Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 13
Capítulo 12 - Tempo Perdido




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         Eu estava dormindo bem... Pesado.

         Não sonhei com nada, só estava dormindo e em meu subconsciente sabia que havia algo errado, pois estava dormindo demais, mas não conseguia acordar, e quando parecia estar prestes a acordar, o sono voltava.

         Só acordei quando algo brilhante apareceu. Não, não era a luz no fim do túnel. Aquilo... Doía, e muito. Chegava a me cegar e meus olhos doíam de forma insuportável, aquilo parecia queimar meu olho e quando fui fechá-lo, havia alguém o segurando.

         Não aguentei, e acabei gritando pela dor insuportável em meu olho e arremessei o que estava segurando a luz. Em seguida escutei vários cliques, um alerta em voz baixa e alguém prendendo a respiração.

         Percebi que estava deitado em uma cama e havia algumas coisas me prendendo. Minha visão estava coberta por luzes, como se tivesse olhado diretamente para o sol por muito tempo.

         Se fizeram isso para me acordar, deveriam ter usado um despertador.

         Pisquei, enquanto aos poucos minha visão voltava ao normal e percebi que... Estava numa sala de hospital? Olhei atônito por alguns segundos e vi vários policiais – ou seriam seguranças? – com suas armas apontadas para mim, um homem alto de cabelo castanho, cuja as laterais já eram grisalhas e trajando um terno. Haviam também um médico que me olhava de olhos arregalados e quando olhei para o chão, vi que o que eu havia arremessado era outro médico, que se movia debilmente, e ao seu lado estava um enfermeiro.                 

         - E-eu... Fiz isso sem querer. – falei ao ver o médico no chão, mesmo com o jaleco dava para ver que ele estava com fratura exposta em seu braço.

         Me sentei com um pouco de esforço, minha cabeça girava e pareceu que todos os policiais estavam pressionando com um pouco mais de força o gatilho de suas armas, mas simplesmente os ignorei, já que no momento não estava me sentindo nas mil maravilhas. O homem de cabelo castanho se aproximou cautelosamente enquanto eu esfregava o olho que ainda estava dolorido.

          - O que diabos ele é? – escutei o enfermeiro murmurar.

          Quanto tempo havia se passado? Eu estava em um hospital, então... Os policiais que eu salvara deviam ter me trazido até aqui, mas não era uma boa ideia. Considerando o que eu era, e onde estava, com certeza não era uma boa ideia.

          Eu estava com problemas.

          - Que... Dia é hoje? – perguntei, de maneira cautelosa.

          - Duas semanas após você ser... – o homem de cabelo castanho falou. – Ferido.

          Duas semanas?! Droga, eu estava ferrado. Havia a escola e Hideo com certeza não estava satisfeito com meu sumiço, e também... Eu ainda havia dito para Raquel aquela noite que ficaria tudo bem, e eu acordava duas semanas depois, em um hospital. Os dois deveriam estar loucos por minha causa. Mas aquele ferimento não me deixaria apagado por tanto tempo, havia alguma coisa muito errada com aquilo. Levantei um pouco mais minha cabeça, minha visão se acostumando novamente a luz.

          - Caso você esteja se perguntando, você esteve sedado. – o homem continuou, enquanto o enfermeiro e o médico tiravam da sala o médico que eu havia ferido. Quando ele retornou, o homem olhou-o e ele continuou.

          - Toda vez que você estava prestes a acordar, nós o sedávamos novamente... – disse, parecendo estar sem graça. – Mas seu organismo é incrivelmente resistente, só conseguíamos mantê-lo sedado com uma quantidade suficiente para dar uma overdose em alguém... Normal. E essas doses imensas o mantinham sedado por muito pouco tempo.

          Bufei e ele se calou ao ver minha expressão insatisfeita. Se me mantiveram sedado por duas semanas, boa coisa não deve ter saído disso. E a minha intuição já sabia o que era.

          - Me deixe adivinhar, vocês fizeram testes comigo, ou exames, sei lá. – bufei.       

          - Bom... Sim. – disse cauteloso. – Você não pode...

          - Ser totalmente humano? Fale algo que não sei. – rebati insatisfeito e ele piscou, sem graça diante meu mau humor que aparecera. Se a Ordem descobrisse isso, eu estaria mais ferrado, e o vídeo de mim e Hideo contra aquele cara provavelmente caíra na internet, portanto, minha cota de problemas estava muito grande, e parecia agora que a tendência era apenas piorar; eu teria que dar o meu jeito. – Posso ir embora?

