Cinza E Vermelho escrita por ThePrototype


Capítulo 5
Lótus


Notas iniciais do capítulo

Desculpem-me pela demora.
EDIT: 1 mês desde que postei o primeiro capítulo. Informação inutil, mas não me importo.



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Uma nova visão.

Uma garota estava deitada na minha cama, lendo algum documento no meu computador. O barulho da porta a fez virar para mim, um pouco dos longos cabelos caindo sobre o rosto. “Ei...” ela disse, como se recepcionando um convidado que não era de todo bem-vindo. “Quem é você?!” foi o que consegui perguntar, surpreso, quase gritando. “Péssimo jeito de agradecer quem consertou sua janela, sabe?”, ela respondeu, no mesmo tom monótono, mas um pouco entretida. “Achei que tinha abandonado o navio, resolvi ficar com o lugar... É uma casa boa” adicionou, como uma lembrança de ultima hora. O que seguiu foi um confuso diálogo:

“Não me respondeu... quem é—“

“Você não é muito educado, é?”

“Diz a invasora que não consegue ouvir uma frase inteira.”

“...! Você nem ia morar mais aqui!”

“Como sabe?”

“Eu... esquece. Sei que saiu e deixou os pássaros para trás. Vi a casa e pensei que fosse confortável.”

“Ok... Não vou mais discutir com você, se você quer a casa, pode ficar com ela.”

“E você, vai para onde?”

“Um abrigo, com outras pessoas. Pode vir, também.”

“Não gosto de multidões.”

“Não tem tanta gente...”

“Mesmo assim. Não gosto.”

“Não vem, então?”

“Você não é a faca mais afiada da gaveta, é?”

“...”

Você não vai?”

“Estava planejando.”

“... Não quer ficar?”

“Porque deveria?”

“Pode ser divertido. Companhia o suficiente para te manter são e você tem praticamente tudo o que precisa aqui.”

“Não é muito convincente... Mas se você insiste.”

“Eu não insisto. Fique ou vá, não é meu problema.”

“Então... eu fico.”

“Porque ‘então’?”

“Sei lá. Eu fico, não é o suficiente?”

“Vai ter que servir. Onde vamos hoje?”

“O que?”

“O que vamos fazer agora? O sinal de internet está falhando e eu estou caindo de entediada.”

“Não tem muitos pontos turísticos por aqui...”

“E eu não sou uma turista. Alguma loja, um clube, qualquer coisa assim?”

“Tem... uma joalheria por perto, eu acho. Mas tudo de valor já deve ter sido levado.”

“Vale a pena tentar. Que bom que você não tirou seu uniforme. Eu vou me trocar, não me espie.”

“Não estava planejando isso...”

“Claro que estava, vi como você me olhou.”

“Como eu te olhei?”

“Pervertido.”

“...”

“Nem tenta negar... se tentar espiar eu jogo tinta nos seus olhos.”

E encerrou a discussão batendo a porta do banheiro, carregando a pesada roupa cinza (que chamara de “uniforme”).

Saiu alguns minutos depois, devidamente vestida. Enquanto ela se preparava, tive tempo de ir até meu computador e ver o que ela lia com tanto empenho. Era o histórico de conversas com uma amiga. “Agradável, bonita, tem os mesmos gostos que você... revoltantemente adorável.” A invasora disse, a alguns passos de distância de onde eu sentara, a voz abafada pela máscara de gás. “Acha que ela sobreviveu?” concluiu com uma nota de diversão na voz. Não respondi, não queria pensar naquilo. “Não faz diferença, vamos.” Ela disse, me puxando consigo para a rua.

A lua já há muito começara sua descida pelo horizonte, mas ainda tinhamos tempo para explorar. Quando saí de casa, percebi o que não notara em minha pressa para entrar: o símbolo sob minha janela. Parecia uma flor, pétalas rosadas cuidadosamente desenhadas. Um desenho bonito, sem dúvidas. Perguntei à minha nova companheira o que era. “Uma lótus. Marco os lugares onde passo com uma. Se alguém que eu conhecia ver, sabe que é minha.” E mostrou o mesmo desenho nas costas da roupa, as cores contrastando contra o cinza monótono.

