Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 5
Capítulo 4 - Uma noite para pensar.




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       Minha cabeça doía insuportavelmente. Era isso que eu sentia.

       Não só ela, meu corpo todo também.

       Com um gemido dolorido, ergui minha cabeça da grama. Pelo que parecia, eu havia desmaiado. A minha frente, Hideo também começava a recobrar os sentidos, ainda meio encostado na árvore. Ele estava sangrando em vários lugares de seu corpo, e creio que eu não estava muito melhor do que ele.

       Apoiei minhas mãos ao chão para levantar, percebendo que estavam feridas e, de modo sinistro, as feridas eram do exato formato daquela coisa, e elas doíam mais do que deveriam. Enquanto me levantava, percebi que a grama havia voltado ao normal. E mais, me veio a pergunta: Por quanto tempo eu havia ficado apagado? Ainda estava escuro, mas eu não sabia se haviam se passado minutos ou horas.

       Com certo esforço – na verdade, muito esforço. – me sentei, e dei uma olhada em mim mesmo. Minha camisa estava toda rasgada e suja de sangue, mas minha calça estava inteira. Agradeci aos deuses por isso.

       Hideo deixou escapar um gemido de dor, e não era para menos, já que parecia que cada centímetro de seu braço estava coberto de sangue, e ele estava ainda mais pálido do que de costume. Creio que eu também não estava muito diferente.

       - O que era aquilo? – perguntei, e fiquei um tanto surpreso de que minha voz não passasse de um fio.

       -... Não sei. – respondeu, e sua voz parecia ainda mais fraca que a minha.

       Ele não parecia muito disposto a se desencostar da árvore, e pelo que pareceu, arranjou forças de outro mundo para se sentar direito. Olhando um pouco para o lado, percebi que a mochila dele estava caída perto dele.

       Com mais uma grande dose de esforço, me ajoelhei para ficar de pé. Aquela coisa, além de ter me cortado todo, ainda parecia ter drenado parte de minha energia.

        Escutei Hideo se levantando, pois pelo que pareceu, ele se apoiou nas raízes expostas da árvore, fazendo-as estalarem sonoramente. Escutei ainda três suspiros antes dele finalmente se por de pé. Me virei e o vi quase se arrastando para pegar a mochila, abrindo-a. Suas mãos tremiam.

        - Ei, acho que é melhor você não ficar sozinho aqui. – disse por fim.

        - Por quê? – me perguntou, tirando uma camisa de dentro.

        - Se aquele negócio voltar, vai ser pior.

        Ele suspirou de novo e então resmungou uma afirmação. Ele se levantou, e começou a se arrastar, mancando um pouco. Percebi então que uma das pernas de sua calça estava encharcada de sangue, e toda rasgada.

        Resmunguei, e peguei seu braço, passando por meus ombros, fazendo-o apoiar-se em mim. Meu corpo pareceu gritar pela dor, mas eu apenas trinquei os dentes.

        - Eu sei andar sozinho. – Hideo protestou.

        - Eu sei que sabe. – rebati. – Só acho que sua perna não está nas melhores condições.

        Ele deu um muxoxo enquanto eu começava a caminhar por entre as árvores. Só então fui pensar em algo: Se eu havia ficado apagado por sei lá quanto tempo, e se Raquel tivesse acordado e começado a me procurar, e acabasse se perdendo? Ou pior, tivesse acordada e acabasse vendo nós dois cobertos de sangue. Isso seria muito pior.

        - Ah, Hideo. – falei. – Uma coisa.

        - O que?

        - No dia em que eu saí em missão, eu salvei uma garota...

        - Hm.

        - E ela está me seguindo desde então. Ela está lá na fogueira agora. – “ou assim espero”.

        - Isso é inesperado. – ele disse. – Qual o nome dela?

        - Raquel. Ela tem dez anos. – respondi.

        Continuamos andando em silêncio até começar a ver a fogueira. O brilho estava fraco, o que mostrava que necessitava de mais lenha. Chegando lá, vi que Raquel ainda estava dormindo, enroscada dentro do saco de dormir, o que, estranhamente me deu certo alívio. Soltei Hideo e ele desabou no chão, e claramente se segurou para não soltar um protesto alto.

         - Podia ser mais “delicado”?

         - Foi mal. – respondi.

         Fui até minha mochila, enquanto sentia a Aura de Hideo se elevando um pouco para curar as feridas. Uma das coisas boas de se ter uma Aura é que você pode usá-la para diversas coisas, como curar ferimentos, se regenerar se perder um membro –desde que você seja do tipo regenerativo, o que não é meu caso, infelizmente. – e aumentar sua força, caso você tenha problemas em uma caçada. O único problema é que tem que se ter controle sobre ela. E se você o perder, vira um monstro com certa racionalidade. Quer dizer, pode-se falar e raciocinar, mas precisa se alimentar de humanos, e muitos são sádicos. Digo isso pois quando alguém vira um desses, manda-se grupos para exterminá-lo, já que é mais perigoso do que qualquer um comum. Costuma-se chamar esses tipos ou de “Despertados”, pois surgiu a macabra poética de que a pessoa “despertou para a vida monstruosa” ou de Devorador Voraz, por causa de sua fome. Já ouvi gente chamá-los de demônio, mas são raros os casos.

         Comecei a me curar também, sentindo-me melhor pelas feridas que se fechavam. Então peguei minha mochila, mas lembrei de meus braços cobertos de sangue. Resmunguei, pegando a garrafa de água. Não fazia mal usá-la, pois o acampamento improvisado fora montado em frente a um riacho. Acabei usando-a para tirar o sangue, e depois a atirei para Hideo, que sinceramente, precisava se limpar mais ainda do que eu.

