esse pôr-do-sol era Sylvanas. Ninguém discordaria disso ali e quem ousasse fazer isso, morreria.

 - S-sim minha Dama Sombria... – disse ele balbuciando.

 - Não podemos ter nossos nomes, nossas antigas vidas. Nossos objetivos são outros agora. A derrota de Arthas Menethil é o que nos interessa. Derrubar sua cidade natal e tomar o poder de Lordaeron, esse é o caminho para nossa libertação. – Sylvos quis dizer algo como “a minha libertação foi você, Sylvanas.”, mas preferiu ficar calado, o poder de dominação dela era imenso e esmagador. – Quem é você, fiel servo? – perguntou Sylvanas a uma carcaça que se levantava trêmula no caminho.

 - Andreas Sunsorrow... – grunhiu a carcaça. Era um elfo também.

 - A quem obedeces agora?

 - A Dama Sombria... – respondeu ele prontamente. Sylvos reverenciou o novo companheiro de caminhada. E assim findava a última invasão do Flagelo nas Terras Fantasmas.


Vilarejo dos Windrunner atualmente.

Kalí se mexeu novamente na cama, parte de sua blusa em tecido de linho subiu um pouco em seu tronco, revelando uma marca acima da bacia. Sorena encarou aquele pedaço de pele por muito tempo, até perceber que a Vigia já havia dormido. Com o olhar perdido, Sorena rastejou até perto da cama de Kalí e verificou a marca de perto. Era uma cicatriz reta, como se uma faca de lâmina grossa tivesse atravessado aquela parte da pele.

                Era tão bom entender como era o corpo de outros, pensou Sorena imaginando quando a Vigia recebera o golpe de faca. Pela espessura na pele e o modo como foi cicatrizado, Sorena deduziu que assim que a faca fora retirada, estancaram o ferimento e cauterizaram antes que o sangue se esvaísse do lugar. Em volta havia manchinhas de cauterização, como queimaduras na pele que se curavam após um tempo. A respiração de Kalí estava pausada, em um sono tão pesado que Sorena sentiu aquela vontade de investigar mais sobre o ferimento cicatrizado. Com todo cuidado, levantou mais a blusa de linho e verificou bem de perto ao redor da marca, como a cauterização foi feita (Ferro quente improvisado. Seria de um formão de lareira ou outro objeto parecido? Por que ela não deixou alguém costurasse o ferimento?), talvez o machucado ocorrera em uma época em que não se podia chegar a tempo em Silvermoon ou a Ilha de Sunstrider. Deve ter doído e muito. Será que havia tato ali? Cauterização fazia a pele ficar sensível em alguns lugares e às vezes sem tato algum. Resolveu tocar a cicatriz e sentir a elevação da pele em seus dedos. Uma corrente elétrica pareceu passar entre os dedos de Sorena e a pele de Kalí, ela se afastou com medo.

                Seu coração estava quase saindo pela boca e estava difícil de respirar. Era como se o perfume vindo do corpo de Kalí tivesse envolvido tudo ali em um casulo sufocante. A vontade de tocar novamente o machucado foi mais forte que seu bom senso. Com as pontas dos dedos sentiu a textura da cicatriz, como a pele era um pouco áspera, mas mesmo assim sensível. Após um tempo de investigação, atreveu-se a prolongar o toque, subiu os dedos para a pele do abdômen de Kalí e sentir como os músculos ali se comportavam durante o sono. A experiência foi avassaladora para seus sentidos, era como se estivesse com a vida de Kalí em suas mãos. Subiu mais um pouco e com a mão espalmada sentiu bem perto o ruído dos pulmões e se seu auto-controle permitisse, conseguiria sentir os batimentos cardíacos da elfa. Kalí virou-se sem anunciar e ficou de barriga para cima, ainda imersa no sono profundo.

                Sorena pensou em como seria pesquisar a fundo tudo que um corpo poderia oferecer aos estudos. Como tudo ali dentro se encaixava e funcionava ao mesmo tempo. Mentalizando as aulas de seu Mestre Derris, tentou compreender como os órgãos internos estavam dispostos dentro de alguém. Mas mesmo que as aulas de anatomia estivessem voando sob seus olhos, a única coisa que Sorena conseguia visualizar era o corpo esguio e levemente arrepiado de Kalí na sua frente. Como os poros se dilatavam e os pêlos minúsculos se eriçavam para denunciar e proteger a pele do frio. Por que não eram só os poros? Por que os seios de Kalí também estavam eriçados? A mais nova sentiu a garganta travar e se afastou um pouco. A respiração de Kalí deu uma pausa longa para um suspiro profundo, suas mãos que estavam apoiando a cabeça, passearam pelo corpo e ajustaram a blusa para se proteger do vento gelado que vinha das frestas das janelas. O corpo de Sorena reagiu imediatamente quando a mais velha tocou os seios com um leve suspiro e voltou a sua posição original, uma das mãos atrás da cabeça e outra segurando o coldre da faca na cintura. 