          - Claro que não. – o homem de cabelo castanho falou e girei os olhos. De certa forma já esperava por isso. E reparei em outra coisa.

          Cadê o meu cordão?

          O meu símbolo estava nele!

          - Retiramos seus objetos pessoais quando você chegou aqui. – o médico informou e murmurou mais para si. – Havia coisas perigosas ali...  

          - Devolva – os. – falei. – Eu não vou ficar aqui.

          - Você tem que...

          - Se tem alguma pergunta, faça-a rápido. – interrompi. – Eu tenho coisas a fazer, e o tempo que vocês me deixaram aqui, provavelmente deixou certas pessoas que estão comigo preocupadas.

          O homem de cabelo castanho se adiantou.

           - Eu sou William Garret, agente do governo. Creio que você não poderá sair deste hospital publicamente.

           - Em nenhum momento falei que iria. – rebati.

           Ele suspirou.

           - Pois bem. Qual seu nome, e o que você seria?

           Suspirei e separei as coisas que poderia contar no “o que seria chocante” e “o que seria traumatizante”, então peguei o menos pior e falei:

           - Meu nome é Yudai... Hentric e sou o que pode se ser chamado de híbrido entre um humano e um monstro.

           Ele piscou atônito. Eu já esperava que ele não ficasse normal, já que na Terra, monstros somente existem na imaginação das pessoas. E nos filmes. E Garret disse exatamente o que eu já esperava:

           - Monstros não existem.

           - Aqui não, mas de onde vim, existem hordas. – repliquei.

           - Você é um extraterrestre então? – o médico disse.

           É, acho que a primeira coisa que se pensa nestes momentos são exatamente isto, extraterrestres. Tecnicamente eu não sou da Terra, mas não sou do espaço. Era bastante confusão, mas eu falei do modo mais simples também.

           - Dimensão diferente.

           - Hã? – O médico falou sem entender.

           Tive que reprimir um sorriso maligno ao ver a confusão nos rostos dos que estavam ali naquela sala.

           - Existem dimensões diferentes. – comecei. – E vim de uma diferente para eliminar um monstro que veio para cá.

           - Você está dizendo que os assassinatos que estão ocorrendo são por que...

           - O monstro precisa comer. – respondi com cinismo, como se fosse a coisa mais simples do mundo. E na verdade, era. – E o seu principal alimento são humanos, embora parece que prefiram híbridos. Parece que temos um cheiro melhor para eles. Melhor? Respondi tudo?

           - Não. – Garret ditou com uma expressão de pedra, mas consegui ver em seus olhos a confusão.

           Bufei em resposta.

           - Você é filho de um humano com um monstro, então? – perguntou, incisivo.

           - Não, ninguém teria coragem de ter um filho com aquilo, ou ao menos é o que eu acho...

           - Criado em laboratório? – continuou.

           Hesitei em responder. Se ele queria detalhes, com certeza boa coisa não era.  

           - Pegam crianças humanas e tiram partes de seus corpos e no lugar colocam partes correspondentes de monstros junto com sangue deles, mas ninguém vira híbrido por que quer.

           - E vocês ficam... Assim.

           - Perdemos totalmente a pigmentação do cabelo e dos olhos e ganhamos poderes “sobrenaturais”, se é isso que está perguntando.

           - Tipo o quê? – perguntou, e eu pude ver um interesse em seu olhar que não me deixou muito tranquilo.

           - Vocês não estão pensando em fazer isso com alguém. – falei e ele piscou. – Se vocês estiverem, já vou avisando que nem todos sobrevivem a transformação, na verdade, apenas a minoria.

           Alguém ofegou, e escutei algumas respirações serem prendidas.

           - E a transformação é a experiência mais dolorosa que alguém pode querer... – continuei e abri um sorriso, apenas para ajudá-lo a desistir da ideia. – Parece que injetam ácido e fogo em suas veias, e quando você acorda e vê sua imagem, parece que todas suas características se foram. Você é algo com a aparência genérica, e um monstro diante todas as pessoas normais... Ah, sem falar que você sobrevive a ferimentos que muitas vezes matam humanos, e na maioria das vezes, está consciente, então tens de suportar o insuportável.

