Cinza E Vermelho escrita por ThePrototype


Capítulo 1
0: Loucura Invisível




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Algumas coisas são estranhas, quando você pensa muito sobre elas. Até as pessoas que nunca saíam de casa sofreram com o que aconteceu, elas não queriam se ver privadas de um previlégio do qual quase nunca desfrutam: a liberdade.

Os dias que precediram o "toque de recolher" mostraram um governo que, dessa vez, trabalhou de uma maneira inacreditavelmente rápida: em alguns dias todas as casas já haviam recebido uma caixa, um “kit de emergência” entregados por homens com máscaras de gás e uniformes com o familiar símbolo do governo.

O folheto que vinha com essa caixa demonstrava uma calma típica de cartas oficiais:

Kit para controle de toxinas aéreas


O conjunto de objetos contidos aqui visa a segurança da população contra uma toxina de origem desconhecida, cujos efeitos ainda não foram totalmente analisados.

Esse “kit” deve ser utilizado em todos os prédios onde pessoas ou animais vivem. O Governo recomenda que pessoas que moram sozinhas se unam a parentes, amigos ou vizinhos o mais rápido possível para minimizar o risco de contaminação por exposição externa.

Contém:

–Um (1) uniforme (tamanho único) fabricado para anular ou minimizar o contato do usuário com eventos exteriores (como ar, água, calor ou frio intensos);

–Um (1) filtro de ar para evitar o contato de qualquer habitante às toxinas. Mais informações sobre a instalação na página 3;

–Um (1) gerador de pulso eletro-magnético (E.M.P.), instalado no filtro;

–Isolante térmico, que deve ser aplicado ao redor do filtro e em todas as passagens de ar que não serão utilizadas (como portas, janelas e chaminés)

As autoridades estão trabalhando para solucionar essa situação, mas todos os equipamentos listados devem ser instalados o mais rápido possível, para minimizar as chances de uma infecção que possa ser causada por exposição ao ar exterior. “

O resto das páginas detalhava as instalações e precauções que devíamos tomar para evitar que a toxina desconhecida invadisse nossas casas.

Eu instalei o meu “filtro” na garagem, seguindo as instruções do manual e selando toda as outras saídas além das que eu usaria para sair da garagem, para a rua ou o resto da casa.

Se você acha que os dias de verão são quentes, tente ficar em uma sala totalmente selada do mundo exterior, com somente um ventilador reciclando o mesmo ar abafado em você o dia todo, uma semana toda. E se você tenta sair você lembra do que te espera lá fora, e seu corpo treme, mesmo com o calor intenso.

Acho que é agora que eu começo a falar do que aconteceu com aqueles que não seguiram o livreto distribuído pelos homens com máscaras de gás.

Os primeiros dias depois do toque-de-recolher permanente foram agitados: muitas pessoas saíram de suas casas ou simplesmente não instalaram o estranho filtro que receberam. Depois de uma semana eu já me acostumei com eles, mas a primeira vítima dos efeitos reais de uma ameaça invisível nunca sairá da minha mente.

Era o segundo dia, e um garoto, com no máximo 10 anos, andava pelas ruas com um sorriso que só a inocência pode colocar em um rosto. Eu ouvi o barulho de algo batendo contra grade que cerca minha casa, e vi o garoto andando, segurando um graveto que batia contra o metal e fazia um barulho que ressoava pelo silêncio das ruas. Eu vi, da janela de vidro que não se movia devido a pasta cinza que a cercava, o garoto parar e olhar para mim. Eu tentei sorrir, responder a alegria absurda daquela criança, mas parei quando o sorriso desapareceu e o garoto caiu para o lado, o rosto acertando em cheio o chão quente abaixo dele. Uma corrente lenta de um líquido escuro, que minha mente desejava não ser sangue, escorria em um fluxo constante, manchando as pedras ásperas que decoram o chão entre o asfalto e a minha casa.

Minha cabeça corria com ideias, sair da minha paralisia e correr para a rua, mas aquela parte racional, que aparece para situações como essa, insistia que até eu vestir a roupa de proteção e sair já seria tarde demais, que aquilo não era normal, não tanto sangue de uma queda tão pequena.

Foi quando o garoto levantou, se apoiou contra a grade e olhou para mim, boca levemente aberta, pupilas reduzidas a microscópicos pontos pretos, um filete de sangue saindo da boca e dos ouvidos, não mais um fluxo constante, mas três linhas vermelhas secando, manchando o rosto jovem.

Não sei quanto tempo fiquei ali, preso sob aquele olhar que estava fixo em mim, mesmo com a cabeça que se movia e batia contra a grade, deixando marcas vermelhas naquelas feições frágeis. Pouco depois da terceira batida, uma mulher correu até a criança e a ergueu nos seus braços, com um sorriso esperançoso que logo se distorceu para um olhar de surpresa quando largou o garoto ensanguentado e se abaixou para perguntar algo a ele. Foram as últimas palavras que ela disse e que não se tornaram gritos.

O garoto derrubou a mulher e golpeu o seu peito com o galho que ainda segurava. Sua força era incrível para uma criança: as estocadas rápidas atravessavam o espaço entre as costelas e tiravam pequenos pontos vermelhos, que se acumulavam enquanto a mulher tentava sair daquele ataque violento, sua força desaparecendo rapidamente pelos pulmões que já não mantinham o ar.

Quando a mulher parou de se mover, o garoto aproximou o nariz do corpo como um animal curioso e se levantou, arrastando a mulher pelos braços para fora do meu limitado campo de visão.

Cinco dias se passaram, e agora o garoto é só mais um no meio dos muitos homens e mulheres que vagam pelas ruas, brutalizando qualquer ser vivo que eles encontrem além de outros que sofrem do mesmo mal. Não são “zumbis”, longe disso. Estão vivos e seus olhos brilham com uma vitalidade inconfundível. Se alimentam, descansam quando estão exaustos e, pelo o que eu vejo, tem uma forma rudimentar de comunicação, com muitos acenos e gestos, poucas palavras.

Eu ainda não tive que sair com a roupa enorme e “segura” distribuida pelo governo, mas a comida está acabando, mesmo que a água ainda venha e pelo rádio as pessoas garantam que não existe risco em bebê-la. Eu escrevo para manter um registro da loucura lá fora, e por que eu sei que ainda existem pessoas sãs em outras casas, mesmo que eu não tenha contato com elas.

Acho que escreverei até me tornar uma parte da legião que corre pelas ruas, face marcada pelo sangue e olhos que só vêem a morte.


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Notas finais do capítulo

Mais um capítulo... sexta, eu acho.



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