                O pensamento de ver Kalí sem a blusa assomou a mente de Sorena e ela não conseguiu lidar com isso facilmente. Mentalizou aquilo que poderia na hora. Órgãos internos dispostos em perfeita harmonia, cada um realizando uma função, cada um mantendo o equilíbrio. Um corpo aberto para examinar melhor. Era isso que Sorena precisava e não um exemplar vivo. Quando voltasse a Undercity, iria ao Apotecário estudar mais. Não a sensação de prazer que sentira ao ficar olhando a mulher mais velha em seu sono, mas sobre como funciona as coisas do lado de dentro.

                Recolheu os livros que a interessava e deitou-se na cama próxima a Kalí. Tentou se concentrar na leitura, mas algo a fazia sempre bisbilhotar o que a mulher ao lado fazia em seu sono.

 - Estou ficando louca... Estou ficando louca... – ela cantarolou para si para espantar o sono e se concentrar nos livros.


Undercity semanas depois da queda em Lordaeron.

                As artes da vida se transformaram na morte. Sylvos se aprimorava nos livros de necromancia que Lordaeron mantinha nas bibliotecas subterrâneas. Também se fartou da carne dos bibliotecários dali, nada como um lanchinho antes da leitura.

 - Algo de novo, Apotecário? – Sylvos cuspiu um pedaço de osso que mastigava e levantou de sua cadeira.

 - O gosto de carne humana é infinitamente mais saborosa que a dos restos que encontramos por aí.

 - Magnífica descoberta. – disse o outro apotecário, era Putress. – Mas a nossa Rainha espera resultados mais... rápidos.

 - Estamos mortos, meu senhor! Temos todo o tempo do mundo!

 - A Dama Sombria não pensa desse jeito...

 - Oh sim... – ele se desculpou fingidamente. Um aprendiz apareceu se arrastando apreensivo.

 - Os embaixadores chegaram de Silvermoon. Trouxeram aprendizes...

 - Oh! Comida de graça? – gracejou Sylvos.

 - Derris... – admoestou Putress. – Aprendizes. Pessoas com quem podemos confiar nossos ensinamentos para quando chegar o momento crucial possam lutar ao nosso lado.

 - Sempre adorei a perspectiva romântica de vocês... Buchas de canhão, é isso que são. Silvermoon? Um bando de viciados em magia querendo saciar seus egos.

                Na sala do trono nos subterrâneos das ruínas do Palácio de Lordaeron, os embaixadores de Silvermoon cumprimentavam as autoridades de Undercity, membros do Apotecário recebiam os aprendizes de magia com respeito e cortejo. Os elfos do sangue não eram acostumados com o ambiente mórbido do lugar. Sylvos ajeitou suas vestes e escondeu o braço decepado, em um gesto ancestral, fungou e cutucou o nariz com certa timidez e foi imponente para o líder dos Magos de Silvermoon, o Grão-Magistrado Rommath.

 - Bem-vindos ao nosso Lar... – ele disse com uma voz mais grave que o normal.

 - Gratos pela recepção senhor...

 - Derris, do Apotecário Real de Undercity. – apertando bem a mão do elfo. Conhecia-o de algum lugar, só não sabia quando e onde.

 - Estamos honrados pelo convite... Silvermoon tem extremo interesse em compartilhar dos segredos da magia com vosso Apotecário.

 - E pode ter certeza que nosso humilde espaço de magia arcana está à sua disposição. – Derris deteve o olhar em uma menininha elfa ao lado do Líder da Ordem de Clérigos de Silvermoon. Ela estava coberta por uma capa grossa, mas em seu rosto pálido havia marcas de violência, sangue coagulado em algumas mechas e um corte enegrecido em uma das orelhas. – Clérigos...?

 - Silvermoon gostaria de mostrar a hospitalidade de nossos clérigos...

 - Não precisamos de clérigos... – grunhiu Derris ainda com o olhar fixo na menininha. A presença de Sylvanas Windrunner fez todos na sala do trono virarem suas atenções para o trono. Ao seu lado estava seu conselheiro, o Lorde demônio Varimathras. Ela falou com poucos e foi breve em seu discurso de acolhida. Sylvos sentiu suas vestes serem puxadas com receio, olhou para baixo e viu a menininha de grandes olhos azuis cabelos loiros palha com um bico enorme de choro.

 - Eu me perdi de minha tutora... O senhor a viu? – perguntou ela. Sylvos teve vontade de esmagá-la com um golpe, mas freiou sua indignação e fez um severo não com a cabeça. – Ela é desse tamanho ó... – a menininha tentou mostrar o tamanho da tutora. – Tem cabelos vermelhos e se chama Serenath, não a viu? – o apotecário grunhiu algo em resposta e caminhou até um guarda arrastando a menininha ao seu lado.

 - Ache a tutora da garotinha. O mais rápido possível. Se não vai ter que arranjar um esquife duplo para seus pedaços, soldado.

 - S-sim senhor Apotecário... – respondeu o guarda real intimidado pela agressividade na voz de Sylvos. A garotinha seguiu o guarda. Sylvos virou-se para Sylvanas, como se um soubesse o que o outro pensava. Ela o encarava como a Rainha dos Abandonados, mas no fundo eles ainda eram ligados pelo nascimento, pelo sangue, pelo nome. – Malditos clérigos... – ele resmungou e se retirou do aposento.



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