           Vi o uma gota de suor aparecer por seu rosto pálido.

           - Enquanto parece que tudo dentro de você está corroendo, vem o fogo, incinerando tudo, e quando isso estiver acontecendo, se colocarem você em contato com luz, poderá te enlouquecer. – falei no mesmo tom. - É tudo o que queria saber?

           Ele suspirou, e vi a desistência em seu rosto.

           - Sim. – ele se virou e falou alguma coisa que não prestei atenção, estava preocupado demais tirando todas as coisas com agulhas que haviam posto em mim.

           - O que você está fazendo?! – o médico exclamou.

           - Obrigado por cuidarem de mim, mas eu não preciso de nada disso. – falei enquanto retirava as ataduras de meu antebraço e rompi os pontos com a unha, e imediatamente comecei a fechar o ferimento. – Se eu posso colar membros no lugar, eu não preciso disso.

           Ele piscou e então um dos seguranças que estavam lá entrou. Ele estava com a bolsa de couro que estava presa em meu cinto aquele dia e roupas, mas eu estava mais preocupado com o meu símbolo. Quando me deram as coisas, imediatamente abri a bolsa e suspirei aliviado quando vi que haviam posto o pingente ali dentro. Eles saíram da sala e troquei de roupa. Não eram as roupas que eu usava naquele dia, pois ela deveria estar em um estado lastimável, principalmente a calça. Pus o cordão no pescoço e então pensei: como eu iria sair? Do modo que estava, não poderia sair na rua, e também deixara meu celular em casa, não tinha como eu ligar para Hideo me trazer ao menos Transfiguradores. Enquanto eu ainda estava pensando nas possibilidades, William abriu a porta.

           - Irei deixá-lo no local onde está morando. – disse. – Creio que não será fácil sair com essa aparência... Incomum.

           Agradeci e percebi que a camisa tinha capuz, então o puxei, embora não escondesse muito bem com minha franja. Com um pouco de sorte, se alguém me visse pensasse que meu cabelo fosse tingido de branco. Saí do quarto com a cabeça um tanto baixa e o médico me entregou um papel.

           - O que é...?

           - Você aparenta ser um adolescente, apesar de, digamos, seu corpo já ser o de um adulto. – respondeu. – Se você finge ser um estudante, isso é um atestado médico para justificar suas faltas.

           - Ah, obrigado. – falei. Ele estava me salvando.

           Dei uma olhada e no atestado dizia que eu tivera uma infecção grave que me obrigara a ficar no hospital. E ele escrevera meu nome e sobrenome corretamente, eu já poderia dar um crédito ao médico. 

           Depois segui William pelos corredores até sairmos em uma saída que estava deserta, e do lado de fora havia um carro negro e claramente caro. Acabei dando o endereço quando entramos no carro e passamos todo o percurso em silêncio. Quando chegamos em frente a casa de Harrys, verifiquei se não havia ninguém na rua e agradeci a carona. Então saí rápido e toquei a campainha, enquanto escutava o carro indo embora. Hideo abriu a porta e piscou ao me ver, então me puxou pra dentro da casa. Ele estava péssimo, tinha olheiras profundas e roxas nos olhos e parecia mais pálido que o nosso normal. Ele parecia um urso panda que virara um zumbi, só faltava ele ser gordo e ter orelhinhas arredondadas no alto da cabeça.

           - Seu... – ele grunhiu. – Você me deixou louco por duas semanas!

           - Não foi culpa minha. – murmurei. – A polícia me atrapalhou e acabei tendo que salvar um policial, então fui acertado pelo monstro. Aí me levaram para o hospital e me mantiveram sedado.                                 

           Ele parecia estar se segurando para não me dar um soco de esquerda. Reparei que sentia sua Aura de forma tênue, mas não conseguia especificar como sendo dele. Não tinha o cheiro, e estava “morna” em vez de quente.

           - Eu tive que inventar um monte de mentiras na escola. – bufou. – E você ainda aparece... Assim!

           Ouvi o som de passos rápidos na escada e me virei a tempo de ver Raquel se atirar contra mim, me abraçando. Cambaleei levemente.

           - Ele merecia mais um tapa do que um abraço. – Hideo disse. – Mesmo que o sumiço não seja culpa dele.