No caminho, a garota se mostrou interessada no cenário, não nas minhas perguntas. Se esquivava de todas com um comentário sarcástico, mas não demorava a comentar comigo sobre algum detalhe que via com o pouco de luz dos postes e da lua.

Chegamos na joalheria, que ainda estava fechada, pesadas portas de metal protegendo as vidraças interiores. A garota se abaixou na frente de uma das portas e tirou uma ferramenta cheia de pequenas peças metálicas de uma bolsa que carregava com ela. Inseriu o estranho aparelho no lugar da chave e começou a trabalhar cuidadosamente. Tentei perguntar o que estava fazendo, mas fui cortado por um gesto impaciente, do tipo “Agora não”. Continuou naquele trabalho silencioso, entrecortado por vários barulhos agudos de metal contra metal, até que girou a ferramenta com uma exclamação de sucesso e puxou a porta para cima, revelando a porta interior.

“Como fez isso?” perguntei, um pouco surpreso. A garota arregalou os olhos e desenhou um arco acima da própria cabeça com as mãos. “Mágica!” disse, em um tom que tentava ser surpreso e incrédulo, e riu. “Vamos, talvez a gente ache algo legal.” Voltou ao tom animado e empurrou a porta de vidro, que deslizou para trás sem um ruído. Agora que eu paro para pensar, foi a primeira vez que entrei naquele lugar.

As luzes estavam ligadas, e o interior da loja exalava luxo caro: vitrines altas cheias de jóias opulentas e minunciosamente trabalhadas, crivadas de coloridas pedras e com pequenas tarjas de preço que passavam facilmente do que eu ganharia em meses de trabalho. A loja em si era cheia de detalhes dourados contra a tinta branca, o que dava um ar luxuoso e impecável a já exagerada decoração, com réplicas de quadros de vários momentos da história intercalando as amostras de objetos impossivelmente caros. Um filtro de ar, como o meu, repousava dissonante em um canto, ativado. A garota fechou a porta de vidro e removeu o capacete, olhos brilhando como os de uma criança, absorvendo cada detalhe. Também tirei o capacete, mas percebi de imediato que algo estava errado.

O ar estava exageradamente quente, mesmo um cômodo fechado por dias não podia acumular tanto calor. Não percebi antes pois a roupa já era desconfortável o suficiente. A segunda coisa que me atingiu foi o cheiro, que não parecia “pertencer” a aquele ambiente luxuoso: era um odor forte, metálico, como ferrugem. Não fazia ideia de onde ele poderia vir, mas o único lugar que permanecia fora de vista era atrás do balcão, onde estavam montados uma linha de interruptores e um controle com um disco, cercado por um círculo que ia do azul ao vermelho. O indicador do disco apontava para a maior área vermelha.

O cheiro parecia mais forte quanto mais perto chegava do botão que era, provavelmente, o que controlava a temperatura do lugar. A garota, impaciente, correu na minha frente e saltou sobre o balcão. O grito que seguiu me surpreendeu, a garota saltou para trás, derrubando parte das caras peças expostas. Fui até ela e vi, finalmente, a origem do cheiro: um corpo, deitado de costas no chão em uma poça de sangue, o cheiro primitivo de sangue subia como uma nuvem daquela cena dissonante. A garota ainda estava paralisada, uma mão cobrindo a boca, quando algo ali mudou: um dos braços daquele corpo saltou para cima, como se buscasse apoio, e ergueu o resto do prórpio peso consigo, ainda de costas para nós.

Quando se virou, a visão que oferecia era inumana: os olhos não estavam mais lá (um exame revelaria que estavam no chão, onde o corpo repousava momentos antes), substituídos por uma massa cinzenta, a boca uma mancha rubra se fundia à ao tom da pele típico dos infectados, e contrastando com a roupa formal que ainda vestia. Seu corpo tremeu e tensionou, antes de se curvar para frente em um ângulo impossível, com um barulho alto de osso quebrando e voltou a posição normal, um espirro de sangue saltando da boca. A garota saltou para trás e correu para a rua, pondo o capacete antes de sair e desaparecendo na claridade característica de... bem, a claridade característica de um amanhecer. E isso não era nada bom.



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Notas finais do capítulo

Até a próxima



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