         Depois de vestir outra camisa, – não precisava de outra calça – não me importei em usar os farrapos da outra como lenha, quando me virei para Hideo, percebi que ele já havia trocado tanto a camisa quanto a calça. Ele suspirou então e fechou os olhos, enquanto a brisa começava a soprar.

         - Tem certeza de que não sabe mesmo o que era aquilo? – perguntei.

         - Não. – respondeu. – Ela falou com você?

         - Sim.

         - O que ela falou?

         - Ela disse que eu sempre a atrapalho, e que estou com você há milênios. E que eu não divido você com ela. – fiz uma careta. – Não entendi o que ela quis dizer. Nem quero. Ela falou com você?

         - Sim. Ela ficava me perguntando por que eu não a escolhi, que poderia ter tudo com “ela” e um monte de outras coisas. Eu também não entendi nada. Quando ela pareceu perceber isso, começaram as vozes.

         - Eu não entendi nada agora também.

         Ele olhou para o céu, e então falou baixo:

         - Você escutou a voz...?

         - Qual das vozes?

         Ele hesitou por um instante.

         - Lúcio.

         -... Sim. – respondi. – Não gosto de lembrar dele.

         -... Nem eu. – disse logo após. – E principalmente, não gosto de lembrar dele quando gritou aquilo.

         Ele baixou o olhar do céu, e então olhou para Raquel.

         - Ela tem a idade da Yume. – disse.

         -... Sim. – respondi.

         Yume seria nossa irmã mais nova. Da última vez que eu a vira ela era tinha cinco anos, e era uma coisinha minúscula de cabelos ruivos cacheados e olhos castanho esverdeados. Ela era bem pequena para a idade, e normalmente a comparavam com uma boneca. Hoje ela deve ter uns dez anos.

         Olhei para a fogueira, pensando no que ocorrera mais cedo. Fora a coisa mais estranha que havia visto, e acredite, sendo um híbrido como eu, as coisas que normalmente são bizarras são refresco para o que vemos.

         Só então percebi que estava amanhecendo, e percebi o tempo que passara desmaiado. Somente a noite toda. Peguei então um punhado de terra e joguei na fogueira, enquanto Hideo abria novamente sua mochila, e reparei que ele tinha consigo algumas bisnagas de pão. Ele cortou uma ao meio e me deu uma metade, enquanto começava a comer a outra.

         - Para onde você vai? – Perguntei.

         Ele fez uma careta.

         - Deditio.

         Engoli o seco. Aquela era nossa cidade natal.

         - Com um pouco de sorte, ninguém me reconhece. – disse.

         - Acho que teria mais chances de te reconhecerem se eu fosse com você. – afirmei. – Mudamos muito desde que tínhamos dez anos.

          - Tipo a parte da explosão de crescimento aos treze anos? Tipo, com doze eu tinha um metro e cinqüenta e oito de altura. – disse.

          - Tipo isso. – afirmei.

          - Ainda assim, não é muito confortável pensar em voltar para a cidade que me vendeu...

          - Nos. – corrigi. – E não foram só nós, você sabe muito bem.

          - Claro que sim. – revirou os olhos. – Yudai, eu não sou tão esquecido quanto você pensa.

          - Foi só um inocente comentário. – respondi enquanto dava uma mordida no pão sem nada.

          Raquel começou a se mexer dentro do saco, sinalizando que estava acordando, e logo ela se sentou, esfregando os olhos. Pude quase ouvir Hideo sorrir ao imaginar a reação dela ao ver nós dois juntos. Quase que dito e feito, ela pareceu ao mesmo tempo surpresa e confusa, o que eu não poderia culpá-la.

          - Olá. – Hideo disse enquanto dobrava as mangas de sua camisa camuflada.

          -... Olá.

          - Raquel, esse aqui é o Hideo. – falei, antes que ela começasse a parecer mais confusa. – Eu falei dele ontem, lembra?

          - Falou? – Hideo me olhou.

          - Falei, respondendo a uma pergunta. – justifiquei. – Não pense em se achar.

          - Não sou do tipo que se acha. – retrucou.

          - Não tenho tanta certeza. – rebati.

          Ouvi Raquel reprimir o riso, e Hideo deu muxoxo. Peguei um pedaço de pão dele e o entreguei a ela. Levantei para pegar água, enquanto Raquel comia o pão, e Hideo começava a pegar suas coisas. Percebi que ele estava escondendo sua camisa e calça ensangüentadas, enquanto eu enchia novamente a garrafa. Ouvi então ele murmurar sobre como coisas estranhas e o que me fez reprimir o riso, sobre irmãos folgados.

          Voltei para lá, secando a água em minha calça. Raquel estava enrolando o saco de dormir. Ela me entregou e eu o espremi na mochila, e Hideo jogou sua mochila em suas costas. A preocupação retornou, pois lembrei de que aquela coisa podia voltar, e pelo que me pareceu, ele também pensava nisso, pois sua expressão estava fechada, mas depois lembrei que ele ia para nossa cidade natal.

          - Bom, vou embora. – anunciou, enquanto começava a sair da clareira.

          - Tchau. – disse para o nada, quando ele já havia ido embora.

          Eu espero que fique tudo bem, levantei e comecei a entrar na floresta, com Raquel em meu encalço.       


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Notas finais do capítulo

Eu fiz vários desenhos dos gêmeos e da Raquel, eu gostaria que alguém quer que eu os poste para ter uma melhor ideia de suas aparências...