           Ela não lhe deu ouvidos, ainda bem. Mas eu ficara preocupado quando acordara no hospital pelo fato que eu havia dito que ficaria tudo bem. E no mesmo dia eu sumia e voltava só duas semanas depois.

           - Está tudo bem? – perguntei.

           - Você sumiu e não sabíamos onde você estava! – reclamou. – Não tá tudo bem!

           Hideo reprimiu o riso ao meu lado, mas logo seu sorriso desapareceu.

           - Espera, te levaram pro hospital?

           - Sim. – falei e suspirei. – Mas e quanto a... Luta daquele dia? Tinha gente gravando!

           Raquel olhou pra mim.

           - Apareceu no jornal no outro dia. – informou. – Estava dizendo que era um mistério de como alguém podia ter todas as habilidades que vocês mostraram lá. Principalmente na hora em que você fugiu, porque pulou do chão para cima do prédio.

            - Os vídeos também caíram na internet, e tem milhões de acessos. – Hideo bufou. – John também não ficou muito bem psicologicamente quando me viu na escola, ele reparou na semelhança.

            Suspirei.

            - O que você fez?

            Ele abriu um sorriso exasperado e soube imediatamente o que ele fez.           

            - Você contou. – murmurei desanimado. – Você é doido.

            - Melhor do que ele ser mandado para uma clínica psiquiátrica por perder a cabeça. – ele estremeceu e lembrei que ele ameaçara decapitar John. – Bom, mas eu falei pra ele que não faria nada, aquilo foi apenas para os policiais não atirarem.

            Raquel ficou em silêncio diante tudo aquilo, ainda abraçada a minha cintura. Respirei fundo.

            - E Mary?

            - Eu fui falar com ela, consegui seu endereço. – ele fez uma careta. – O pai dela é um pastor, e no exato momento em que me viu disse que era um ser enviado pelo demônio.

            Ergui a sobrancelha e Raquel o olhou de maneira curiosa.

            - Aí a mãe dela bateu nele com uma colher de pau, já que estava fazendo um bolo. – ele fez uma careta. – Ela disse que ele sempre age daquele jeito quando um... Rapaz bonito vai falar com a filhinha dele.

            Comecei a rir, eu queria ter visto a cena: O pai de Mary chamando-o de enviado do demônio por ciúmes. Hideo me empurrou, mas continuei rindo.

            - Sinto muito, Belo Demônio. – falei, ainda rindo. Raquel pôs a mão sobre a boca para esconder o riso.

            - Eu tenho a mesma cara que você, lembre-se disso! – exclamou. – Continuando, a mãe dela mandou que eu fosse para o quarto com a Mary, porque a casa estava uma bagunça. O pai dela quase teve um ataque quando a mãe dela disse isso e ele gritou para que deixássemos a porta aberta.  

            - Escutar os sons indiscretos, credo. – falei e ele me lançou um olhar que tanto eu quanto Raquel nos encolhemos. - Brincadeira! E você contou?

            - Bom, sim, porque ela achava que eu queria saber sobre aquelas coisas porque eu queria chamá-la de louca. Aí eu mostrei que o símbolo se transformava numa claymore e que eu poderia levantá-lo com uma mão, depois disse para ela tentar levantá-lo.

            - Ela não conseguiu. – falei. – As claymores que a Ordem faz são especialmente pesadas, pois são feitas de Ferros dos Deuses.

            - Esse ferro não é caro? – Raquel perguntou, olhando curiosa. – Por que é muito forte.

            - Valem mais que ouro. – Hideo informou. – Mas todas as armas da Ordem são feitas com ele.

             Ela ficou claramente impressionada.

             - Ela não conseguiu, obviamente, só que eu tive que esconder a espada por que o pai dela escutou o barulho. E depois eu fui embora.

             - E ela disse o que viu?

             - Sim, segundo ela, ele deveria ter dois metros e alguma coisa de altura, sua pele era reptiliana, mas sua cara era quase humana, se não fosse o nariz torto, os olhos bestiais e brilhantes, mas em formato humano, as orelhas pontudas e os dentes limados.

             - É assim mesmo! – exclamei. – Eu o vi e ele é exatamente assim!

             - Ela disse que ele apareceu e era uma pessoa normal que virou o monstro, mas não deu tempo para ver como ele era antes de atacar Mike. Eles estavam saindo do trabalho, segundo ela.

             - Espera, eu vou lá encima pegar Transfiguradores, e tem outra coisa que quero te perguntar.

             Ele assentiu e subi até o meu quarto, abri o guarda roupa, peguei as pílulas e coloquei a bolsa ali depois. Eu ainda suspeitava que aquele híbrido que tentara me matar era Harrys, e Hideo demonstrou saber de que geração ele era. Mas eu precisava saber primeiro quem era, e também verificar se Harrys tinha aquele anel de onde o híbrido tirara seu símbolo. Tomei os Transfiguradores, mas deixei os Supressores de lado e então voltei.

             - Hideo, você se lembra daquele híbrido que quase me matou? – perguntei quando o encontrei sentado no sofá.

             - Claro. – disse. – É meio difícil esquecer.

             - Bom, você disse que já havia visto seu símbolo antes. Onde você viu?         

             - Na biblioteca da Ordem. – Falou. – Lá tem aqueles murais com todos os símbolos desde a primeira geração, que começou há quatrocentos anos.        

             - Ele era da geração de quarenta anos atrás? – falei. O cara aparentava ser só um jovem adulto, no máximo, mas essa é outra coisa que a transformação faz. Só crescemos e envelhecemos até uma certa idade, e então paramos. Isso varia de pessoa para pessoa, tanto que lembro muito bem que o número nove que veio antes de mim, Aleksander, aparentava ser um garoto de doze anos apesar de ter mais de vinte anos. Eu tive que desafiá-lo para conseguir o número nove e... Bem, ele morreu no combate, eu não tinha a intenção de matá-lo, mas ele se suicidou, pois chegou perto do Despertar no meio da luta. Não é a melhor lembrança do mundo.

             - Sim. – respondeu. – Ele era o número três, Lionel “das Espadas Pesadas”. Era para estar morto, mas parece que ele apenas forjou a própria morte.

            Olhei envolta. Raquel havia ido para a biblioteca de Harrys, mas só para ter a certeza de que ela não estava por perto. Quando tive certeza, falei:        

            - Eu acho... Que Harrys é esse Lionel.

            Ele me olhou sem entender.

            - Por quê? O que te leva a pensar isso?

            - Porque Lionel tinha a voz exata de Harrys, e de vez em quando, quando Harrys está aqui, sinto uma Aura com cheiro de mar muito fraca, tão que sequer conseguia verificar de onde vinha, e Lionel tinha a mesma Aura. Além de ele ter começado a me atacar quando perguntei se ele era Harrys. Mas eu preciso ter certeza.

            Ele parecia sem palavras, e continuei.

            - Lionel usava seu símbolo em um anel. Nunca reparei se Harrys usava algum anel, mas também tá valendo.

            Sua expressão se iluminou.

            - Lembrei de uma coisa! – exclamou e levantou em um salto, mas acabou cambaleando. – Vem comigo.

            Ele subiu as escadas rapidamente e eu o segui, sem entender. Quando chegamos ao corredor, ele andou até ao final deste e saltou, batendo no teto, e do teto desceu um único degrau. Ele pulou novamente e puxou o degrau, e ele desceu, tornando-se uma escada.

            - Quando você descobriu isso?!

            - Quando eu voltei de ronda um dia, o degrau estava abaixado. – falou. – Eu só o pus no lugar, não dei muita importância, mas vamos ver aqui. Pode ter alguma coisa aqui.

            - Você é mais curioso do que eu, por que não foi olhar?

            - Eu estava morto de sono, nem vem.  

            Subimos e fomos para o sótão. Era todo pintado de madeira branca e estava levemente empoeirado. Por todo o sótão estavam espalhados baús de madeira negra, mas sem chave.

            Fui até um e o abri. Estava cheio de livros encapados em capas de couro.

            Hideo me olhou e o pegou. Abriu-o em uma página qualquer e franziu a testa.

            - O que foi?

            Ele só virou o livro e o mostrou a mim. Estava escrito em runas Darneliyenses, e o título estava escrito A lenda de Sora e Daichi, os gêmeos do céu e a terra.

            - Sora e Daichi... – murmurei. – Já escutei essa lenda antes, não são daqueles gêmeos que tinham as mentes conectadas, e mais tarde a conexão se passou para seus corpos, e então descobriu-se que eles dividiam a mesma alma?

            - É, o vovô contou pra gente. – disse. – Sora se apaixonou por uma garota e Daichi apaixonou-se por ela depois também, só que a deusa dos mortos, Neptera, também era apaixonada por ele, e ela tentou matar a garota para ficar com ele, mas ele foi atravessado pela estaca que ia atravessar a moça, Vasti, se me lembro bem o nome dela. – folheou um pouco o livro e disse. – É, é Vasti sim. “O ferimento foi imediatamente repassado para Sora, que moribundo, foi até onde o seu irmão estava e demitiu Vasti do local...” Demitiu?!

            - Expulsou. – esclareci.

            - Ah, no final Sora tira a estaca do peito de Daichi e cristaliza o corpo de ambos para que não morram, e promete que iriam retornar, pronto, fim. Quais as chances de isso acontecer com alguém?

            - Depende, em Darneliyan tudo pode acontecer. – bufei. Aquilo era a mais pura verdade. – Vasti era a mais primorosa guerreira da região e quando cantava, a natureza se silenciava para escutá-la cantar. Foi isso que fez Sora se apaixonar por ela. – lembrei.

            - Tá, mas não muda que isso aqui é um livro Darneliyano. – disse. – Mas um híbrido conseguiria trazer baús de livros da biblioteca da Ordem?

            - Não precisam ser necessariamente livros da Ordem. – resmunguei e abri outro baú. Ele estava repleto de papel, e quando peguei um, vi um desenho que me fez gelar.

            Era incrivelmente bem feito, poderia ser uma foto se não fossem as marcas de lápis. Era uma mulher que estava sentada na grama com algumas flores envolta dela, e a mulher era extremamente linda. Tinha um longo cabelo ondulado, que se cacheavam em alguns pontos e uma parte de seu cabelo atravessava-lhe sua testa, sendo claramente preso atrás da orelha. Seu cabelo era tão longo que as pontas chegavam a tocar o chão, e ela tinha feições e um corpo delicado, e usava um vestido de mangas compridas e as mangas foram sombreadas de modo a parecerem cetim e sua saia era até os joelhos, seus olhos estavam fechados, como se dormisse. Embaixo, estava escrito: 

Bom, antes de tudo, olá Lionel.

              Sim, concordo que seja loucura, embora eu seja apenas uma “alma penada” aos olhos da Ordem, todos os problemas iriam se voltar então a ela, mas Sophia insiste que vale a pena. Admito que a teimosia que ela demonstra é louvável, mas eu quero o que seja melhor para ela, já perdi uma pessoa extremamente preciosa, e ainda tenho marcas que comprovam isso, você sabe muito bem. Mas agora aconteceu isso, que nem sabíamos que era possível, então estou tendo que intervir nas missões de Sophia para que a Ordem não desconfie de nada.  

O texto terminava ali. Virei a folha e continuava no verso.

          Apesar de tudo, ela me surpreendeu quando fomos a Crimstor, pois eu acabei perdendo-a de vista só porque virei as costas um único segundo, e ela saiu correndo a minha frente. Quando a encontrei, ela havia nocauteado o Ebenézer com um chute... Nos “países baixos” dele, e outro na cara – você perdeu a cena, merecia um prêmio – e ele a chamou de “demônio de saias”, sendo que foi ele que a atacou, pensando que fosse um ladrão.

         Espera, duas coisas: Crimstor não era a cidade natal de Raquel? E Ebenézer não era o sobrenome dela?

          E... Sophia?                                                   

          Agora estamos esperando. Eu acabo criando ilusões com a imagem de Sophia e recebo as missões dela, e também as realizo, pois a governanta de Ebenézer disse – sabiamente – que ela não pode se esforçar muito, mas o problema é manter Sophia quieta, ela não para quieta dentro da casa, nem em lugar nenhum. Aquele desenho que está no começo é um desenho que fiz enquanto ela dormia (não foi depois do que você pode pensar), é o único momento em que consigo vê-la quieta.  Vou acabar aqui porque tá acabando o espaço.

                                                                                                           Raban.                    

          Uma carta? Sophia... Eu a conheci... Mas Raban não era o número cinco, que Anita alertara? A data estava datada como sendo há onze anos, e a geração de Sophia terminara há apenas quatro. Como...?

          - Hideo, lê isso. – falei e entreguei a carta a ele, que estava absorvido lendo o livro de lendas Darneliyanas.        

          Peguei uma carta que estava datada como sendo nove meses após a que eu acabara de ler, e já era há dez anos.

          Nela estava desenhada a imagem de um bebê de cabelos curtos e negros. Era bastante rechonchudo e parecia olhar com curiosidade para o desenhista com seus grandes olhos. A mãozinha gorducha estava dentro da boca e a outra mão segurava um de seus pés, coberto pelo sapato da roupinha de bebê que usava.

          Lionel.

             É, ela já nasceu e já tem três meses. O tempo passa rápido.  Não vou falar muito, não tenho o que dizer. Sophia já voltou normalmente à Ordem, ninguém suspeita de nada, mas eu acabo ficando aqui de vez enquanto. (Vida de sem teto é assim). Sophia dá um jeito de aparecer aqui de vez enquanto, segundo Ebenézer, que ficou prometeu cuidar dela, e a bebê reage bem a ela.

              OBS: O choro de um bebê poderia ser patenteado como arma contra híbridos. Às vezes ela chora de forma tão aguda que parece que meus tímpanos vão estourar.

              Pus aquele de volta no lugar e peguei um muito mais abaixo e quase tive um infarto quando vi.       

            Dois garotos dormindo, um estava com a cabeça encostada no ombro do outro. Ambos usavam as roupas negras de treino da Ordem e estavam descalços, mas suas botas de ferro estavam jogadas perto deles. Mas não era isso que havia me chamado minha atenção. Os dois eram idênticos.

            Era eu e Hideo!

               Bom, eu fui falar com Sophia sobre o que você sabe o quê, e encontrei esses dois garotos com ela. Irmãos na Ordem são raros, e agora esses gêmeos... Temo que queiram fazer com eles o que tentaram fazer comigo e Rhode, mas não posso ter certeza, pode ser apenas coincidência. Segundo Sophia, eles se chamam Hideo e Yudai.

                 Ai...

            Pelo que ela disse, o mais novo – não me pergunte qual, não sei distinguir, mas acho que é o que está deitado no ombro do outro – Yudai, deu um jeito de rastreá-la, mesmo sendo apenas um aprendiz e saiu da Ordem para ver quem era (estou tendo um flashback aqui) e o irmão dele acabou o seguindo talvez por estar preocupado e acabaram encontrando Sophia. Eles não parecem gostar muito da Ordem, e não posso dizer que os repreendo por isso.

              Aliás, acho que Yudai é o deitado por que no momento em que cheguei, ele se mexeu e inclinou-se um pouco em minha direção, como se tivesse sentido a minha Aura, e foi ele que rastreou Sophia.

                   Acabei tendo que falar muito rápido com ela, antes que os meninos acordassem, senão poderia acabar tendo problemas, e se cuida, por que você também pode acabar tendo.

                    - Ei Yu... – Hideo começou, mas eu praticamente joguei a carta que acabara de ler em suas mãos. Quando ele viu o desenho, seus olhos se arregalaram. – E-ei, o que...

            - Leia. – falei, enquanto pegava as duas cartas no fundo e li a primeira. Era a mais curta e tinha apenas três frases:

            Crimstor foi destruída.

                     Encontrei o corpo de Ebenézer e Raquel sumiu.

                    Sophia está morta.

                  Peguei a outra e só havia uma frase.

              Estou voltando para a Ordem.

                Olhei a data. Eram exatos quatro anos atrás, e batiam direto com a data em que a geração de Sophia terminara.

            - Ei Yudai, o que você acha? – Hideo me chamou.

            Franzi a testa. “Crimstor foi destruída” e “Raquel sumiu”. Raquel era de Crimstor, e... Será que era dela de quem o autor das cartas estava falando? Eu poderia pegar outras para ter certeza, mas decidi que não iria fazer isso. Aparentava ser uma... Intimidade.

            - Não sei, mas boa coisa é que não é. – respondi. – Mas algumas começam dizendo “Lionel”. Não está praticamente confirmando minhas suspeitas?

            - Acho que sim. – respondeu e olhou para o relógio. – São seis horas da tarde e Harrys sempre volta às sete horas ou sete e meia. – ele pensou pouco. – O que fazemos até lá?

            - Hm, acho que... Vamos esperar ele voltar. E acho que ele não reparar na falta desse livro. – acrescentei ao ver o livro de lendas ao seu lado. Ele deu de ombros e pus as cartas de volta no baú, que estava cheio delas, então descemos e pusemos a escada no lugar novamente. 

            - Você acha que ele não vai tentar nos matar de novo? – Hideo perguntou cauteloso.

            - Acho que se explicarmos, ele não vai. – respondi. – Ou assim espero. Dê um jeito de olhar as mãos dele, talvez esteja com o anel.

            - E se não estiver?

            - Sei lá, talvez procuremos em seu quarto quando sair, não sei. – falei enquanto descia para a cozinha e exclamei. – Pelos deuses, estou morto de fome!

            Vasculhei a cozinha em busca de algo para comer e achei pão, queijo e presunto. Fiz um sanduíche rápido e comi. Fiz outro quando percebi que ainda estava com fome e peguei suco de laranja na geladeira.        

            - Isso é o que eu chamo de fome. – Hideo comentou, entrando na cozinha enquanto eu fazia o terceiro. – Nunca vi você comendo tanto assim.

            - Eu não como nada há duas semanas. – rebati, e dane-se se eu estava sedado, estava faminto do mesmo jeito.

            - Mas não precisa acabar com todo o pão, queijo, presunto e suco da casa de Harrys. – disse. – Ou Lionel.

            Dei de ombros e comecei a devorar o terceiro sanduíche enorme que fizera, parando de comer ocasionalmente para tomar um gole de suco. Parecia que havia um buraco em meu estômago, mas, ainda bem, já estava passando.

            - Para de me encarar. – falei de boca cheia. – Não sabe que é feio encarar as pessoas enquanto comem?

            - Mais mal educado que isso é falar de boca cheia. – rebateu.

            Dei de ombros e continuei comendo, e terminei bebendo o resto do suco e me permiti um suspiro aliviado.

            Depois disso Hideo retornou para dormir um pouco no sofá, mas pediu para que eu o acordasse antes que Harrys chegasse. E Raquel desceu logo após, mas quase parou ao ver que Hideo estava dormindo. Fiz sinal para que continuasse a descer, ele não iria acordar por isso, mas aí ela fez um sinal para que eu me aproximasse. Quando me aproximei, Raquel falou:

            - Essa é a primeira vez que ele dorme desde que você sumiu.

            - Hã? – exclamei. Eu havia sumido por duas semanas!

            - Ele disse que não conseguia descansar sem saber onde você estava. – falou. – Mas acho que ele não conseguiu dizer isso pra você.

            Huh, ele não conseguiu mesmo. O fato de Hideo se preocupar demais comigo vinha desde quando éramos crianças, mas ele não conseguir dormir de preocupação era novidade; mas explicava sua cara horrível, mas ele queria que eu o chamasse antes que Harrys chegasse, porém, faltavam apenas dez minutos para as sete. Agora eu não teria era coragem de acordá-lo.

            Soltei um forte suspiro.

            - É, não conseguiu. – respondi. – Assim eu não vou tentar acordá-lo nem sob tortura.

            Ela piscou e pousei a mão na cabeça dela.

            - É que ele pediu para que eu o acordasse antes que Harrys chegasse. – respondi. – Sendo que ele se deitou às seis horas em ponto.

            Ela suspirou e desci, mas antes perguntei: - Raquel, o seu sobrenome é Ebenézer, não é?

            - Sim, por quê?            

            - Hã... Só curiosidade.

            Ela pareceu se contentar com aquela resposta, mas pensei novamente nas cartas de antes. Elas citavam um Ebenézer, e que ele prometera cuidar de um bebê, e na outra dizia que Raquel sumira. Talvez fosse dela que as cartas falavam, mas não dava para ter certeza, ela não era a única Raquel no mundo.

            Desci, então me aproximei do sofá e peguei o braço de Hideo com cuidado e o puxei para minhas costas, peguei o outro braço e passei por meus ombros. Ele sequer abriu os olhos, estava dormindo de maneira muito pesada. Segurei-o pelos joelhos, carregando-o em minhas costas e comecei a subir as escadas até o andar de cima, no quarto dele e o joguei na cama, mas ele não acordou, apenas resmungou e se revirou na cama, então fechei a porta com cuidado.

Nesse momento escutei a voz de Harrys no andar debaixo.  


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